Memória. Faíscas

Ilustração: Genin

Maria Julieta

Do Jardim de Infância, lugar-de-horror, Joaninha se lembra:

De um coração de pedra (tão preciosa), liso e achatado, que encontrou no pátio, e cuja posse teria sido perfeita se o medo de que o verdadeiro dono aparecesse não embaçasse o prazer de vê-lo e acariciá-lo.

Outro objeto de forma diferente e também mais-do-que-delicioso ao tato foi subitamente atirado no átrio da igreja por um homem de punho ameaçador, que rogava pragas. Louco? Bêbado? Não pode apurar, mas escondeu o tesouro, com muita cautela, na merendeira.

CDA e a filha Maria Julieta. Belo Horizonte, 1933 (Acervo Sítio CDA na WEB)

Da festa escolar em que uma mulher, abanando a cabeça, sorriu só para ela um sorriso todo dourado, que a deslumbrou. Também de um garoto, apenas entrevisto (não era aluno do Jardim), com vários pedacinhos de metal refulgindo entre os lábios.

Uma tarde, no recreio, bateu com o rosto no concreto, ao tentar vencer o campeonato de pular murinhos. Perdeu os incisivos superiores, que nunca apareceram.

Foram engolidos – disseram muitos. Vontade de exibir dentes de ouro… Era o momento exato, mas foi preciso esperar vários anos pela (nada áurea) dentição definitiva.

Tempos depois, em outras terras, o dono de uma loja parou-a na rua e disse à mãe assustada: – A senhora me empresta a menina? É só um minutinho, para enfeitar a vitrine. – Saiu correndo, com vergonha de ser banguela e, na esquina, viu um mendigo sem nariz. – Morfético – sentenciou a mãe.

 

Dos festivais de fim de ano, organizados pela diretora – bela, poderosa, de pele perfumada. Miúda, tão miudinha, fantasiavam-na de gato, dançarina, camponesa russa, e ela se perdia no palco do principal teatro da cidade, entre todas as outras fantasias iguais.

À saída de um desses festivais compraram-lhe um fogãozinho de lata, e até hoje não sabe se o presente era um prêmio pelo seu esforço, ou consolo pelo fato de ter tido um papel tão insignificante. A estrela era sempre Talita, redondinha e de nome perfeito, igual para adiante, para atrás…

O poeta Carlos Drummond, sua filha Maria Julieta, à esquerda, com uma-amiga, no Rio, em 1935 (Acervo Sítio CDA na WEB)

Houve outras representações, depois, na escola. No primeiro colégio escolheram-na para “dirigir” uma banda infantil. Ensaios, náuseas, insônia nas vésperas. Na hora conseguiu marcar sem erros os compassos decorados de maneira automática, mas sua roupa de cetim vermelho e azul estava incompleta: as tias interpretaram mal o figurino desenhado pelas freiras e, em vez de quepe, fizeram um boné fofo, horrível que não pôde se aproveitado. Regeu sem chapéu, com tristeza e correção. Os aplausos não compensaram a falta da fantasia.

No segundo colégio perdeu o encabulamento, e uma vez por semana aprecia no pequeno palco escolar sapateando, indagando com João Pergunta – personagem do Livro de Leitura – ou imitando a Emília do Picapau Amarelo.

Em certa ocasião importante a representação foi em francês. Batizavam uma boneca e ela era a primeira a entrar em cena. Dizia uma única frase, que se fixou definitivamente em sua memória: – Ah, ça! Il n’y a donc personne nous recevoir?

Carlos e Maria Julieta (Acervo Sítio CDA na WEB)

Dessa festa sobrou uma fotografia: tantas meninas sem nome… Outras ainda claramente reconhecíveis. Esta já morreu, recém-casada, num desastre de automóvel à saída do réveillon. Aquela, escolhida para mãe da boneca, precisamente por ser a mais alta, acabou ficando baixinha, como se já tivesse desenovelado então todo o fio de seu crescimento. A outra, empertigada e magra, chamava-se Natália, por ter nascido numa noite de Natal. A que morreu trazia sempre ovos de açúcar-cande para a merenda da segunda-feira da Páscoa.

Dos dias em que, se o sol era forte, comia-se a merenda ao ar livre, ao redor da mesa comprida e baixinha. Aquela vez foi terrível: a mãe, sempre com ideias modernas, preparara um sanduíche de tomate, manteiga e açúcar, e o pãozinho insólito, que ela pretendia mastigar com orgulho, acabou sendo objeto de escárnio geral, até mesmo da professora. Chorou muito, ao chegar em casa, e no dia seguinte a mãe foi ao Jardim reclamar, mas já não era possível extrair do episódio o fundo de vinagre.

Bom mesmo era o cheiro do embrulhinho de banana e biscoito, na merendeira de latão pintado, que carregava a tiracolo e com a qual aparece no retrato tirado no Parque Municipal, na tarde feliz em que o pai, encontrando-a na fila dos meninos que saíam do Jardim, levou-a para passear.

(Morangos com creme numa latinha redonda, supremo requinte materno, alguns anos depois. Como os tempos eram outros, as colegas já lhe invejavam a delícia rosabranca.)

CDA retratado por Maria Julieta em abril de 1933, quando ela tinha 5 anos de idade (Acervo IMS)

Da cruel Dona Lili, feia e escura como bicho, que cuidava das crianças no bonde, na volta. Comentava-se que era capaz de prender as mais travessas no quarto escuro. Seu corpo, sua cara, seu cheiro davam medo, mas era bom saber que faltava pouco para chegar em casa e acompanhar a corrida que os trilhos pareciam apostar uns com os outros, interminavelmente.

[Livro: O Valor da Vida, Maria Julieta Drummond de Andrade. Nova Fronteira (RJ), 1982]

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