Maria da Rua

Arte: Georgy Kurasov (1958-), da União Soviética

Carlos Drummond de Andrade

– Deveras não me conhece? Não conhece Maria da Rua?

Plantara-se diante de mim, muito magra, muito insignificante. Só os olhos eram grandes, dois olhos em que havia tristeza, espanto e medo. Um corpo de menina, onde sorria uma boca fatigada, e, na cabeça, a desordem convencional de uns cabelos de louro seco. Tive uma piedade desolante.

– Não, meu pequenino amor, não te conheço. Vem aqui, vamos beber qualquer coisa.

Sentou-se, num gesto humilde. Alisou as rugas do vestido. Tomou um gole de whisky. Pausadamente. Calmamente.

– Maria da Rua… Que tal o meu nome?

– Um nome como tantos. Dize o outro, o do batismo.

– O outro? Já não me lembro, o outro… Talvez seja o mesmo, talvez não. Há tanto tempo? Depois, a vida passou, eu passei também. Não acha lindo o meu nome, – Maria da Rua?…

Calou-se. Ficou contemplando extaticamente a sala cheia, os pares que giravam, a nudez das outras mulheres, a volúpia dos outros homens.

– Maria da Rua, disse-lhe eu, perturbado – quero ser teu amigo, Maria da Rua.

– Vamos cear, lá fora. Tu me levarás à tua casa, e eu serei muito teu amigo.

Teve um sorriso frio, entre cínico e amargurado. Devia ter ouvido muitas vezes aquelas palavras… Percebia que o seu corpo não inspirava desejo, mas uma compaixão imensa. Levantou-se. Maquinalmente. Calmamente.

O sonho da noiva, de Nastya Miro (1989-), da Rússia

Fora do cabaret, a noite tinha uma doçura muito azul, e no céu as estrelas brilhavam como olhos puríssimos. Cá em baixo, o vício parecia-me terrivelmente melancólico, cheio de mulheres tristonhas e de homens enfastiados.

Um automóvel cortou a rua, sangrando a penumbra com dois círculos vermelhos. As lâmpadas tinham uma claridade pálida, entre o céu e a terra.

A pobre criatura, agarrada a meu braço, era como um farrapo… pobre farrapo humano, que um sopro lançaria pela noite.

E, uma noite, essa mulher ensinou-me a vida. Ensinou-me calmamente. Displicentemente.

– A vida, meu menino, não é isto nem aquilo. É tudo o que quiseres… O destino, uma força consoladora, que nós inventamos numa hora de arrependimento. Ele não tem culpa, a vida não tem culpa. Talvez ninguém tenha culpa… Nós somos apenas aquilo que desejamos ser… O que é preciso é ter imaginação.

– Eu, às vezes sou a bailarina de um effendi, outras vezes a flor de um jardim, uma sonoridade, um perfume… Sou tudo, meu menino, sou tudo! Os outros não sabem, ah! felizmente que os outros não sabem…

Acho lindo esse nome de Maria da Rua. É boêmio e desencantado. Tenho outros, porém: Rosahnára, Belkiss, Ophelia, Salomé, Maria Magdalena. Tenho tantos nomes e tantas vidas!

– Ainda há pouco, por exemplo, eu sonhava existir no polo… sim, meu menino, no polo, entre esquimós… E a minha alma era branca, e a minha vida era branca, branca…

Subitamente, desatou a chorar. Um choro convulsivo e dramático, muito longo. Ensinara-me a vida, era da vida. E eu sofri por aquela mulher tão literária e tão humana.

– Meu pequenino amor, creio que o absinto te fez mal…

– Não, meu menino, não foi absolutamente o absinto, foi a vida…

[Para Todos (RJ), 22/3/1924. Hemeroteca da BN-Rio -Pesquisa: Cristina Silveira]

 

 

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