Literatura Primeiro
Afrânio Coutinho (1911-2000), carioca de Salvador
Fotos: Reprodução/ Acervo BN/MCS
Por Afrânio Coutinho
O romancista que acaba de falecer – Cornélio Penna – pode ser tomado como um exemplo de fidelidade absoluta à literatura. Ao “politique d’abord” ele retrucaria com um consciente, decidido, viril, “Littérature d’abord”, que implicaria toda uma atitude diante da vida. Na sua lucida e valente reclusão, criou a moldura em que vivia como um doutor sutil, a dissecar os subterrâneos da alma, fazendo refluir à tona do espirito aquelas vivências de um mundo povoado de arquétipos, e em cuja formação concorreram seus antepassados e sua infância.
Estranha figura a desse mergulhador de almas! Como Stendhal, poderia dizer que se contentava com uma centena de leitores, pois sabia ser a sua arte difícil. Mas o que construía tinha a solidez das coisas que ficam, e, sobretudo das obras que crescem aos poucos no juízo dos pósteros.
Atingira esse estado extremo de sabedoria que leva o homem a rir-se de si mesmo, a ironizar-se, numa sadia repulsa a todo orgulho e vaidade. Nos últimos tempos, dava a impressão de situar-se numa posição de equilíbrio entre a vida e a morte, em que nada mais do humano entusiasma. Ao interesse demonstrado pela sua obra magnifica, respondia com a bonomia de quem considerava o assunto demasiado humano para prender, àquela altura, a sua atenção desgarrada, espiritualizada.
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Cornélio Penna, em pleno romance moderno brasileiro, dá continuidade a uma linha psicológica que vem de Machado de Assis e Raul Pompéia, para integrar à nossa ficção uma área que a novelística nordestina abafara com o rumor de vozes famintas e de passos em retirada sedenta. A era de 30, com a sua preocupação social, não deixara olhos de ver as interioridades do ser. A critica não escapara, todavia, e a despeito dessa singularidade o valor da mensagem implícita naquela captação do soturno.
A preocupação da morte era um recurso de ver mais dentro da vida. E, sob o calor de uma fuga e de um isolamento da vida, – pois há muitas formas na vida, – a sua obra não tem igual como interpretação da vida, inclusive retratando, como nenhum outro o fez melhor, um drama social como o da escravidão brasileira, nas dobras mais escusas que produziu o contato entre brancos e pretos.
É curioso esse resultado! Uma obra aparentemente desengajada a que se deve talvez a meditação mais profunda de um drama social. Não é esse, aliás, também o exemplo de Henry James?
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Em Cornélio Penna sobressai ainda a consciência artistica, o gosto da técnica e do artesanato. Evadido da pintura, porque, como confessou, não conseguiu nessa arte exprimir-se a realizar-se, tendo apenas logrado uma pintura muito literária, levou para a literatura a preocupação das análises e dos detalhes, graças aos quais procurava atingir o todo. A sua técnica era a penetração em espiral, progredindo sem sempre a prospecção, até um estado de supersaturação, de impasse ontológico.
Mas tudo isso não se operava na base da improvisação, antes obedecia a um planejamento, a uma busca de soluções e respostas. Sobretudo, essa procura exercia-se rigorosamente no domínio da expressão, num verdadeiro corpo a corpo com o vocábulo, tendo em mira esse estilo brasileiro que é a ideia central das modernas poesia e prosa brasileiras.
Tal arte quinta-essenciada, sendo possível no Brasil já testemunha bem alto a nossa capacidade criadora, a nossa possibilidade de realização.
[Correio Paulistano (SP), 5/3/1958. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]