Itabira, sempre Itabira

Foto: Miguel Bréscia

Carlos Drummond de Andrade

Conta Machado de Assis que certo homem, sempre mal servido de copeiros, procurava remediar o mal despedindo o seu empregado e readmitindo-o imediatamente com outro nome, “José, tu agora chamas-te Joaquim. Vai pôr o almoço, que são horas.” Passados dois meses, dispensava-o, contratando-o de novo: “Joaquim, tu passas a chamar-te André”. E assim o chamou João, Manuel, Marcos, todos os nomes possíveis.

Cultivava com isso a ilusão de lidar com homens novos, quando na realidade estava sempre diante da mesma e invariável argila imperfeita. Não se sabe se critério idêntico inspirava as autoridades nacionais, no período do Estado Novo, ao se aprazerem tanto na mudança de nomes de serviços, repartições, municípios, comarcas e termos (no caso, o defeito estaria nas autoridades irrequietas, não nas instituições atingidas).

O certo é que, ao menor pretexto e mesmo sem pretexto algum, as designações mais típicas, expressivas e tradicionais eram canceladas e em seu lugar apareciam outras quase sempre indicadoras de uma grandeza do memento, bem duvidosa senão francamente ilegítima. Velhas vozes indígenas de uma rude beleza, cederam passo a pobres rótulos de circunstância, destinados a imortalizar o cidadão Fulano, “dono” de um pedaço da pátria, ou de toda ela.

Assim se deturpou uma toponímia que deveria constituir parte integrante do patrimônio histórico e artístico nacional, pois a sugestão de um sítio antigo não está somente no eco dos acontecimentos que nele se desenrolaram ou nas suas feições materiais, mas também na magia, na graça, na força e no mistério do seu nome.

E aqui não resisto que não escreva o nome que está me coçando a língua: Itabira do Mato Dentro. É longo, é áspero e sombrio, mas como soa bem a ouvidos mineiros, e sobretudo a ouvidos itabiranos!

Esse nome existe, na corografia mineira, há mais de duzentos e vinte e sete anos, pois teria sido em 1820 que Francisco de Faria Albernaz e seus irmãos, paulistas à busca de ouro, vararam dez léguas de mata virgem e foram acampar ao pé de certa montanha imponente; e naqueles tempos de índios, não se achou nome melhor para a povoação iniciada com a casinha e a capela de sapé dos bandeirantes, do que o escolhido pelos selvagens da região para identificar a serra: Itabira.

“Pedra reluzente”, segundo uns; “pedra pontuda”, “pedra moça”, ou “pedra alta”, segundo outros. (Não confundir com Tabira, designação de uma família de índios já mencionada por Simão de Vasconcelos, e especialmente do chefe lendário cantado por Gonçalves Dias, que “tem feitiço, ou encanto, ou condão”) Saint Hilaire, partidário do primeiro significado, e que durante oito dias foi hospede do arraial no começo do século, XIX, assim nos descreve sua chegada:

“… descobri de repente o morro árido e cônico sobre o qual está edificado o arraial de Itabira. Atrás desse morro se eleva uma montanha que domina todas as alturas vizinhas, e cujo cimo, visto do caminho, parece ser a continuação do primeiro morro. Essa montanha tem o nome de Itabira, que ela deu ao arraial.”

E Itabira continuou a ser, ou melhor, Itabira do Mato Dentro, que do Mato Dentro se chamava toda a vasta região a leste da Serra do Espinhaço. Como Itabira do Mato Dentro ganha a categoria de vila em 1833, quando se instala sua intrépida Câmara Municipal, cujo primeiro presidente, o major Paulo José de Souza, anuncia: “Aberrando pois do caminho da popularidade incauta, nós faremos baixar o estandarte da tirania, que nos ameaça, nós seremos livres; faremos honra ao solo americano.”

Vem outros viajantes ilustres, além de Saint Hilaire, e todos ou visitam ou consignam em seus escritos a laboriosa localidade, que progride quando já declina o esplendor de Ouro Preto e dos outros burgos mais antigos das Minas. Em Itabira se colhe muito ouro (cerca de 10.600 oitavas em 1814), e se trabalha notavelmente o ferro (Eschwege conta trinta fábricas, por essa mesma época).

O nome Itabira espalha-se pelo mundo, exprimindo uma região de fabulosas riquezas minerais, e os ingleses fundam uma Itabira Ore Company Ltd., de acidentada memória. Há um minério Itabirito; há, segundo o escritor Cornélio Penna, um modo de ser, individual e coletivo, chamado itabirismo; e há sobretudo uma gente discreta, hospitaleira, pobre e digna, que não se vende aos poderosos do dia, e que conhecemos como – os itabiranos.

Arte: Cornélio Penna

Pois toda essa tradição histórica e geográfica, esse patrimônio sentimental, esse ponto de referência econômica, esse dado cientifico, tudo isso desapareceu da noite para o dia, graças a um mal avisado decreto do governo de Minas Gerais, que mudou o nome de Itabira para… Presidente Vargas.

Foi em 1942. A publicidade oficial esbaldava-se para expor ao mundo as maravilhas que resultariam da criação da Companhia Vale do Rio Doce, destinada à exploração, comércio, transporte e exportação de minério de ferro, bem como à exploração do trafego da E. F. Vitória a Minas, e cuja sede administrativa seria Itabira.

Como de costume, esse ato aparecia como uma benemerência, um dom, uma munificência do sr. Getúlio Vargas ao Brasil e muito especialmente a Itabira, que havia longo tempo esperava fosse resolvido o problema das suas jazidas inaproveitadas.

Cumpria pois agradecer a mercê, (que até hoje não produzia grandes resultados), e para tanto o sr. Benedito Valadares não achou nada melhor do que expedir um decreto onde se dizia que o povo mineiro desejava e a velha cidade queria homenagear o sr. Getúlio substituindo pelo seu nome o nome de Itabira…

Dia triste foi aquele em que o humilde signatário destas linhas, ao levantar-se, verificou que Itabira tinha deixado de ser Itabira para se tornar Presidente Vargas, e que ele próprio deixara de ser itabirano para ser… presidente varguense (tanto é certo que uma grande dor coletiva só é realmente representada pelo espirito quando se transforma uma dor pessoal e direta).

Uma cidade fora riscada do mapa, e não em consequência de bombas aéreas, mas por via de um miúdo, meloso e insensato decreto estadual que recusava a um dos recantos mais austeros da terra mineira o direito de conservar uma tradição que lhe era cara e se confundia com a sua própria fisionomia física, tal como Ouro Preto exprimirá sempre o semblante de Ouro Preto, e Diamantina há de ser, através dos tempos, não um letreiro, mas o símbolo mais puro de Diamantina.

Ex Libris da Biblioteca Popular de Itabira (era assim que se chamava a atua atual Luiz Camillo), arte de Cornélio Penna, extraída do livro Luiz Camillo – Perfil Intelectual, de Maria Luiza Penna. Observe o carimbo com o nome Presidente Vargas

Presidente Vargas é apenas uma fotografia na parede… mas como doi!

Assim parodiou Rubem Braga, mudando apenas a palavra Itabira, uns versos em que o abaixo assinado, à sua maneira solta, cantava a melancólica espera do progresso, em que havia dezenas de anos se afundara a cidade. Vinha afinal o progresso – mas custava-nos o nome de nossa terra natal.

Acredito que terá sido essa a razão de muita gente, oh infelizmente muita gente da cidade aplaudiu a mudança; julgavam-na talvez o preço da redenção do município, com suas lavras de ouro e seus depósitos de ferro vendidos aos ingleses, que não os exploravam, quando tanta riqueza inerte deveria espalhar-se pelo mundo.

Não quero agora magoar os bons conterrâneos que telegrafaram aos dominadores da época, vibrando de um suposto entusiasmo por se terem presidentevarguisado. Conforta-me apenas que entre eles não figurassem os dois irmãos que lá tenho, nem meus sobrinhos. Mas isso não importa. Passou.

O cidadão Mário Lage chegou a redigir um telegrama de protesto cívico ao senhor Getúlio Vargas. No telegrafo não quiseram recebê-lo. Ele então botou o telegrama num envelope e mandou-o pelo correio, que como se sabe funciona no mesmo prédio que o telegrafo. Se a censura postal no Rio de Janeiro não o comeu, esse papel chegou às mãos do destinatário, fazendo-lhe ver que a homenagem tinha sido simplesmente uma bobagem.

Muitos outros reagiram pelo silêncio, que é também arma usada nos tempos de privação de liberdade. E por mim nunca mandei uma carta ou passei um telegrama para a cidade de Presidente Vargas; sempre os enderecei para Itabira. Se chegassem lá, muito bem, se não, paciência. Outros faziam o mesmo. Não é que não preferíssemos um jeito mais peremptório de manifestar a nossa inconformidade.

Na manhã em que chegou a notícia, procurei alguns conterrâneos ilustres, residentes na capital do país, consultando-os sobre a providência a tentar: recurso no Instituto de Geografia e Estatística, órgão a que competia regular as alterações da toponímia oficial, e cujas prerrogativas tinham sido violadas; ou apelo coletivo ao sr. Getúlio Vargas para que declinasse da homenagem e deixasse em paz o nome de Itabira. Para que desejaria ele mais terras com sua firma civil?

Passando em revista a divisão territorial do país, vemos que havia no Maranhão uma localidade Presidente Vargas; que há no Rio Grande do Sul, uma Getúlio Vargas;  em Santa Catarina, Presidente Getúlio, ex-Getúlio Vargas; em São Paulo, Getulina; na própria Minas Gerais, Getulandia.

E se tempo houvesse ou mais municípios se criassem, por certo que surgiriam outras Getulêidas, Getuliópolis, Getulianas, Getulices e não sei que mais formas de bajulação ingênua, por esse vasto e indefeso Brasil.

Digo mais: certo dia, o “Diário Oficial, o DIP e a Hora do Brasil comunicariam ao povo estarrecido a seguinte lei: “Artigo Único”. A Republica dos Estados Unidos do Brasil passa a chamar-se Republica Presidente Vargas. Parágrafo Único, o pau brasil passa a chamar-se pau vargas, e o Cruzeiro do Sul, constelação Vargas”.

A ideia de reclamação ao Instituto foi posta de lado, depois de ouvida uma pessoa deste. A do apelo coletivo, também, em face de observação do eminente sr. Afonso Pena Júnior, nosso querido vizinho de Santa Bárbara, que além de perfeito humanista, ou por isso mesmo, é também um professor de malícia, como os há de melancolia.

Como a denominação impugnada já incidia sobre São José da Lagoa, de onde se transferira para Itabira, ponderou aquele sutil conselheiro; “Meu caro, um abaixo assinado para riscar o nome não alcançaria dez assinaturas… Mas outro dos moradores da Lagoa, pedindo que esse tal nome lhes seja devolvido, obteria dez mil.” Não desejando resgatar Itabira à custa do seu antigo distrito, desistimos.

A 29 de outubro de 1945, o indomável Luiz Camillo de Oliveira Neto telegrafa a amigos da cidade, sugerindo-lhe que se livrem por conta própria do nome imposto. Mas se o governo de fato fora varrido, perduravam as condições por ele criadas, e havia em Itabira alguns milhares de pobres trabalhadores da Vale do Rio Doce, com ordem para reagir. Nada se fez.

Passa-se mais tempo. E eis que agora o interventor Alcides Lins, com a colaboração do engenheiro Alfredo Castilho, expede outro decreto, este reabilitador, fazendo voltar a Itabira o seu velho e honrado nome, que se asilara na saudade e no orgulho humilhado dos itabiranos.

Ora, eis o que se chama uma peça de respeito, um “papel forte”, como diria Vieira; nenhuma demagogia anti-getuliana, e mesmo no nome revogado só aparece de passagem e para caracterizar uma situação de fato.

Os considerandos falam na correlação entre a história e a cultura de um povo e as denominações de suas cidades; aponta a importância do nome Itabira ao longo da nossa história territorial, politica e econômica; refere o melhor da vasta literatura geológica ligada a tal nome; e não se esquece de frisar, como escrito de mineiro amante da lei, que a mudança de 1942 nem mesmo pode ser considerada valida, pois infringiu as disposições então vigentes. Um documento que os itabiranos guardarão com carinho ciumento, e pelo qual o seu Alcides Lins passou a ser, de justiça e de sentimento, cidadão itabirano.

Agora que tudo acabou, ponhamos o coração à larga, e desfrutemos tranquilos a nossa condição bissecular de homens da pedra alta ou brilhante. Queixas e rancores não adiantam. Nem o que foi escrito aí atrás o foi para atacar – tão tarde – o sr. Getúlio Vargas. Ele é quem menos culpa teve no episódio, fruto mais de uma época do que da intenção dos homens; faltou-lhe apenas discernimento para recusar.

Não ofenderia Itabira rejeitando a homenagem; talvez ganhasse uma rua, ou pelo menos se beberia uma cervejinha em sua honra. Não estou pensando no sr. Getúlio nem no seu delegado; e aproveito o ensejo para dizer (o que não interessa ao público, mas desfaz uma ou outra perfídia com que me distinguiram jornais do governo de então) que em onze anos de serviço público no Rio, em função de confiança de um ministro, só uma vez troquei duas palavras com o sr. Vargas, e foi por acaso, numa festa no Vasco.

E um só pedido lhe fiz durante esse tempo; o de aumentar um pouco a subvenção mínima que a nação concedia ao hospital público de Itabira (ainda conservava tal designação). Ele aumentou, de três para dez contos de réis. Sou-lhe grato por isso.

Nunca pude acreditar, porém, no seu providencialismo, nem na sua glória nem no seu direito de tomar conta do Brasil por toda eternidade. Nem nunca me pareceu que a subvenção ou a criação da Vale do Rio Doce, com doze anos de atraso, pudessem justificar a enormidade do preito.

A lição a tirar do episódio é que nome de cidade, como nome de gente, é sagrado. Se o direito civil protege o nome do indivíduo contra a usurpação e até contra o capricho do seu próprio detentor, assegurando a qualquer membro da família a faculdade de reivindicá-lo como não reconhecer no nome de um município a mesma intangibilidade?

Itabira foi, Itabira será, como Helena para todo o sempre se chamará Helena, e assim também a pulverizada Troia, e a augusta Roma. E daqui agradeço a quantos confortaram um coração de itabirano durante cinco anos de luto civil; agradeço a amigos e agradeço a simples conhecidos, que, inteirando-se do erro, o exprobavam,

Agradeço a Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt, os quais, no tempo da opressão, me dedicaram contos de solidariedade, que desejo conservar inéditos para relê-los com amor egoístico; agradeço ao sr. Alcides Lins, tão reto e justiceiro; e agradeço aos fados, que me livraram  enfim da incomoda inaudita e rebarbativa situação de presidentevarguense; uma coisa assim como colarinho duro e de ponta virada, nesses dias de shock.

[Jornal O Correio da Manhã (RJ), 3/8/1947 na BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

 

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3 Comentários

  1. Eis um documento valioso para a história da cidade: Itabira, sempre Itabira. Escrito com base em documentos e com afeto.
    E pergunta que não pode falar: cadê os documentos da administração da CVRD?

  2. | Senhor Prefeito, quem sabe o senhor, novamente abrace outra ideia brilhante do poeta Drummond, e, faça o tombamento histórico do nome da cidade: Itabira, para que seja sempre Itabira; e se possível que restabeleça o musical “do Mato Dentro”. Mire no exemplo de um parente seu, Mário Lage, que lutou pelo nome Itabira. O senhor seria o primeiro mandatório municipal do país a tombar o nome de uma cidade. Tutu Caramujo nos deu a prerrogativa da cisma, agora imagine se, na calada da noite para o alvorecer do dia a nossa Itabira passa a chamar, por exemplo, Pimenta, Batista etc. Tire-nos essa cisma, caro senhor Prefeito. |

  3. Nunca havia visto esta declaração de Carlos Drummond de Andrade. Como ele disse, demorou a escrever porque era funcionário do Getúlio quando houve a mudança do nome.
    Nasci 100 anos após a criação da Vila de Itabira do Mato Dentro. Eu me orgulho de ter nascido na cidade de mesmo nome.
    Moema Alvarenga

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