Itabira recebe o V Flitabira e convida o público a conhecer as memórias de Drummond e suas críticas à mineração na terra natal

Fotos: Acervo Vila de Utopia

Festival literário é oportunidade de o Brasil reencontrar o poeta maior em sua cidade natal, entre versos e memórias 

Carlos Cruz

Tem início nesta quarta-feira (29), a quinta edição do Festival Literário Internacional de Itabira (5º Flitabira), um dos mais importantes encontros do gênero do país.

É com esse grande acontecimento literário que, neste outubro drummondiano, a cidade natal de Carlos Drummond de Andrade se transforma em território poético, crítico e afetivo, celebrando a obra do poeta maior.

E a cidade convida o público-visitante a conhecer não apenas sua literatura, mas também os lugares que guardam sua memória e os ecos de suas denúncias poéticas e jornalísticas.

Itabira de Drummond: roteiro afetivo e literário
Casa de Drummond guarda a memória do Menino Antigo

Para quem visitar Itabira durante o festival, vale flanar pelo centro histórico seguindo os passos do “Menino Antigo”, em um percurso que revela a geografia afetiva de Carlos Drummond de Andrade, da infância à adolescência.

A Casa de Drummond, na praça do Centenário, no centro histórico ainda não revitalizado, guarda a memória do lar onde o poeta viveu seus primeiros anos.

Já o Memorial Drummond, no Pico do Amor, dentro do Parque do Intelecto, abriga exposições sobre sua trajetória e oferece uma vista panorâmica da cidade que inspirou tantos de seus versos – e também das montanhas dilaceradas pela mineração.

A Fazenda do Pontal, no bairro Campestre, é uma réplica da antiga propriedade da família, onde Drummond passava as férias escolares. O local, hoje, contrasta memória e a perda incomparável, transformou-se na maior barragem de rejeitos de minério de ferro do mundo.

Por fim, os Caminhos Drummondianos – um museu de território que percorre o centro antigo da cidade, que ainda aguarda a prometida revitalização, e outras localidades – conduzem o visitante por entre lembranças e poesia, revelando a Itabira que ainda resiste nos versos do poeta.

A cidade dilacerada: Drummond e a crítica à mineração
Na escultura do artista itabirano Genin, o poeta contempla a montanha pulverizada

Mas o visitante atento perceberá também a outra Itabira, aquela devastada pela mineração. Drummond não se calou diante da exaustão da hematita, minério de ferro de alto teor, extraído sem contrapartida tributária justa à cidade que deu vida à uma das maiores mineradoras do mundo.

Na crônica Só Isso, publicada em 3 de outubro de 1964 no Jornal do Brasil, o poeta denuncia a ausência de impostos e compensações que deveriam ser pagos ao município e critica a proposta de se instituir o Imposto Único sobre Minerais (IUM).

Esse tributo só passou a valer a partir de 1969 e o poeta o considera extremamente injusto, por destinar apenas 20% da arrecadação aos municípios mineradores. “Minério é riqueza que não se recompõe, e com a exploração intensiva se esgota para sempre”, escreveu.

E prossegue: “Os 20% destinados aos municípios – só isso? – em contraste com os 70% atribuídos aos Estados, têm algo de mesquinhamente ridículo, que não pode passar despercebido à sensibilidade municipal de nossos legisladores, na maioria procedentes de pequenos núcleos habitacionais, onde a miséria coletiva definha sob a miséria dos orçamentos”.

Em entrevista ao programa Diálogo, da extinta TV Manchete, em 13 de maio de 1984, Drummond foi ainda mais contundente:

“Itabira está destinada a ser, daqui a 20 anos, um buraco em que apenas se deposita o fino, o pó que se desprende do minério que vai ser transportado pelo vagão. É uma coisa trágica!”.

A Vale e o compromisso não cumprido: crítica e indignação
Memorial Drummond, projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer

Foi assim, em inúmeros poemas e crônicas, que Carlos Drummond de Andrade não poupa palavras ao denunciar o descaso da Companhia Vale do Rio Doce com sua terra natal.

Criada em 1942 por decreto de Getúlio Vargas com o compromisso estatutário de instalar sua sede em Itabira, a estatal jamais cumpriu essa obrigação. Para Drummond, esse gesto simboliza não apenas o abandono e o descaso, mas também a espoliação de uma cidade que forneceu ao país e ao mundo as suas maiores riquezas minerais, a hemetida do pico do Cauê, hoje apenas “uma fotografia na parede”.

Em entrevista ao programa Diálogo, da extinta TV Manchete, em 1984, o poeta lamenta: “Nem sequer aquilo beneficia o Brasil: beneficia a empresa! E, depois, abandona aqueles buracos!”.

A crítica vai além, com o poeta sempre atento ao que ocorria em sua cidade natal. Drummond denunciou recorrentemente o modelo de exploração que extrai e lucra, deixando para trás crateras, barragens, tremores, poeira em uma cidade transformada paisagísticamente, com impactos que permanecem sem as compensações e mitigações devidas.

“Acho que é uma cidade ‘meio monstro’, né?”, disse ele, referindo-se à Itabira que passou de 4 mil habitantes para mais de 100 mil.

Essa indignação aparece também nos poemas Lira Itabirana e O Maior Trem do Mundo, publicados originalmente no jornal O Cometa Itabirano,  onde o poeta transforma dor em verso e memória em denúncia.

Para Drummond, a mineração não apenas alterou a paisagem física de Itabira, mas também feriu sua alma, uma ferida que ele jamais deixou de expor, com lucidez e coragem. “Penso às vezes, cruamente, que Itabira vendeu a sua alma à Companhia Vale do Rio Dioce…”.

Versos que denunciam

Em versos contundentes, a denúncia ganha lirismo e dor. No poema O Maior Trem do Mundo”, ele escreve:

O maior trem do mundo

Leva minha terra

Para a Alemanha

Leva minha terra

Para o Canadá

Leva minha terra

Para o Japão

O maior trem do mundo

Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel

Engatadas geminadas desembestadas

Leva meu tempo, minha infância, minha vida

Triturada em 163 vagões de minério e destruição

O maior trem do mundo

Transporta a coisa mínima do mundo

Meu coração itabirano

Lá vai o trem maior do mundo

Vai serpenteando, vai sumindo

E um dia, eu sei não voltará

Pois nem terra nem coração existem mais.

E em Lira Itabirana, o poeta resume o drama, profetizando:

O Rio? É doce.

A Vale? Amarga.

Ai, antes fosse

Mais leve a carga.

Entre estatais

e multinacionais,

Quantos ais!

A dívida interna.

A dívida externa.

A dívida eterna.

Quantas toneladas exportamos

De ferro?

Quantas lágrimas disfarçamos

Sem berro?

Drummond ecológico e visionário
Réplica da Fazenda do Pontal, onde o “menino antigo” passava as férias escolares

Na revista Pau Brasil, de setembro de 1985, Drummond se revela precursor da consciência ecológica.

“Minha terra vive a sorte de região espoliada, com os intestinos à vista, sob o pó de minério que suja os corpos e torna as almas sombrias”, denuncia.

E acrescenta: “A concentração média anual admitida de poeira em suspensão é de 80 microgramas. Itabira acusa o máximo de 240 microgramas por metro cúbico. Esse inferno de vida rende muitas divisas ao Brasil, fato de que se gaba a empresa estatal Companhia Vale do Rio Doce”.

Saudade e exílio: o poeta que nunca deixou sua terra

Em sua última entrevista, concedida ao repórter Geneton Moraes Neto, no suplemento Ideias, do Jornal do Brasil, dias antes da morte de sua filha Maria Julieta, Drummond fala da saudade que sente da terra natal.

“Tenho uma profunda saudade e digo mesmo: no fundo, continuo morando em Itabira, através de minhas raízes e, sobretudo, através dos meus pais e irmãos, todos nascidos lá e todos já falecidos.”

Ele prossegue: “É uma herança atávica, profunda, que não posso esquecer. Mas a atual Itabira eu mal conheço. Não vou lá há anos. Exatamente por isso: porque a Itabira que conheci, na qual nasci, passei a infância e um pouco da minha mocidade, é completamente diferente da atual. A minha Itabira era uma cidade de 4 mil habitantes, se tanto. Hoje tem mais de 100 mil habitantes”.

Para saber mais das críticas do poeta à mineração, leia também: A poesia de Drummond em defesa da terra natal

E também aqui: Drummond nunca brigou com Itabira, nem a cidade com o filho mais ilustre: sua crítica sempre foi à Vale

E mais aqui: Drummond e a mineração

Flitabira: literatura como encruzilhada
Arte: Divulgação

Com o tema Literatura, Encruzilhada e a Rosa do Povo, o V Flitabira acontece de 29 de outubro a 2 de novembro, reunindo mais de 60 autores nacionais e internacionais. Todas as atividades são gratuitas e ocorrem na Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade (FCCDA), com patrocínio da Vale por meio da Lei Rouanet – e apoio da Prefeitura de Itabira.

Entre os destaques da programação estão a abertura oficial no dia 29, às 18h, no Teatro da FCCDA, mesa com Sérgio Abranches, Jeferson Tenório e Bianca Santana sobre literatura e sociedade, além de debate com Itamar Vieira Junior, Morgana Kretzman e Matheus Leitão sobre terra, água e memória, como também uma conversa sobre futuridade, ancestralidade e imaginação com mediação de Afonso Borges.

Outro destaque do festival é o lançamento do livro Memórias do meu Quilombo”, de autoria da Dona Rosinha, matriarca do quilombo Morro de Santo Antônio, com participações de Conceição Evaristo, Fabiano Piúba, Luana Tolentino.

A programação inclui também participações das escritoras Isabela Noronha, Silvana Tavano e Teresa Cárdenas em mesas voltadas ao público infantojuvenil. E homenagens a Ana Maria Machado, Ignácio de Loyola Brandão, Milton Hatoum e Conceição Evaristo, celebrando a pluralidade literária brasileira.

Convite especial

É assim, com tudo isso e muito mais, que o Flitabira se afirma como mais que um festival: é um reencontro com a poesia, com a crítica e com a memória.

É a oportunidade de ouvir Drummond em sua terra natal, em todos os seus tons –  lírico, político, ecológico –  e de flanar por uma cidade que ainda pulsa sob os versos de seu filho mais ilustre.

Um filho que jamais abandonou sua terra, mesmo quando ela mudou tanto a ponto de figurar como uma “fotografia na parede” das boas recordações de sua infância entre “Casas entre bananeiras, mulheres entre laranjeiras, pomar amor cantar”.

Um filho que lutou como pôde pelos direitos de sua cidade frente à mineração, com a força da palavra e a coragem da denúncia daquilo que “de tudo ficou um pouco”.

Serviço

5.º Festival Literário Internacional de Itabira – Flitabira

De 29 de outubro a 2 de novembro, quarta-feira a domingo

Entrada gratuita

Local: Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade e avenida lateral.

Toda a programação será transmitida online pelo Youtube @flitabira

Acesse a programação completa aqui: https://flitabira.com.br/programacao-flitabira-2025/

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