Internações, eletrochoques e comunidades terapêuticas marcam debate da luta antimanicomial em Itabira
Passados 40 anos da histórica visita do psiquiatra italiano Franco Baságlia (1924-80) ao hospital Colônia, em Barbacena, que ele comparou aos campos de concentração nazista, quem pensou que formas desumanas de tratamentos psiquiátricos eram páginas viradas na história, com a vitória da luta antimanicomial, hoje está assustado com as novas diretrizes do Ministério da Saúde, publicadas em 9 de fevereiro.
As diretrizes definem a “nova” Política de Saúde Mental. Elas preconizam, entre outras “novidades”, a volta dos hospitais psiquiátricos, como são modernamente chamados os hospícios. E, com eles, o tratamento por eletrochoques.
Baságlia foi percursor do movimento da reforma psiquiátrica italiana, conhecida como Psiquiatria Democrática. O psiquiatra visitou o hospital Colônia em 1979 – e ficou horrorizado com o que viu.
Pacientes ficavam em pátios abarrotados sem sequer contar com diagnóstico para internação. Eram os párias da sociedade, prostitutas, mendigos, opositores políticos de quem mandava na política mineira na capital e no interior.
Com o retorno dos “modernos” hospitais psiquiátricos, outra recomendação é para que se volte a empregar aparelhos de eletroconvulsoterapia, “modernamente” concebidos para realizar tratamentos por eletrochoques.
As “modernidades” das diretrizes incluem, ainda, outras barbaridades, como a possibilidade de internar crianças e adolescentes em hospitais psiquiátricos. Com a inclusão, elas agora podem ser submetidas, “quando necessário”, ao suplício do eletrochoque como alternativa de tratamento na rede pública.
Até a visita de Baságlia ao hospital Barbacena, que desencadeou o movimento antimanicomial no Brasil, todos os pacientes internados no hospital Colônia eram submetidos ao “tratamento” com eletrochoques.
O hospital tinha capacidade para 200 leitos, mas chegou a ter mais de 5 mil internos. Estima-se que pelo menos 60 mil morreram e muitos corpos eram vendidos às faculdades de medicina do país.
Essa política desumana de tratamento foi mudada com a redemocratização do país – e com a luta antimanicomial da década de 1980. Culminou com fechamento gradual de leitos em hospitais psiquiátricos, o que estava em curso no país desde a reforma psiquiátrica de 2001.
Foi quando se passou a valorizar o tratamento humanizado, sem internações, nos Centros de Atendimentos Psiquiátricos (Caps), onde os pacientes passam o dia em atividades diversas – e à noite retornam para conviver com seus familiares em casa.
Volta ao passado
As novas diretrizes do Ministério da Saúde se voltam claramente contra esse tipo de atendimento humanizado, como se observam em Itabira nos Caps Adulto, Infantil (Capsi) e Álcool e Drogas (Capsad). Todos esses centros de atendimentos são dependentes de recursos do SUS – e correm risco de verem rarear os repasses necessários para as suas manutenções e atividades terapêuticas.
Foram essas preocupações que marcaram a semana de debates organizada em Itabira pelas equipes de Saúde Mental , da Secretaria Municipal de Saúde, como forma de marcar o Dia Nacional da Luta Antimanicomial (18). A semana contou com uma série de atividades com pacientes, familiares e profissionais da área de saúde mental.
Os debates se encerraram com uma mesa redonda sobre os Desafios da nova política de Saúde Mental, que teve participação do psicólogo Marcelo Amorim, percursor da luta antimanicomial em Itabira, e da psicóloga Marta Elizabete de Souza, ex-coordenadora estadual de Saúde Mental.
Segundo a psicóloga, o retorno da política de internação em hospitais psiquiátricos não é criação deste governo. Teve início com a decisão do Ministério da Saúde, em 2016, já no governo de Michel Temer, de suspender o fechamento de leitos em hospitais psiquiátricos, que voltaram a ser reconhecidos.
Essa política ganha impulso com o retorno das internações compulsórias de pacientes com sofrimento mental, que devem ocupar o lugar do atendimento humanizado dos Caps.
Nos hospitais, o paciente é isolado e se priva da convivência familiar. E é submetido a formas de tratamento que até então eram julgadas ultrapassadas. “O paciente perde a dignidade, não interage com ninguém, é muito desumano”, criticou a psicóloga Maria Elizabete.
Comunidades terapêuticas
Outra preocupação da palestrante é com as chamadas “comunidades terapêuticas”, que também ganham força com as novas diretrizes do Ministério da Saúde. Para ela, trata-se de uma nova modalidade de encarceramento.
É o que ocorre muitas vezes sob o manto da assistência psiquiátrica, não raro misturada à religião – outra panaceia perigosa. Nessas “comunidades terapêuticas” o paciente é também isolado de seus familiares – e é “entupido” de medicamentos.
São essas “novidades”, os hospitais psiquiátricos e as “comunidades terapêuticas”, que devem receber cada vez mais aportes de recursos do SUS, enquanto os repasses para os Caps devem minguar na proporção inversa, até inviabilizar os seus funcionamentos.
Com o retrocesso, perdem-se as conquistas que culminaram com a implantação, há mais de duas décadas, do Caps de Itabira, pioneiro na região, conforme acentuou o psicólogo Marcelo Amorim, para quem as novas diretrizes do Ministério da Saúde se inserem numa política mais ampla de desconstrução do próprio Sistema Único de Saúde.
Os hospitais psiquiátricos e as “comunidades terapêuticas” já estão virando um grande negócio para os empresários da saúde, que inclui a indústria de medicamentos e de equipamentos de eletrochoques.
Já para quem tem sofrimento mental, que precisa de tratamento, pode não haver outra opção que não seja a de se submeter compulsoriamente à “nova” ordem psiquiátrica da indústria medicamentosa e hospitalar de choque que ganha força no país.