“Faltou escala para mostrar as chuvas no mapa”, diz chefe do Inmet em Porto Alegre
Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini
Marcelo Schneider defende avanço da “cultura da meteorologia” para ampliar alcance e precisão dos alertas no Brasil
Por Gabriel Gama
Edição: Giovana Girardi
Agência Pública – A quantidade de chuvas que caiu no Rio Grande do Sul entre o fim de abril e o começo de maio foi tão grande que rompeu até mesmo a escala do gráfico usado para visualizá-las.
No mapa de anomalia de precipitação para maio elaborado pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), que compara os volumes observados no mês com a média histórica de 1961 a 1990 para o período, a régua tradicional de cores não foi capaz de dar conta da dimensão do fenômeno, que em algumas cidades alcançou valores superiores ao máximo de 400 mm que a escala abrange.
“Toda a área em azul mais escuro no estado ficou acima de 500 mm [de anomalia], de ponta a ponta. Em Porto Alegre, a normal climatológica para maio é de 112,8 mm, mas choveu 539,9 mm. Isso é quase cinco vezes mais chuva do que o esperado”, explica Marcelo Schneider, coordenador do distrito de meteorologia de Porto Alegre do Inmet. Na capital gaúcha, foi o mês mais chuvoso em 108 anos, desde quando começaram os monitoramentos contínuos do Inmet na região, em 1916.
Foi com esse cenário que Schneider trabalhou ao longo do último mês. A tragédia o levou a uma reflexão sobre a importância de ampliar o alcance das informações meteorológicas e qualificar a compreensão sobre elas, para que os alertas de eventos extremos sejam interpretados – e aplicados – de forma correta pela população e pelos gestores públicos.
É o que ele chama de “cultura da meteorologia”, com a incorporação do olhar da previsão do tempo nas políticas de enfrentamento aos extremos do clima.
Schneider defende a adoção de medidas como alertas automáticos em redes sociais, jornais, portais, TVs e rádios públicas, somada a maiores investimentos para ampliação da rede de estações meteorológicas e capacitação de profissionais no Brasil.
Essas iniciativas, segundo o meteorologista que coordena a previsão do tempo de toda a região Sul no Inmet, podem refinar os alertas emitidos pelo órgão para diversos fenômenos – nos níveis amarelo, laranja e vermelho – e garantir que o senso de urgência adequado seja transmitido com maior agilidade aos cidadãos e tomadores de decisão. Algo que, em certa medida, ele acredita que faltou durante a tragédia que atingiu o Rio Grande do Sul.
“Sem dúvidas, há espaço para a comunicação chegar de forma ainda mais rápida e efetiva. A informação [da previsão do tempo] já melhorou muito nos últimos anos, conseguimos prever chuvas extremas com uma antecipação de 24, 48, 72 horas, às vezes até cinco dias”, disse em entrevista à Agência Pública.
“Mas, para ter a preparação para esse cenário de maior frequência de tempestades, temos que captar a atenção da maior quantidade de pessoas e tomadores de decisão, para evitar falsos alarmes e falsas interpretações.”
Desde 26 de abril, dias antes dos registros dos maiores índices pluviométricos, o Inmet já alertava para o perigo de chuvas volumosas no estado. Para o meteorologista, essa antecipação foi bem aproveitada por algumas cidades, principalmente aquelas que já haviam sido destruídas nos desastres de setembro e novembro de 2023, mas nem todas encararam os alertas com seriedade.
A seguir, confira os principais trechos da entrevista com Marcelo Schneider:
Em entrevista ao portal GZH em 29 de abril, o senhor disse que “a principal dificuldade é a informação da previsão meteorológica chegar às prefeituras, aos comitês [de bacia hidrográfica], em cidades menores”, e também afirmou que a preocupação com a transmissão mais rápida da urgência às prefeituras foi um dos motivos que levaram o Inmet a elevar o nível de alerta das chuvas, de laranja para vermelho. Como melhorar a comunicação para garantir que o senso de urgência compatível com o alerta seja compreendido e levado a sério pelos gestores?
A melhoria deve ser contínua. As prefeituras têm de possuir um controle sobre as defesas civis, não só no horário formal, mas também fora do horário, para poder tomar uma decisão mais efetiva no sentido da evacuação. Isso ainda precisa melhorar muito.
Creio que ainda haverá muitas pesquisas em relação a esta enchente, porque os níveis de medição foram bem maiores do que em 1941 [até então, a maior enchente que havia sido registrada em Porto Alegre]. Houve [desde aquela época] um crescimento muito amplo da cidade, da urbanização e do povoamento nas bacias de rios, que certamente se relaciona com a tragédia.
Nós temos discutido em várias reuniões o que pode melhorar. Algumas sugestões são implementar avisos automáticos em redes estatais, em tempo real, principalmente quando os alertas são dos níveis laranja e vermelho. Colocar a informação da meteorologia de forma fixa na legenda de programas de televisão, com o aviso de ventos fortes, chuvas extremas etc. E também em rádios e jornais, principalmente de emissoras públicas.
Quando falamos de eventos extremos, o problema principal é ter dados mais precisos e regionalizados ou é a resposta que os gestores têm a partir das informações da meteorologia?
É a combinação das duas coisas. Hoje, já temos uma quantidade suficiente de dados, tanto é que conseguimos fazer os avisos, mas ainda é possível melhorar.
Sem dúvidas, há espaço para a comunicação chegar de forma ainda mais rápida e efetiva. A informação [da previsão do tempo] já melhorou muito nos últimos anos, conseguimos prever chuvas extremas com uma antecipação de 24, 48, 72 horas, às vezes até cinco dias.
Mas precisamos ter uma combinação melhor entre os radares meteorológicos, a cobertura desses equipamentos precisa evoluir muito, e não só no Rio Grande do Sul, mas no Brasil como um todo. Isso geraria uma maior confiança na previsão de curto prazo, aquela previsão de uma hora de antecedência.
Essa previsão no curto prazo é realmente mais difícil de fazer, de chuvas torrenciais de 150, 200 mm [que vão cair] em poucas horas. Mesmo assim, conseguimos prever a ocorrência de chuvas excessivas e a alta probabilidade de inundações, e por isso emitimos o alerta de forma assertiva.
Para ter a preparação para esse cenário de maior frequência de tempestades, temos que captar a atenção da maior quantidade de pessoas e tomadores de decisão, para evitar falsos alarmes e falsas interpretações. Isso envolve a preparação das pessoas, com cursos e treinamentos dos próprios meteorologistas, mas principalmente daqueles que vão receber a informação nas defesas civis.
É importante entender que, quando emitimos um alerta vermelho, não costumamos fazer de forma exagerada, para não criar um alarme falso. Então isso envolve muita responsabilidade. É uma tarefa muito grande passar essa informação, e não estou falando só de chuvas, mas também de ventos fortes, temperaturas extremas e incêndios.
Os alertas não geram uma obrigatoriedade para os gestores públicos, mas nós seguimos uma estrutura: o Inmet avisa diretamente a Defesa Civil nacional, que, por sua vez, orienta as defesas civis estaduais, que acionam as defesas civis municipais para tomar as decisões.
Se um outro desastre da mesma magnitude atingisse o Rio Grande do Sul daqui a alguns meses, como meteorologista, o que você gostaria que fosse feito diferente?
A área da meteorologia precisa de mais investimentos no Brasil. Precisamos de mais manutenção nos distritos meteorológicos, novas estações de hidrometeorologia. As estações do Inmet coletam diversas variáveis atmosféricas: temperatura, umidade do ar, pressão, vento, chuva e direção da rajada de vento. Nós usamos todos esses dados para fazer monitoramento e precisamos de recursos para gerenciar essas estações.
Também é válido explicar que a previsão do tempo tem três etapas: antes, durante e depois de um evento. No momento prévio, fazemos muitas pesquisas, olhamos os dados do passado para tentar projetar o futuro. Observamos a influência do El Niño, La Niña, e calculamos o que pode acontecer.
No segundo estágio, dias antes ou durante o evento, é quando usamos toda a estrutura instalada, todas as estações de monitoramento. Comparamos as chuvas com a média, analisamos se irá chover ainda mais, fazemos correlações com outros dados. E, por fim, o momento final é de balanço, de avaliar como o evento se insere na série histórica.
Precisamos de aprimoramentos nessas três fases, com mais recursos e contratação de funcionários. Infelizmente, houve essa coincidência terrível do “Enem dos concursos” [adiado para agosto por conta da tragédia], que pleiteava vagas para o Inmet e nos daria um bom incremento.
A cultura da meteorologia também precisa avançar no Brasil. Eu acho que já evoluímos bastante nisso, mas para estarmos preparados para eventos cada vez mais extremos, é algo bem imediato.
O que o sr. quer dizer com cultura da meteorologia?
É justamente o maior alcance das informações da meteorologia, as pessoas entenderem o que elas significam e como se comportar diante de um alerta. Também envolve mais investimentos na área, incorporando cada vez mais esse olhar nas políticas frente aos eventos extremos.
Como esse trabalho pode ajudar no enfrentamento desses eventos?
Eu diria que principalmente para captar mais pessoas. A meteorologia precisa muito disso. Essa área é suscetível a perda de credibilidade, muitas pessoas perderam a confiança na previsão do tempo por conta de uma ou outra que não se concretizou.
Não é fácil fazer meteorologia. Mas quanto mais informações e citações corretas nós tivermos, quanto mais investimento e comunicação, nós estaremos em melhores condições de lidar com cada evento.
Falando sobre o Rio Grande do Sul, estamos suscetíveis a esses eventos todos os anos. E o Brasil todo também, com episódios de chuvas, ventos, deslizamentos, secas e ondas de calor.
Dentro dessa cultura meteorológica de acessar cada vez mais pessoas, outro aspecto é o treinamento dos próprios meteorologistas. Desenvolver a habilidade de passar informações com credibilidade, não exagerar, mas também não omitir nada e chegar cada vez mais perto dos tomadores de decisão.
Outra coisa que veio para ficar é a presença dos gestores de clima, os próprios meteorologistas ou hidrometeorologistas, em secretarias nas grandes prefeituras. Penso que a contratação desses profissionais será uma necessidade cada vez maior.
Mesmo com tudo isso, ainda assim tem o próprio fator da meteorologia, da imprevisibilidade. Mas, quanto mais as pessoas conhecerem da ciência e souberem como esses eventos se formam e são previstos, menos difícil será enfrentá-los.
O El Niño está perdendo força e os centros meteorológicos mundiais indicam que haverá uma rápida transição para o La Niña entre julho e setembro deste ano. Sabemos que o fenômeno costuma trazer muita seca para o Sul do Brasil. O que podemos esperar no Rio Grande do Sul?
Tem essa possibilidade de o estado migrar de um evento de chuva extrema para uma seca extrema, mas ainda vai haver uma transição. Estamos em junho, e muito provavelmente o impacto da La Niña será sentido no Rio Grande do Sul apenas na primavera, de outubro em diante, principalmente. Antes disso, vamos conviver com essa variação bastante grande entre períodos quentes e secos, frios e úmidos.
E há a perspectiva das chuvas retornarem, não aos níveis que vimos em maio, mas ainda bem acima da média. Especialmente do norte do Rio Grande do Sul e na divisa com Santa Catarina, na virada de junho para julho.
Ainda não temos uma certeza da intensidade da La Niña, se será fraca, moderada ou forte. Caso se concretize uma condição que gere um clima mais seco, o setor agrícola será o mais impactado. Como o Inmet faz parte do Ministério da Agricultura e Pecuária, temos um comitê permanente de agrometeorologia, do qual fazem parte várias instituições e pesquisadores. Ele é comandado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e tem o papel de alertar na melhor época possível, semanas ou meses antes do possível quadro, como o clima impactará no setor agrícola dos estados.
Dependendo do nível de umidade prevista, é possível fazer uma adaptação do cultivo. Sobre o último evento de chuvas extremas, estamos fazendo um levantamento final das áreas castigadas. O solo de vários locais ficou praticamente impraticável para a agricultura.