Pombas

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Carlos Drummond de Andrade

Tranquilo em casa, e a derrota do Japão, trazida na voz do rádio, altera a substância do dia, enche-o da felicidade menos egoística de todas, que é a felicidade do individuo nutrida da alegria geral.

São esperanças, projetos, imaginações, memórias, a certeza de um passo à frente no caminho do aperfeiçoamento da vida, essa nossa ignóbil vida de senhores e escravos, que vai arrebentando no mundo inteiro à força de tornar-se intolerável, e graças à consciência maior das vítimas.

Antes de ontem ruía o ignominioso edifício nazista, ontem os trabalhistas subiam ao poder na Inglaterra, hoje cai mais uma cidadela do imperialismo, no Brasil já se pode fazer alguma coisa em favor do povo, amanhã, quem sabe… Mas afinal, nós sabemos.

Sabemos que a desagregação das forças de retrocesso, exploração e violência se vai operando inexoravelmente, e que estas sóbrias palavras “chegou a era do desenvolvimento pacífico”, adquirem um sentido de verdade que ilumina os cegos, os descontentes, os furiosos e os desencantados.

Pomba da Paz com Sol Amarelo (1949), Pablo Picasso (1881-1973).

O Japão agressivo não agredirá mais, aprendendo com as artes da paz o segredo da convivência harmoniosa com os outros povos. Mas eu não quero pensar no Japão, meu pensamento todo vai de repente para as pombas da avenida Presidente Wilson, que tiveram feriado e estão a aproveitá-lo.

Será talvez uma associação barata de ideias: paz, pombas, Wilson… Não importa.

As pombas estão esvoaçando agora no bairro em que escrevo e dentro de mim, e se insinuam nestas palavras, e arrulham, tornam a esvoaçar, e sujam o seu pequenino sujo festivo, e inundam a mesa de todas as sugestões poético-antológicas, salve as pombas!

Não são pombos-correios utilitários e profissionais, dignos de respeito mas excessivamente mecanizados. São pombas vagabundas, no melhor sentido da palavra, irresponsáveis, irrequietas, porquinhas e até docemente comestíveis, mas que ninguém tente comê-las, conhecem todos os truques e zarpam.

Paloma de la Paz (1961), Pablo Picasso

Próximo à redação de Leitura, na via larga onde passam ônibus e autos, em frente aos escritórios onde datilógrafas amenas fazem estatísticas sobre a superinflação, em frente à vila comercial, à pressa, ao peito da cidade que arfa, minhas pombas pacificas buscam seu alimento e criam um novo estatuto social.

Enchem a rua e não temem ser atropeladas. Não fogem atarantadamente se o Grande Destruidor de Pombas, Vidas Humanas e Anexos, que é multiforme e tem mil pseudônimos, aparece na chispada ou de mansinho.

No passo cômico de pombas, retiram-se para o refugio que ainda resta aos vivos nas monstruosas cidades de hoje, que Le Corbusier desejaria ver riscadas do mapa. E se alçam voo até o edifício do outro lado é porque no seu pensamento de pombas nasceu a ideia de viagem, a ideia de brinquedo, a ideia de jogo ou a ideia de repouso sobre a tolice urbana. Ideias de pomba, que não alcançamos.

Pomba da Paz (1949), Pablo Picasso

Falei em novo estatuto social, talvez seja excesso de otimismo colombófilo, mas gosto de pensar numa humanidade reconciliada com os bichos, em que a gente aprenda de novo a interpretar o canto, o urro, o pio e o gesto mais secreto dos animais.

E pombas na rua, seja em Veneza, onde só as conheço de cinema e cartão postal, seja na avenida Almirante Barroso onde por tanto tempo um camarada simpático embora meio cartazista lhes dava comida, seja enfim na avenida Presidente Wilson, que é onde elas ficam mais à vontade, parece – pombas na rua me dão sempre, a imagem dessa confraternização de incalculável efeito para o equilíbrio íntimo do homem – e que será também um fator para a melhoria de vida.

Congresso Mundial dos Partidários da Paz, Paris, 1949 (Reprodução)

Não sei como apareceram ali aquelas pombas multicores, nem me preocupa saber. Como prosperam (são legião) e se fizeram amar dos trabalhadores da vizinhança, que se constituíram em defensores naturais daquela república realmente livre.

De pura vadiação mental, conjecturo que as terá atraído um senhor de bronze e de barbas*, sentado do outro lado de Leitura, junto à fachada de uma casa onde se toma chá às quintas feiras e se recebe uns envelopezinhos cheios de notas, um amor de envelopes.

O senhor de bronze está ali há anos, do lado de fora, como a insinuar, na sua timidez de gago, que prefere não entrar mais lá dentro. Mal grado a sua rigidez metálica, há por trás das barbas a compreensão do vivo, do pequeno e do alado.

Esse homem fez falar as agulhas e as linhas, os burros dos velhos fiacres, os bichinhos mais variados, ouvia as casas e as árvores, negociava com os elementos, tudo isto sem se descurar da criatura humana em sua complexidade. Acredito que a estátua ame as pombas, e que estas lhe paguem esse amor, compensando-a da solidão e da má literatura.

Pombas voai! Sobre o Japão dominado em seu ímpeto cruel, sobre os escritórios comerciais onde já se vislumbra o pensamento progressista, sobre nossa grande pátria em marcha para eleições livres e honestas e o parlamento do povo, apontado por Prestes, sobre esta crônica que termina, sobre a azul quinta-feira, sobre a desmantelada Berlim e os jovens comités democráticos, sobre as multidões expectantes, pombas, palomas nerudianas, meigas juritis e outras espécies, voai, voai!

* Machado de Assis

[Leitura (RJ), agosto de 1945. Hemeroteca da BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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