Errante imagem – Correio da crônica

Por Carlos Drummond de Andrade

De Brasília, alguém que se assina X.A. e tem letra feminina escreve-me a propósito da flor-de-seda, ou flor-de-maio, celebrada nesta coluna em ocasião devida: “Tenho uns vasos de flor-de-maio, plantados há mais de 50 anos por minha mãe. Acompanham-me nas minhas andanças, sempre florindo em maio. Já foram seus vizinhos por 3 anos, aí na rua na Joaquim Nabuco. Acabei dando com os costados em Brasília. Para minha surpresa (e alegria), meus vasos cobriram-se de flores em janeiro do ano passado. Em maio novamente elas voltaram. No mês de agosto houve nova floração. Pelo visto, certo mesmo nos dias de hoje só temos a morte…”

Passo a comunicação, em primeiro lugar, à leitora Jô, do Rio, que me puxa as orelhas por tratar de assuntos frívolos, quando ela vê “o povo na cruz”. Não me sinto traidor do povo ao escrever de flores que dão ornamento à vida. Se me impusessem a tirania dos assuntos, forçando-me a abandonar os da vida cotidiana e o ângulo de humanidade pedestre em que gosto de situá-los, eu me sentiria bastante infeliz, preferindo calar a boca. Sempre achei que há nos jornais lugar para o que não é aparentemente importante e notícia, mas que toca a sensibilidade ou a curiosidade da gente. O pé de flor, por exemplo, que contraria os regulamentos da natureza e se desmanda em florações extras.

JB, 4/6/1965 Acervo Casa de Rui Barbosa)

Em segundo lugar dou ciência aos floricultores, e por último aos que continuam vendo em Brasília um lugar de exílio, senão o próprio exilio vestido de arquitetura e governo. Propriedades mágicas do seu ar tornam a vida desejável, a ponto de interessar assim uma planta que se guardava circunspectamente para um só mês do ano.

Se lá a flor-de-maio ficou tão à vontade, é de crer que a cidade futura seja uma reunião feliz de pessoas e elementos naturais – como há de ser a cidade dos nossos sonhos – vindo a compensar talvez, em parte, os duros sacrifícios de sua criação afobada, que por sinal tanto contribuíram para botar “o povo na cruz”. Brasília se vai tornando simpática a poder de notícias como essa. É de desejar apenas que, os nascimentos, lá, não peguem o ritmo da produção floral; do contrário…

Domingos Horta, de São João del Rei, diz que voltou a Itabira e lá escutou a hora do fogo: hora em que se bombardeiam os depósitos de ferro, bombardeio tremendo, para encher de minério os vagões que o levam à exportação deixando  buracos, na cidade “que se dá totalmente sem nada receber”.

E pede que escreva sobre isto. Pra quê, amigo Horta? Já muito brinquei nessa novela, e o resultado são maiores buracos, até que um dia, tornando-se toda Itabira um só e imenso buraco, deixe de interessar à indústria ladra da mineração – e do fundo desse buraco, brotará em paz uma flor-de-maio-de-toda a eternidade. Amém.

[Fundo CDA, no acervo Casa de Rui Barbosa-Rio. Pesq./mcs]

 

 

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