Eneida e o Fazendeiro do Ar
Eneida de Moraes e CDA (Reprodução/Acervo Cristina Silveira)
Reportagem Literária de Eneida
Carlos Drummond de Andrade por ele mesmo
Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças – Com a palavra o fazendeiro do ar
“UMA rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração. Nessa rua passam meus pais, meus tios, a preta que me criou. Passa também uma escola – o mapa – o mundo de todas as cores.
Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Tive ouro, tive gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Meu verso é a minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça. Meu verso é minha consolação. Não serei o poeta de um mundo caduco. Lutar com palavras é a luta mais vã. Luto corpo a corpo, luto todo o tempo, frio há para todos os lados, e um frio central mais branco ainda.
Quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra, disse: “– Vai Carlos, ser gauche na vida. Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu, sozinho menino, entre mangueiras lia a História de Robson Crusoé. Eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robson Crusoé. Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho. Está morto, que importa? Ó meu pai, arquiteto e fazendeiro. Fica tranquilo: trabalho.”
Sou apenas um homem
“Um homem pequeno à beira de um rio. Passo a mão na cabeça que vai embranquecer. O rosto denuncia certa experiência. A mão escreveu tanto e não sabe cantar.
Lembro alguns homens que me acompanham e hoje não acompanham. Ignoro profundamente a natureza humana e acho que não devia falar nessas coisas. Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo. Debaixo de cada árvore faço minha cama, em cada ramo dependuro meu paletó. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra.
Não sou alegre, sou até muito triste. Preso à minha classe e algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Mudou-se a rua da infância. A memória infantil e o outono pobre vasam no verso de nossa urna diurna. A infância está perdida. Mas a vida não se perdeu. Oh que saudades não tenho de minha casa paterna.
Sou apenas o sorriso na face de um homem calado. Somos apenas uns homens e a natureza tratou-nos. E fomos educados para o medo. A pequena área da vida me aperta contra seu busto; é como se eu me queimasse todo de pungente amor. Estarei mesmo sozinho? Ainda pouco um ruido anunciou vida ao meu lado. Portanto, solidão é palavra de amor.
Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. Vontade de cantar. Mas tão absoluta que me calo, repleto. Que pode uma criatura senão amar? Há que amar e calar. Para fora do tempo arrasto meus despojos e estou vivo na luz que baixa e me confunde. E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno. O edifício é sólido e o mundo também.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação. Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. Este tempo de partido, tempo de homens partidos. E a noite só existe a tristeza do Brasil.
Mas já não há fantasmas no dia claro, tudo é tão simples, tudo tão nú. Em face dos últimos acontecimentos, oh! Sejamos pornográficos. Precisamos descobrir o Brasil, precisamos educar o Brasil, precisamos ouvir o Brasil, precisamos adorar o Brasil.
Os desiludidos do amor estão desfechando tiros no peito. Desiludidos, mas fotografados. Mas as vozes do morro não são propriamente lúgubres. Não se mate, oh não se mate.
Na curva perigosa dos cinquenta. Já não posso classificar os bens preciosos. Tudo é precioso. Como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem… sem que ele estale. Há dias que ando na rua de olhos baixos para que ninguém desconfie, ninguém perceba que passei a noite chorando.
De novo a estrela brilhará mostrando o perdido caminho da perdida inocência. Há muito suspeitei o velho em mim. A madureza sabe o preço exato dos amores, dos ódios, dos quebrantos. Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram.
O poeta declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista. Serei carga jogada às ondas, mas as ondas também elas, secam e o sol brilha para frente. Ó vida futura, nós te criaremos. Tal uma jamina, o povo, meu poema te atravessa.
Deus me abandonou no meio do rio. Estou me afogando. Este país não é meu nem vosso ainda, poetas. Mas ele será um dia o pai de todo homem. Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas ficou muito espantado e achou uma brutalidade.
Na minha rua estão cortando árvores, botando trilhos, construindo casas. Só minha filha goza o espetáculo. O tempo – que fazer dele? Como adivinhar, Luís Maurício, o que cada hora traz em si de plenitude e sacrifício?
É preciso fazer um poema sobre a Bahia… Mas eu nunca fui lá.
Proibido pisar no gramado. Talvez fosse melhor dizer: proibido comer o gramado.
Vou subir a ladeira lenta em que os caminhos se fundem. A noite caiu em minh’alma fiquei triste sem querer. A procura de amigos num mundo enfastiado que já não crê nos bichos e duvida das coisas.
Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.”
– * –
Eis um auto retrato do poeta Carlos Drummond de Andrade. Para realizá-lo retirei linhas de versos de vários de seus poemas dos livros: Alguma Poesia (1925-1930); Brejo das Almas (1931-1934); Sentimento do Mundo (1935-1940); A Rosa do Povo (1943-1940); Novos Poemas (1946-1947); Claro Enigma (1948-1951); Fazendeiro doo Ar (1952-1953).
A livraria José Olímpio Editora acaba de reunir a obra de Carlos Drummond de Andrade num só volume de 569 páginas. Foi um dos mais belos presentes dessa querida editora ao povo brasileiro ao findar o ano de 1954.
Nas “notas”, nosso imenso poeta declara que a publicação de “obras completas” não implica a aceitação, pelo autor, de tudo quanto ele já compôs. E diz mais: “Há partes que o tempo tornou peremptas, mas que não podem ser riscadas do conjunto, como a vida não pode ser passada a limpo”. E confessa: “O autor não se arrepende nem se orgulha de haver mudado. Reconhece apenas que mudou”.
– De onde vem o título Fazendeiro do Ar, para seu novo livro? perguntou a Carlos Drummond de Andrade outro poeta – Geir Campos – realizando uma entrevista publicada na Revista da Semana, ano passado.
– Os meus antepassados, inclusive meu bisavô, meu avô e meu pai, foram todos fazendeiros em Minas; quando chegou a minha vez, a fazenda havia acabado. Assim, sem terra, considero-me fazendeiro do ar… daí o título.
Dessa conversa de poetas na qual um se fantasiou de repórter, extraio, para meus leitores, estas declarações de nosso “fazendeiro do ar”:
– Escrever, para mim, é fazer poemas, e passo meses sem compô-los. Não faço a mão.
– Versos para jornal, todos os dias e para ninguém, algumas vezes.
“E se lhe oferecessem uma cadeira na Academia Brasileira de Letras? perguntou Geir Campos.
Respondeu Drummond: – Até agora ninguém ofereceu, mas creio que havia de preferir o sofá de minha velha sala. (Não escreveu ele num dos poemas: “Como estou bem nesta poltrona de humorista inglês?”)
E mais declarações do poeta:
– Tenho alguns amigos verdadeiros, que não mereço e que fizeram bela a minha vida.
– A vida não me negou nada, e eu mesmo lhe pedi pouco. Portanto, acho que sou feliz.
“Qual o maior problema de nosso país? Perguntou Geir Campos.
– Ainda estamos na idade da fome.
“Gostaria de viver como um Rilke, por exemplo?”
– Não adianta viver como Rilke, sem ser Rilke.
– * –
A Carlos Drummond de Andrade e aos leitores, peço desculpas se esta conversa literária não estiver à altura da obra do grande poeta; a Geir Campos agradeço a colaboração e sinto-me no dever de declarar ainda que, para dar aos leitores do Diário de Notícias um auto retrato de Carlos Drummond de Andrade repetindo em prosa corrida as linhas de seus magníficos versos, muito e muito trabalho tive; mas nada foi mais doce a meu coração do que realizar essa tarefa que me tracei para uma vez louvar e bendizer o poeta e o homem que são grandes porque são um só.
Daí o título: Carlos Drummond de Andrade por ele mesmo.
[Diário de Notícias (Rio), 16/1/1955. Hemeroteca da BN-Rio]