Em meio à guerra, bispos da Renascer fazem turismo em Israel e se encontram com presidente
Sem Itamaraty, líderes evangélicos responsáveis pela Marcha para Jesus realizam encontro oficial em Israel
Foto: Reprodução
Por Mariama Correia
Edição: Bruno Fonseca
Colaboração: Amanda Audi, Danilo Queiroz
Agência Pública – Viagens para Israel guiadas por pastores são eventos comuns entre os evangélicos brasileiros. Mas a programação de uma caravana comandada pelo apóstolo Estevam Hernandes e pela bispa Sônia Hernandes, líderes da Igreja Renascer em Cristo, chama a atenção pela intensa agenda política.
A visita acontece neste mês de junho – em meio à guerra em Gaza, aos estremecimentos das relações diplomáticas com o governo brasileiro e retirada do embaixador brasileiro de Tel Aviv.
A programação lembra uma missão diplomática, com uma reunião com o presidente de Israel, Isaac Herzog, encontros com autoridades do Ministério das Relações Exteriores do país e sessões informativas em locais atingidos por ataques do Hamas.
A comitiva é formada por cinco lideranças de igrejas evangélicas, incluindo as da Renascer e o pastor Edson Rebustini, da Igreja Bíblica da Paz, em São Paulo.
De acordo com a Assessoria de Imprensa da Renascer em Cristo, o encontro com o presidente de Israel foi articulado pela Confederação Israelita do Brasil (Conib), que é presidida pelo médico Cláudio Lottenberg, ex-secretário de Saúde de São Paulo no governo de José Serra (PSDB), com apoio da Conexión Israel, uma empresa que organiza missões para “fortalecer conexões entre Israel e o mundo latino-americano”.
De acordo com o diretor-geral da Conib, Sérgio Napchan, “esta foi a primeira vez que a entidade articulou uma reunião de pastores evangélicos com o presidente de Israel”. A agenda, segundo ele, foi um “pedido pessoal do apóstolo Hernandes a Cláudio Lottenberg”, de quem é amigo de longa data.
Em nota, a entidade informa que “promove encontros entre personalidades e autoridades dos dois países com frequência, como neste caso da viagem dos pastores”. A Agência Pública perguntou ao Itamaraty se o governo brasileiro tinha sido informado do encontro, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
Por que isso importa?
- Turismo cristão em Israel é uma prática comum, mas a visita de uma comitiva de pastores brasileiros ao país, em meio à guerra, chama atenção pela agenda política e pelo reforço de uma narrativa favorável ao lado israelense no conflito.
A reunião da comitiva de pastores com o presidente de Israel aconteceu na terça-feira, 4 de junho, na residência presidencial, em Jerusalém, com a presença também da primeira-dama Michal Herzog. Ela já morou no Brasil e fez um agradecimento em português. Por ser um regime parlamentarista, além do presidente, Israel tem um primeiro-ministro, cargo atualmente ocupado por Benjamin Netanyahu.
“No Brasil e pelo mundo vemos irmãos e irmãs da comunidade cristã que entendem que fomos atacados por terroristas e estamos lutando contra forças do mal. Queremos mandar uma mensagem para nossos irmãos de todas as igrejas: nós amamos vocês e queremos vê-los aqui na Terra Santa”, disse Isaac Herzog. “Nós amamos Israel, oramos por Israel, e queremos que essa aliança jamais seja rompida”, respondeu Hernandes, que fez uma oração no fim do encontro.
Os Hernandes são muito ativos politicamente. Eles fazem parte do grupo de pastores que esteve mais próximo do ex-presidente Bolsonaro (PL) durante seu governo. Em 2009, eles foram condenados por crime de evasão de divisas porque declararam falsamente para a alfândega norte-americana que não portavam mais do que 10 mil dólares. Eles estavam com mais de 50 mil dólares em espécie.
A bispa Sônia e o apóstolo Estevam também são visitantes assíduos de Israel, onde organizam Marchas para Jesus desde 2013. No Brasil, o evento é consagrado no calendário de várias cidades como um dos maiores eventos públicos evangélicos. O apóstolo também é embaixador do Friends of Zion Museum, em Israel, que conta histórias de cristãos.
O casal da Renascer está registrando todos os passos da viagem em Israel em vídeos e fotos no Instagram. No dia 5 de junho, eles filmaram a visita a um cemitério de veículos, em Gaza. O vídeo foi compartilhado na conta do apóstolo e da empresa que organiza a caravana, a Hebrom Turismo, que pertence à bispa Fernanda Hernandes, filha do casal e vende pacotes para a viagem a partir de 8,8 mil dólares (aproximadamente R$ 46 mil), divididos no cartão de crédito.
No vídeo, o apóstolo e a bispa mostram o que seriam destroços de carros atingidos por ataques do Hamas. Em vários posts, eles reforçam a narrativa de Israel está sendo vítima do terrorismo e falam dos reféns do Hamas. “É realmente impressionante essa cena do que é o terrorismo”, disse o apóstolo apontando para um carro com várias marcas de tiros em Gaza.
O casal da Renascer também teve reuniões no Ministério das Relações Exteriores com Omer Katz, diretor do departamento do Brasil e Caribe. Em fevereiro deste ano, Katz se reuniu com deputados federais brasileiros, entre eles Kim Kataguiri (União Brasil-SP) e a bolsonarista Carla Zambelli (PL-SP), para angariar apoio político para o Estado de Israel no conflito armado com a Palestina.
Em uma entrevista ao Ministério do Turismo de Israel, a bispa Sônia fez propaganda da segurança do país quando perguntada se tinha algo para dizer aos turistas brasileiros. “Eles podem vir”, afirmou. “Tem extremíssima segurança, nós andamos por todos os lugares, fomos até a faixa de Gaza.”
Visita de bispos atende interesse geopolítico de Israel, dizem pesquisadores
Pesquisador de geopolítica e doutorado em geografia das relações internacionais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Gustavo Glodes Blum, diz que a agenda política do casal de pastores evangélicos em Israel pode ser entendida menos como uma tentativa de diplomacia paralela de lideranças evangélicas brasileiras e mais como uma estratégia do próprio governo israelita.
“Tem um conceito na política externa de Israel que é o Hasbará, mais ou menos o que chamamos de soft power, uma tentativa de influenciar culturalmente discursos políticos sobre um país”, explica.
“Desde o começo do conflito entre Israel e Palestina, em outubro do ano passado, houve uma queda significativa do apoio público ao estado de Israel, em razão das práticas genocidas. Adotar uma estratégia para a América Latina é uma forma de mudar a opinião pública e quebrar consensos sobre o conflito entre públicos específicos, como os cristãos”.
Ele lembra que as caravanas de evangélicos, que se atraem pelos cenários bíblicos, movimentam a economia e o turismo do país. O pesquisador observa que as visitas dos pastores a locais onde aconteceram conflitos recentes “mobilizam uma narrativa sobre o conflito e cria novos locais de memória de Israel”.
“As igrejas evangélicas, sobretudo as neopentecostais como a Renascer, têm uma teologia do fim do mundo, que associa a volta de Jesus ao estabelecimento de um reino de Israel. Não deixa de ser antissemitismo, porque os judeus teriam que se converter para serem salvos, mas o governo de Israel faz vista grossa, pois vê nisso uma forma de manter o apoio a um estado teocrático, militarizado, que privilegia apenas uma etnia, características que se conectam com as extremas direitas ao redor do mundo.”
Michel Gherman, professor de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém acredita que a “Conib levar líderes evangélicos ligados a extrema direita e acusados de crimes fiscais para conversar com o governo de Israel é uma estratégia de propaganda do governo israelense, que também é política”, diz.
“É uma forma de produzir uma narrativa de acusação e utilizar politicamente uma suposta ameaça à civilização judaica cristã e fortalecer uma percepção de uma Israel imaginária defensora dos cristãos – que é branca, armada, e ultraliberal”, afirma o professor.
Gherman lembra que, três meses atrás, governadores brasileiros, entre eles o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), foram à Israel e fizeram encontros semelhantes. “Eles foram para um evento numa cidade que é centro da população brasileira em Israel e o discurso de Tarcísio foi para o público da extrema direita brasileira, uma venda de uma Israel imaginária”, explica.