Duas almas mortas do poeta Drummond
A crônica da semana – utopias literárias – é de Carlos Drummond de Andrade. Foi publicada no Anuário Brasileiro de Literatura Irmãos Pongetti em 1942.
Para apresentá-la, recorreu-se a Bibliografia Comentada de CDA (1918-1934), pesquisa primorosa do poeta, ensaísta e tradutor Fernando Py (1935-), que inda bem está vivíssimo e o Memorial CDA podia convidá-lo para uma palestra.
A Bibliografia é obra valiosa como instrumento de pesquisa ou como acompanhante na simples leitura da obra drummondiana, dado que oferece a possibilidade de saber por onde andou a poesia e crônica que se está lendo.
Os 639 verbetes contemplam a trajetória de crônicas e poesias publicadas pelo poeta da Cidadezinha. Para cada verbete, a lupa do Py acerta as datas e fontes, às vezes recorre ao Drummond para tirar a dúvida, em texto conciso de sombras poéticas a oferecer a leitura saborosa.(Cristina Silveira, A Velha)
Dois poetas mortos em Minas Gerais
Carlos Drummond de Andrade
Ascânio Lopes
Belo Horizonte, 1931 – A passagem de Ascânio Lopes pela rua da Bahia é o único capítulo da sua vida que eu conheço, e esse capitulo me enche de saudade.
Uma noite, Martins de Almeida contou-me que descobrira um poeta na pensão onde morava: era de Cataguases e escrevera um poema excelente sobre sua terra natal. Logo depois, Emílio Moura levava o poema ao “Diário de Minas”, publicando-o com palavras de admiração.
Foi esta a primeira coisa de Ascânio Lopes que se publicou (6 de março de 1927) e é das melhores que há nos “Poemas Cronológicos”.
Apresentado o Ascânio, ele sorriu para mim com timidez, disse duas ou três palavras só. Fiquei gostando desse moço com quem seria incapaz de manter uma longa conversa (e daí, para que uma longa conversa?) mas em quem enxergava uma alma finamente colorida, meiga, séria e encharcada de poesia. Não pretendo entender muito de almas; julgo, porém, ter encontrado desde o primeiro dia a chave a abrir desta, que por pudor nunca cheguei a abrir. Desse modo, distante, mas realmente bem perto de Ascânio, eu fui dos seus amigos mais certos.
Tinha 23 anos e não se poderia dizer que viveu, se não fosse a poesia, que inundou o seu minuto apressado sobre a terra. Aos 23 anos, a gente só sabe da vida o que ela consente em noticiar – muito pouco – outro pouco de que se tem a intuição, e nada mais.
Salvo quando o indivíduo é poeta, caso de Ascânio Lopes e dos que, como ele, conheceram a vida sem terem tido tempo de vive-la; dos que adivinharam. Os versos ascanianos dos “Poemas Cronológicos” são adivinhações, ou por outra, prêmios de loteria que o autor ganhou sem nunca ter comprado bilhete.
Era ainda naquele tempo (bom tempo) em que se tomava cerveja e até mesmo café com leite na Confeitaria Estrela. Entre dez e onze horas, o pessoal ia aparecendo e distribuindo-se pelas mezinhas de mármore. Discutia-se política e literatura, contavam-se histórias pornográficas e diziam-se besteiras, puras e simples besteiras, angelicamente, até se fechar a última porta (você se lembra, Emílio Moura? Nova?).
Ascânio chegou quando o Estrela já entrava em decadência, e nas mesinhas o mosquito comia açúcar derramado sobre as últimas caricaturas de Pedro Nava. Cada vez se bebia menos cerveja e diziam-se pouquíssimas besteiras sinceras.
Não chegou a conhecer alguns tipos mais curiosos da fauna desse café histórico, como por exemplo o sargento João Carlos, gordo, poeta caqui, colaborador assíduo do “Trabalho” de Espirito Santo do Pinhal, que não podia compreender porque motivo eu nunca lhe dera boa noite (nós nunca fomos apresentados um ao outro, meu bravo sargento).
Conheceu apenas os últimos abencerrragens, e como não era homem de grande comércio verbal, nem sempre participava dessas farras ingênuas. O que não quer dizer que não fosse boêmio e soube depois que o era muito.
Passava tempos sem vê-lo. Era esquivo e filtrava-se entre as árvores da rua. Dizem que ótimo trabalhador. Na Secretaria do Interior, 6ª. secção, fala-se muito bem do funcionário Ascânio Lopes. “deve ser computado para aposentadoria o tempo em que a professora serviu como interna ou provisória”, concluía ele numa informação que o chefe achou útil publicar, porque bem-feita e esclarecedora do assunto.
Na Inspetoria da Instrução, há uma caneta com que ele escrevia, papéis que guardam sua letra, recordações diversas de Ascânio, funcionário que deixava a poesia no cabide, com o chapéu, ao contrário de outros que só deixam o chapéu, e fazem poesia na hora do expediente.
Dizem também que mau estudante, ou por outra, estudante displicente, mas isso só serve para aumenta-lo na minha estima. A nossa Escola de Direito não é melhor nem pior do que a comum das escolas, de direito ou não, que não dão gosto nenhum de serem frequentadas.
Mesmo assim Ascânio teve pachorra (ou malícia) bastante para imaginar uma tese, “O direito da família sobre o cadáver”, cujo o título suspeito dá ideia antes de uma blague jurídico-literária, um pouco fúnebre.
Bom funcionário, mau estudante, bom poeta… A rua da Baia não conheceu bem Ascânio Lopes, que passou por ela como um automóvel. Eu mesmo já tive ocasião de dizer, há anos, num poema que provocou geral indignação, apesar de ser perfeitamente insignificante: há os que sabem e há os que descem a outra famosa rua pública. Os que sobem gloriosos e aplaudidos e os que descem obscuros e silenciosos. O auto de Ascânio desceu com o farol apagado, sem buzinar, e desceu para sempre.
Numa sala da Secretaria do Interior há uma mesa, e debruçado sobre essa mesa um jovem moreno e baixo trabalha; é o secretário do Conselho Superior de Instrução; depois o jovem levanta-se, põe o chapéu, desce, toma o bonde; é o poeta Ascânio Lopes.
A noite desce sobre a casa de pensão da rua Rio Grande do Norte em que ele escreve os seus penúltimos, versos; a noite desceu de todo, já não há mais versos para escrever, vida quotidiana para viver, tarefa nenhuma para levar a cabo.
Discreto até o fim, Ascânio Lopes foi morrer em Cataguases: “De repente percebi que eu estava diminuindo, diminuindo, até ficar apenas uma rodilha de dores”, como diz ele, nas admiráveis Sete trombetas misteriosas.
João Guimarães
Belo horizonte, 1934 – A vida separa os amigos, que a morte vem juntar bruscamente. Eu, que há tanto tempo havia perdido João Guimarães Alves, agora torno a encontrá-lo, ao entrar na sala da redação e receber a notícia de que, em Soledade, ele fechou os olhos.
Entre as melancolias de viver, é talvez das mais penetrantes essa que resulta da existência de “zonas de amizade”, cada uma correspondendo a determinada fase moral, e todas, mais ou menos isoladas e característica, exprimindo a descontinuidade emotiva do indivíduo, uma irremediável fragmentação, seus desertos, suas incompatibilidades.
Porque, salvo três ou quatro companheiros que uma fatalidade cordial anexa ao nosso destino, e de um certo modo o assimilam e nele colaboram, os demais vão ficando pelo caminho, uns separados pela diversidade de interesses, outros pela circunstância geográfica, outros, finalmente, porque chegaram mais depressa à maturação, ou tardaram, ou se perderam.
Já não falo nas desilusões que esse comércio, como qualquer outro, comporta. Penso somente nessas amizades que o tempo vai esgarçando e substituindo por outras, com o cuidado pérfido de intercalar entre os amigos de vinte anos e os de trinta um espaço em branco para as incompreensões e as incorresspondências. De sorte que viver é perder amigos, porque eles não se somam, e as novas aquisições anulam as anteriores.
João Guimarães Alves foi dos que se perderam na distância. Entre duas cidades de Minas, como de resto entre duas ruas de não importa qual cidade, pode haver mais distancia potencial do que entre dois universos. A notícia que tínhamos do João Guimarães era rara e estrita.
Às vezes, um abraço de passagem: o amigo estava de novo na Avenida Afonso Pena. Mas, ou seja, porque já não existissem os antigos cafés ou seja porque ele se demorasse pouco, não tínhamos a sensação de que houvesse voltado. Efetivamente, trocara de cidade, isto é, de alma. Sua visita tinha alguma coisa de retrospectivo.
Mas agora falece o inspetor de ensino comercial a quem surge na minha frente, com a voz, os gestos e as palavras do velho tempo, é o meu amigo João Guimarães, tal como eu devo tê-lo deixado, há doze anos, numa esquina noturna, recitando o soneto de amor, ou a quadra satírica, à espera de que qualquer coisa, o guarda-civil ou a madrugada acontecesse. 1922…
O poeta João Guimarães tinha a voz forte e o gesto violento que devia ter outra poeta do temps jadis, François Villon. E o punho forte também. Mas esse punho não se abatia com brutalidade sobre um literato medíocre ou um notívago importuno, sem que o coração do poeta corrigisse logo essa demasia física. Era impossível ficar brigado com João por mais de cinco minutos.
As memórias despertam em mim, os fatos sucedem-se, mas já não é a exposição retrospectiva, é o próprio tempo de ontem que se inscreve no quadro de hoje, e a vida em movimento, com a amizade em movimento. Tenho de novo João Guimarães no meu convívio. Suas mãos enormes contam as fichas do chope. Sua grande voz repete Raimundo Corrêa:
Lúcia teve um desmaio quando Anfrísio partiu…
Ou então, de sua própria fábrica, o soneto em que desfilavam todas as namoradas de um ano:
913, o ano dos anos?
Ano em que, de alma feérica e iludida,
saboreei, na taça dos enganos
o capitoso vinho desta vida.
913 foi-se embora
e em 914 entrei.
Afinal, João Guimarães é todo um pedaço de minha vida, como terá sido para Milton Campos, Baptista Santiago, João Alphonsus, rapazes que, à feição de todos os rapazes do mundo, misturamos um dia a coisa literária com a coisa humana. O corpo dele levanta-se com um sinal nesse tempo que já sentimos ser de uma substancia diversa e, em consequência, de um diverso sabor.
Assenta-se aí João Guimarães. Na minha opinião você está apenas fingindo de morto.
[Anuário Brasileiro de Literatura Irmãos Pongetti, Editora Zélio Valverde (RJ), n.6 1942, p.53-57. Biblioteca Rodolfo Garcia, ABL/pesq.mcs1057]