Dois máximos expoentes da Lusofonia e o mundo irreverente da simplicidade
Veladimir Romano*
Aconteceu pelo tempo que o corpo físico possa suportar nesta viagem ingrata, recheada de perigos e campos minados que todos nós temos de atravessar. Por isso quando alguém ao longo da jornada consegue vencer obstáculos deixando sua marca e elevando qualidades humanas como derradeiro exemplo; nossa memória agradece seja onde a criatura humana tenha confrontado seus trilhos e sarilhos.
Em pouco mais de quarenta e oito horas, o mundo lusófono perdeu certamente vários milhares de almas por diferentes motivos acabaram suas missões no planeta, mas entre tantos desconhecidos, firmam aqueles que dominados na aura das suas condições humanas mas igualmente espirituais, diferentes são; uns de pior aproveitamento dessa existência, mas outros, galantes pelo seu esforço dão mais e acabam marcando instantes da vida para que ela se valorize bem assim nossas sociedades progridam.
Aconteceu realmente pelo quanto nem sempre será mais a idade mas a saúde quando atinge limite, logo a matéria cede, pede descanso final e, para lástima nossa, assistimos inevitavelmente ao culminar da partida ao eterno ponto universal. É assim: primeiro chegou a notícia de que António Arnaut com 82 anos deixava seu legado como antifascista quando em 1958, saiu apoiando Humberto Delgado pelo Portugal democrático, opondo-se desde então dos tempos de estudante de Direito em Coimbra contra Salazar.
Militante da Ação Socialista em 1965, logo seguidamente aderente ao mundo da Maçonaria; se transformaria num exemplar advogado progressista, poeta, ficcionista, ensaísta, político passando pela prefeitura de sua terra Penela, Coimbra [no presente embora aposentado andou ativo ajudando o ministério da Saúde português, desdobrando galhos atrapalhados do governo atual], indo até Alemanha, fugindo da perseguição política, acabou sendo mais um dos fundadores do Partido Socialista em 1973.
Homem simples mas irreverente, fundou o Círculo Cultural Miguel Torga, logo depois fundou Associação Portuguesa de Escritores Jurídicos. Um pouco atrás, aquando da governação de Mário Soares, foi António Arnaut quem desenvolveu no seu todo, um novo projeto sobre saúde social, transformando por completo o caduco sistema vindo do regime fascista. Daqui seu apelido o “pai do SNS” [Serviço Nacional de Saúde], do reconhecimento popular do quanto foi feito numa área sensível em favor do povo, recebendo elogios de toda a Europa, incluindo organismos internacionais reconhecendo a obra.
Décadas seguintes a 1978, marcadas ficaram pela ação construtiva, histórica, eficaz e reformista do projeto SNS do deputado e depois ministro: António Arnaut, enquanto processos de governos conservadores foram depois destruindo o serviço para dias futuros da privatização, querendo criar o mercado da saúde. Vendo tais arbitrariedades políticas de um Portugal novamente sem rumo, saiu do seu sossego e se entregou ao apoio solidário na tentativa de se recuperar o SNS. Do seu recanto, editando várias obras poéticas, participando em antologias, ensaios com vasta obra e escrevendo uma homenagem a Miguel Torga… “Conto de Job”, mostrou facetas intelectuais de valor ímpar marcando toda uma vida exemplar.
Embora pouco divulgados pelo quanto da mediocridade existente na sociedade lusa avassalada pela ditadura; foi a irreverência reveladora da relevância sempre figurando em planos secundários aos artistas plásticos lusitanos, o labor resistente e da sua grandeza talentosa, sempre tiveram de emigrar tanto em tempos monárquicos como depois nas épocas republicanas [a implantação da República portuguesa foi um caso muito sério de muita confusão social, violência política e total ausência de bom senso], para estes artistas encontrarem compreensão da sua arte, foi preciso emigrar. Com Júlio Pomar não podia ser diferente muito embora a certeza final do personagem nunca fugisse do seu destino logo cedo na infância quando preferia folha de papel e lápis para desenhar.
Outro irreverente, contudo, não fugindo da simplicidade da vida e aqui entendendo seu lugar, lutando com dignidade exemplar para conquistar aquilo que regimes obscurantistas negam: a Liberdade igual a Criatividade, quase proíbem estes cursos naturais da evolução e com isso, Júlio Pomar como outros progressistas, conheceram o presídio. Podia ser mau, mas no final se revelou proveitoso acabando por conhecer Mário Soares, vivendo dois momentos batalhadores contra o regime servindo estratégias do Partido Comunista Português [PCP] através do Movimento da Unidade Democrática [MUD – grupo dos progressistas juvenis], mais tarde fugindo para França.
De ampla e abrangente inteligência, apaixonado da vida e da sua bela arte, bastante culto e produzindo uma muito particular sedução pessoal através do seu saber; Júlio Pomar marcou o lado artístico dos modernistas portugueses. Na sua genial técnica tudo aplicava… ficava impressionante assistir a momentos [hoje descubro como foi privilégio] criativos quando suas mãos se misturam nas tintas e seus olhos fixos, atentos correm a tela aplicando manobras desconexas parecendo mais a criação do caos, mas no final a obra nasce resplandecente marcando mais um instante sublime.
Bom conversador, se podia esquecer o dia e o papo ficava universal passando por tudo desde cultura geral, retratos específicos sociológicos contemporâneos, memórias, música, teatro, esporte… mas depois se lembrava que ainda não havia passado pelo seu agradável estúdio para dar uma olhada ou descarregar alguma ideia entalada entre a vontade e o prazer de todos os dias continuar pintando aos noventa anos.
A sua época das mais ativas depois de 1960 em Paris, seguindo-se viagens relevantes por Itália, Espanha e alguns países africanos; Júlio Pomar, aquele que não gosta de etiquetas, leva com esse selo dos estudiosos não resistentes a catalogar obras e a distribuir artistas pelos prismas críticos… sim, este poeta do pincel de origem “alfacinha”, revisitado ao longo de mais de setenta anos duma fulgurante carreira onde tudo entrou pelo bem da sua criatividade como abstrato, retratista, neo-realista, dominador de outras posturas artísticas pelas quais detestava catalogação de arquivo em reunião de críticos… pela dose paradoxal de Júlio Pomar não aderir a qualquer convenção mas antes a todas. Pois, se ele é “irreverente”, logo imortal!
Ficamos sem dúvidas, o nosso universo desta amada Lusofonia ficou bem mais pobre depois da partida eterna de dois enormes vultos. Parece que tudo estava combinado esperando este tão agitado mês de maio quando a primavera marcou historicamente a vida humana neste parâmetro geográfico aprendendo nós desta simplicidade uma outra força irreverente deixada por dois cidadãos dando seu máximo para que nosso mundo igualmente consiga ser diferente a bem melhor.
Notamos a noção disciplinar de duas figuras tão diferentes no desempenho da missão protagonizando simultaneamente ensinamentos generosos. Então, passo a passo, revelando ligações, seguidamente, resta nesta humilde homenagem, manter tal memória para se compreender que afinal o mundo não é difícil nem complicado; antes são personagens como estes que nos ajudam a tomar lição proveitosa, caso entendamos pelo horizonte desta particular experiência preparando nossas sociedades caminhando junto com irreverência mas nunca esquecendo a simplicidade.
*Veladimir Romano é jornalista e escritor luso-caboverdiano, colaborador deste site Vila de Utopia
E a intelectualidade lusófona, dia a dia, vai-se exaurindo…