Diálogo de avião – Um dia encontrei o personagem que não queria ser ele o poeta
Arte: Genin
Veladimir Romano*
A viagem, descontraída, nuvens fartas enamoradas dos raios, tomou surpresa ao intervalar pelo território brasileiro: Rio de Janeiro, meio caminho a São Paulo, encontro fortuito com alguém de boa prosa, sábia observação e empatia imediata.
Pena que o tempo não deu para mais quando descobri que o seu nome era Carlos Drummond de Andrade… já tarde quando recuperei do espanto… na porta de saída do avião, assim em jeito solitário, um tanto ou quanto melancólico, seria uma suposta, indesejável mas, última fronteira, até o adeusinho dele foi humilde mas carregado de encanto, humanismo, poético… uma quase metalinguagem que me encheu de atenções e curiosidade universal.
A viagem, desde frias paragens do Canadá, marcava pelo nosso relógio quase vinte horas com saída de Corner Brook, segunda maior cidade da ilha Terra Nova, voo doméstico, primeiramente com passagem por Halifax, Nova Escócia até Toronto, mudando de avião e a nova rota viajando para Washington DC, Panamá City, Rio de Janeiro, São Paulo e, finalmente, Santiago do Chile.
Caminho aberto pela maior longitude a sul, atravessando o fascinante continente comandado pela riqueza da cordilheira andina… uma só vez, fixou história pelo que merece partilha e consideração.
No círculo mais a norte, embora o verão manifestasse sua alegria em cores, aromas, temperaturas diversas entre luxuriante luminosidade, dias incertos também traziam alterações repentinas trovejando sem piedade.
Depois de passar fusos horários não daria para compreender aquilo que qualquer criatura entenda como “verão”, sinónimo de bom tempo, ao menos noutras paragens do globo, saborear dessa marcação pelas divisões do calendário, qual viver acomodado na certeza do clima, roupa leve, bebida fresquinha, dormir no pedaço mais estreito da sacada ou vantagens que o suposto bom tempo ofereça, entrava nos meus sonhos e dos meus camaradas escandinavos, companheiros de trabalho contando horas com enorme ânsia de chegar ao Chile.
No Brasil, ao contrário, colocado no hemisfério sul, temporada certa da época invernal onde aparecem singularidades com temperaturas amenas, aquelas que vamos depois encontrar em primavera antecipada. O ano de 1973, nem foi aquele friozinho e, Santiago, na chegada, embora já pela noite, dava para compreender o namoro dos dias impondo ritmos transitórios.
Contudo, pior situação daquele instante, seriam falsos entendimentos políticos crescendo cinicamente numa tabela traiçoeira comandada desde quartéis, nas costas do povo, na sombra do governo, nasciam militares golpistas preparando sobeja traição contra o presidente Salvador Allende.
Seria a implementação de um Estado ditador contra a soberania com reformas económicas servindo interesses próprios das populações, realidades de um processo eleitoral democrático favorecendo todos, levando seu tempo contém exemplo transparente, amadurecimento social exemplar em todo o território da América Latina ganhando logo nas primeiras eleições verdadeiramente livres pela escolha do cidadão Salvador Allende, colocando assim alguém idealizando uma sociedade culta, politizada, transparente, progressista, justa.
Porém, mais uma vez, a Presidência, sucumbia sem o povo compreender a trama organizada pelo general Augusto Pinochet praticante da maior infeta perfídia desumana infelizmente tão comum no mundo das nações latino-americanas. Assim morreu válido projeto político, social, cívico, como reforma financeira.
No caminho, esbirros venenosos dessa arcaica contaminação pegajosa desventrada em imaginações macabras, arrastando crueldade desmedida da conspiração perversa do general chileno, obediente súbdito alimentado na escola militar de West Point, vingança secreta dos dirigentes da Casa Branca onde decadentes norte-americanos ambicionando relações obsessivas dos poderes [financeiro + económico + político = dominação total] e qual explosiva combinação vantajosa para multinacionais, época submissa, situação ingrata, marcadamente histórica mas no pior lado das últimas três décadas do século XX consumindo geopolíticas dos países mais a sul do continente.
Não obstante a passagem pelo Rio de Janeiro ter sido rápida, ocorreu pelo engalanado Galeão festejando aniversário da aeronáutica internacional. Saíram uns quantos passageiros, mas logo entraram outros tantos.
Tempos que já nada se parecem com os de hoje, práticas bem simples, bem longe do pânico presente de cruzar aerogares internacionais em viagem intercontinental – escassos, mas com bons convivas e alegres momentos.
A chegada saborosa ao Rio de Janeiro, cumpria a etapa mais longa da viagem, pisando eu pela quarta vez em cinco anos, solo brasileiro. Assim, o voo do saliente “jumbo” canadiano, colhendo alguns passageiros, visto que a parada seguinte, seria também em trânsito para São Paulo, ali ficando desembarcados passageiros incluindo os da cidade carioca. Tempos aos quais voos internacionais se transformavam em voo doméstico num dos maiores trajetos continentais daqueles serenos dias da então Canadian Pacific.
Quem vive de jornalismo sabe que o momento faz a oportunidade transformada em diálogo de avião onde um belo dia encontrei um poeta que eu tão bem conhecia na sua prosa, obras largadas ao mundo mas contudo, sem saber nem desconfiar de como seria o som das suas palavras, a presença viva, manso e doce olhar, ora curioso feito observador… de menino bom pedindo para crescer, descobrindo quanta prosa é feita a magia poética do mundo daquele que é o Poeta mas na nossa inocência desfazendo ideias menores.
Como seria a silhueta… nem sombra do autor de mil palavras trabalhadas em voz pensada, refletida noutra posição omissa, iluminado pela sua própria existência usufruída de tentações ou aptas, entendidas primeiramente na alienação da sociedade marcada no peso terrífico ou ditadura a dois tempos, mundo este repleto de gente nobre submetida aos animais das casernas.
A elegância do trato, sorriso simples mas enigmático traduzia numa arrepiante, contagiosa mas também dissimulada tristeza, algo estranho no balanço dos contrastes. Entendi que nem podia ser carioca, primeiro até pensei que fosse gaúcho, depois que fora um estrangeiro mais na multidão saindo da manhã ensolarada, caprichando instantes sedutores, falando, absorvendo sotaques em plena novidade inspirando sensações a um jovem viajante cruzando o solo pátrio de Tiradentes, Olavo Bilac, Erico Veríssimo, Machado de Assis, Carlos Prestes, Osvaldo Cruz…
Minha nossa! Quanta riqueza! Então, sim, ficámos navegando nos mistérios [quem poderia ser aquele personagem?!]. Bom, dessa história e acontecimento, eis alguns apontamentos daquilo que na memória vai registrado, retenção de uma viagem cansativa, longa, quase sem retorno quando no seu destino, semanas depois, a revolta organizada dos militares chilenos, virou um covarde e vergonhoso golpe de Estado, deitando por terra sonhos da maioria de um povo politizado, vítima do seu pedaço de ignorância, fatídica transformação, transtornando a vida de milhões, criando heróis num ápice de uma nação vivendo vários infernos mergulhando seus habitantes no fosso, despejando sangue pelas ruas, praças, paredes das delegacias de Santiago a Viña del Mar, ou de Puerto Montt a Punta Arenas com estádios de futebol transformados em campos de concentração, infame loucura caindo sobre o charme da capital glorificada na prosa de Gabriela Mistral ou Pablo Neruda: distinta, moderna, refrescante, queimando almas num monte de horrores e desumanidade ilimitada.
Para trás em horizonte já consumido se descobria através do pequeno orifício da aeronave, pela primeira vez altitude denunciada, bem gratificante surpresa… a restante espinha dorsal da imponente cordilheira andina. Declarada salva branca, brilhante, mar de neve mediando acordes de quando o condor fluí planando pela atmosfera manifestando sinais de amizade, rapidamente pontos de encontro por entre montículos de algodão branco, suave e macio dilacerados pelas asas do poderoso aparelho, concorrendo a ave rainha dos Andes.
O Galeão não conseguia sair da minha memória, pois ali começara uma parte final daquela viagem inesperada, solene e, embora não tivéssemos saído dos lugares, dava para sentir o gostoso calor misturado com a brisa marítima entrando pela Copacabana adentro.
Fechei os olhos, ficou grudado na minha face quanto suave reflexo das noites cálidas do Rio de Janeiro. Revia como por encanto alguma da paisagem imaginada no caminho aberto pelo “jumbo” enquanto ao instante, começou a balançada “charla” de dois bons falantes esperando que alguém de boa alma se lembrasse de nos vir perguntar se desejávamos tomar alguma coisa… ao menos água, algo que não podia faltar nas simuladas mesas de retoque aeronáutico.
O personagem, quase silencioso, falando com mãos bem abertas, timidez inicial de um quase não saber como interpretar o outro [“será que ele compreende português?”] havia pedido para passar para o lado da janela. Ali sentado, depois de se recompor deu uma olhada para o monte de jornais depositados no assento intermédio.
Olhou espantado para o cabeçalho dos primeiros em língua sueca, o suficiente para que logo se escutassem as primeiras palavras de: «Bon-jour! Mais, vu…», quando descobriu entalado no meio, matutino escrito em língua francesa, o “Montreal Étoile-Matin”.
Levantou as mãos de alívio, acabando aquela intriga momentânea perguntando afinal, qual seria o meu país. Curiosidade eterna presumindo eu que o passageiro fosse brasileiro, pela delicadeza, esperei não interromper a dúvida contrária… continuadamente em francês: «Merci! Mais, jeune-monsieur, c´est-à-dire, vous c´est de quel pays?» [Mas, jovem-senhor, quer dizer… você é de que país?].
A resposta foi de imediato, saiu relâmpago, explicando pormenores geográficos pelo mapa estampado numa das páginas da revista de bordo, a diminuta localização das ilhas de Cabo Verde, logo no balanço brasileiro, sotaque contagiante… espantado ainda mais ficou, pois nunca ouvira falar de tal localidade.
Rapidamente expliquei serem tais ilhas de Cabo Verde colónia portuguesa junto com Guiné-Bissau, terem sido as duas últimas terras africanas colonizadas entrando na guerra [1963-1974] contra o regime de ditadura fascista de Lisboa.
Da curta viagem pelo mapa geográfico a conversa entrou pela questão política. Das minhas primeiras visitas ao Brasil desde dezembro de 1968, voltei em fevereiro de 69, então aos dezoito anos de vida, navegando pelo nordeste, entrando ao Pará, seguindo pela Amazônia, depois na volta, Marajó e Maranhão, cobrindo sonhos de um aventureiro desarmado, mas deferente ao áspero período marcado igualmente de muita repressão no Brasil.
No final do ano anterior, pela primeira vez, havia eu passado pela capital baiana.
Bem rápido, porém, deixámos de lado o papo entre ditaduras, militares, geografia… numa curiosidade só, como tinha ali ido parar, de tão jovem pelo mundo, longe da minha soberana ilha, como andava eu da vida não só pela Suécia… mas, de como estava vindo desde o Canadá voando ao Chile. Depois das explicações resumidas, entrámos pela literatura. Logo a poesia saltou com força onde eu, sem demora, tomei a dianteira.
Depois de falar sobrando figuras da grande poesia brasileira, não resisti, pois não podia esquecer o trabalho literário de um tal Carlos Drummond de Andrade, para mim, infalível como início de conversa. Ele, levando a mão até debaixo do queixo, olhou, disfarçadamente com delicado rascar, poisando de novo a mão no jornal.
Entre a leitura e olhares fugidios foi acenando com a cabeça até que respondeu: «Pois eu não sei bem não… até que ponto esse dito autor você se está referindo possa realmente representar alguma coisa na Literatura brasileira… não sei não?!».
A nossa conversa desde princípio foi tão imediata que nunca durante todo o tempo tivessem existido preocupações de a gente se introduzir correctamente, conhecendo sequer o nome de qualquer um dos dois, pois, perguntas, respostas, explicações geográficas, introdução dos temas, a breve trecho ocupou cada momento desse convívio onde mais ou menos ainda perdura no eco de uma conservada visão tomada de força mental.
Respondi que sim, até fiquei indignado perante o quase desinteresse do cidadão sentado junto da janela,. Depois também lembrei a referida razão de ser mais idoso, naturalmente sendo apenas minha opinião em relação a uma esclarecida, sedutora, espantosa filosofia aplicada de forma tão simples, como eficaz; pródiga, gratificante para quem entra no mundo escrito pela pena de Carlos Drummond de Andrade.
Talvez até pessoal, só quem sabe, tenha tido esse privilégio. Mais uma vez, desinteressado, foi contrapondo: «Sabe, meu caro, na minha terra fala o povo que, gostos, pijamas, mulheres e caipirinhas; não se discutem».
Falámos da coragem a um tempo e audácia do escritor Camilo Castelo Branco, tomando a decisão de se transformar em escritor profissional num país repleto de analfabetos; de poetas portugueses como Antero de Quental, Guerra Junqueiro, o inevitável Fernando Pessoa; mas, claro!
Adiantei alguma coisa sobre Florbela Espanca que ele pouco conhecia, tão igualmente de Augusto Gil, Vitorino Nemésio, Nicolau Tolentino de Almeida e Afonso Lopes Vieira… nada de grave.
Seguidamente até Barbosa du Bocage renasceu na nossa concordância; passámos para literatos de Cabo Verde. Expliquei então quem foram Januário Leite, Baltasar Lopes da Silva, Gabriel Mariano, Luís Romano, Pedro Cardoso, Eugénio Tavares, Osvaldo Osório, Ovídio Martins, por entre vários outros.
O suficiente de volta ao Brasil, mencionando trabalhos deixados por gente como Olavo Bilac, Castro Alves, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, até aos considerados modernistas na figura de um Oswald Andrade, Guilherme de Almeida, António Varela, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Manuel Bandeira, Cassiano Cardoso.
Naturalmente, muito insisti referindo a Carlos Drummond de Andrade. «Um dos momentos mais privilegiados da poesia brasileira e do nosso idioma…». Mas ele não aceitou e, quando o comandante foi avisando que havia um outro cinto que todos tinham de dar aperto de segurança… senti que o conhecido da curta viagem havia sido anjo contrariado descido do caminho celeste.
Soube a muito pouco, ficou numa aproximada memônica desse encontro solidário de duas almas de países distanciados pelas águas atlânticas mas falando idioma de raiz, depois de curto intervalo, se entendeu… assim, já no meu quarto de hotel, o que restou daquele instante, logo gravei na cassete o restante fixado pela memória.
Carlos Drummond de Andrade: Rapaz, você é jovem, mas pela experiência é mais velho do que aparenta…! Afinal quanto tempo leva morando no nosso astro?
Veladimir Romano: Já vou nos vinte e dois e meio sem contar com aqueles obrigatórios nove meses de gestação na barriga de dona Maria Luiza.
Drummond sorriu pela primeira vez num largo rasgo de satisfação. Sorriso num misto meio malandro, meio marcado ainda de uma certa ingenuidade de quem não tem mesmo nenhum jeito de ser malandro… antes uma estranha sinalética de tristeza incompreendida. Acabou largando os jornais para mergulhar no papo total… enquanto eu retorquia…
VR: Estou jovem de aparência mas de espírito já sou bem velho, eu sei dos anos de 1967, data na qual sai de Lisboa, já encontrei alguma coisa que só eu me consigo explicar. Muita curiosidade, sim. Acho mesmo que, pelas minhas contas, mediante as leis da reencarnação, já levo mais de mil anos fazendo viagens justamente entre o planeta e minhas origens universais.
Drummond, de repente, retrato singelo da mudez, ficou de feição séria.
CDA: ah, sim! Você acredita nisso?
VR: Tanto quanto possível das minhas primeiras experiências pelo mundo…
CDA: Essa é uma teoria bem arrojada, dando que pensar. Mas então, como chega a essa sua conclusão. Existe algum sentimento, uma prova, testemunho… Como é isso aí?
VR: Difícil de explicar, mais ainda para ser compreendida… melhor mesmo é a gente voltar para a nossa poesia, até talvez ser agora da sua vez de explicar alguma coisa. O senhor parece não gostar de Carlos Drummond de Andrade. Você é político? Da área do Ensino? Crítico?… Militar, não parece ser?! Ainda assim entrou em litígio com esse poeta por não tomar posições sociais ou outras, fugindo da realidade?
CDA: Não, nada disso. É que eu acho existirem outros nomes bem mais interessantes, mesmo muito criativos da nossa literatura, mais intervencionistas na sociedade do que esse tal de Drummond… Aliás, ele até já foi comunista… mas não deu certo não com a ideia, mas com o conceito das aplicações da prática marxista.
É toda uma filosofia muito exigente, disciplinadora, amplamente progressista, bastante frontal lutando pelo equilíbrio social. As pessoas não querem isso, desejam antes coisas fáceis, usam preconceito, discriminam, vadiam, estão impregnadas de teorias, falhando na camaradagem solidária. Isso assim é difícil de se aplicar na ideologia quando ela não aprecia desordem nem falsidade. Ser comunista é uma luta inglória.
Naquela hora, por alguns instantes, fiquei quase indignado. Mas reparei desde logo na primeira tirada que o sujeito tinha idade e talvez, quem sabe, ser algum desses cavalheiros que gostam de arrumar encrenca através da politização das opiniões.
Assim pensei deixar a coisa ficar desse jeito. Sim, pensei; mas ele continuamente foi alargando sua visão, esclarecendo, dando vários pontos, exemplificava. Eu desejava colocar final em análises sem final e o tempo não era nada favoráve. No meu imaginário, eu ia sentindo que estava quase vestindo uma camisa de onze varas…
CDA: Bom… Interessante será até que esse sujeitinho, esse tal de Drummond, consiga ter uma postura social. Todos nós trazemos essas preocupações, não precisa ser poeta ou outra coisa qualquer, basta ser humano, olhar em volta.
Realmente, as coisas não estão bem, os militares estão conduzindo o país para várias ruínas. Agora, acho bem possível, esse que você chama de poeta, possa até colocar uma fórmula diferente, tratar o assunto da referência social de maneira mais pessoal.
Bem analisado, acho até que aparece alguma coisa nessa poesia dele [!?]. Preciso investigar isso, entrar nas entrelinhas. aacho que algo se possa encontrar… sim, admissível.
Fiquei intrigado da forma como o homem balançava nas suas opiniões. O estranho cavalheiro dava uma de irreverente ou queria pisar na bola comigo [!?]. Fiquei atento.
VR: O senhor então conhece o Drummond? Então ele também passou por essa do Marxismo? Não tinha ideia disso. Sabe: Portugal vivendo como está aturando uma ditadura e o peso da guerra colonial, só pode mesmo controlar de maneira desesperada com seus órgãos da Censura, tudo quanto seja informação mal encarada pelo regime, não entra no mercado. É uma triste realidade mas as ditaduras são assim mesmo e o balanço geral fica entre a nossa resistência e a luta continuada contra regimes derrotistas, egocêntricos apoiados no terror.
CDA: Sim. Eu sei disso, conheço essa experiência. O Brasil também sentiu no passado recente o peso dessa perseguição da Censura. Por outro lado, tive desde muito cedo essa infeliz oportunidade de ter passado por tamanha experiência. Agora de novo ao Drummond, é um sujeito normal embora não muito fiável… sabe: ele tem a mania que escreve. E quanto ao Marxismo… é conversa para uma outra oportunidade é coisa que leva tempo explicando.
Aqui eu não aguentei mais…
VR: Bom, se o Drummond tem a «mania», então é uma mania muito saudável. Porque repare, meu caro senhor: pessoa que escreve do jeito dele merece, precisa ser colocado no cardápio da Literatura de uma sociedade que ultrapassa fronteiras.
A Língua portuguesa ficou mais enriquecida, ganhou na contribuição do Carlos Drummond de Andrade, saiu melhor civilização, maior espiritualidade, particularmente a brasileira, revelando qualidades de uma importância indiscutível. Quanto ao Marxismo, também concordo. Com nosso tempo curto, pode ficar para outro inverno.
Mais em baixo, se adivinhava a descida haver começado; São Paulo mostrava sua dimensão gigantesca entre o tempo restante da curta viagem desde a Guanabara.
CDA: Jovem, isso aqui é muita coisa junta. Você é mesmo muito velho sobrevivente do nosso globo. Melhor: já começo compreendendo essa história da “reencarnação”… Me interessa. Vou pegar no assunto, indagar a coisa.
VR: São as nossas raízes; a porta da vida duplicando suas necessidades evolutivas, vem mesmo na incorporação das palavras marcando cada ponto poético do pedacinho existencial.
Aí, aparece a valorização espiritual, ponto de vista aplicado à meditação imposta por esses seres criativos, embriagados na espantosa maré oceânica dos vocábulos… porém, entenda, eu não sou espírita.
O estranho cavalheiro olhou muito entre o espanto e agrado, aparente rasgar da mudez, vacilando entre a curiosidade e o ligeiro raciocínio… «as estrelas também escutam as nossas preces».
Apontou, logo foi dizendo pelas várias reticências, rápidas observações, ficando no ar a luminosidade de um rosto feito sombra falando sobras afortunadas mas desconhecidas.
A nave poisava rapidamente sem tomar conta logo um vulto na porta de saída dizia com a mão o sinal que muitas, muitas palavras não podem acompanhar… Estranhamente ficava uma saudade na alma de ver partir aquele sujeito.
Quem seria…?! Acabei oferecendo todos os jornais em língua francesa ao qual gesto, ele muito agradeceu e, um tanto igualmente me satisfez da pequena oferta, aquele momento não ter tido mais algumas horas de vida.
Na minha mão, segurando um pequeno cartão bem organizado, curioso desdobrável oferecido pelo estranho sujeito, somente minutos depois li nas curtas linhas o nome Carlos Drummond de Andrade.
Tal encontro fortuito até hoje alimentando minha alma numa eminente convocação catalisadora, operando definições do que se poderá apelidar de uma considerável concepção do privilégio absorvendo relações metafísicas ou ascese e psique num belo dia recitado para comemorar o cidadão da pequena, histórica e briosa Itabira.
Da nossa actividade mental também aparecem motivações morais, ligação duma instância ativa, impulsos conscientes que já nas suas análises, Erich Fromm, descreve aquilo que anima a vida:
«No comportamento humano existem noções pulsionais para autoconservação das suas observações, alimentar a expressão de certos desejos racionalizados pelos instintos. É uma força motriz que gera descarga como princípios de prazer».
Portanto, o enigma, é descobrir pelo meio o belo néctar cósmico e sublime quando abraçamos a diferença humana entre promoção poética, a ínfima espécie absorvida pela estupidez do mal, destruição e cegueira exposta à ignorância.
Sentindo o enorme corpo do Canadian Pacific poisando na pista do aeroporto de Santiago, curiosa saudade pairava, mais ainda quando no dia 11 de setembro pela manhã, tropas comandadas pelo general Augusto Pinochet sangrava a nação chilena, corrompia a economia enquanto tratava o povo com brutal e obsessiva violência, enterrando o país numa das suas piores ditaduras de sempre.
Interessante observar, estava nascendo um dia lindo, onde o evento poético se insere… renascia Carlos Drummond de Andrade no meio de outro tumulto, desse intrínseco desejado poema, mais um, felizmente, iluminando nossos caminhos amenizando o quanto de agruras que alguns infelizes são capazes de atormentar a Humanidade enquanto vão destruindo o mundo; outros são a nossa afinidade, sentimento de uma fugaz felicidade.
*Veladimir Romano é jornalista e escritor luso-cabo-verdiano.
Vla em grande espanto, com grande prosa ao companheiro de viagem sem se dar conta de o próprio ser Drummond de Andrade que tanto frisara na prosa.