“Deu Nisso”
No destaque, serigrafia de 1985: “Luta, sofrimento, tristeza e alegria. Tudo isso faz parte de nossa tarefa. Criar um mundo melhor.” Oscar Niemeyer
Fonte: Escritório de Arte
Geneton Moraes – O senhor tem saudade de Itabira?
CDA – Tenho uma profunda saudade e digo mesmo, no fundo, continuo morando em Itabira,… A minha Itabira era uma cidade de 4 mil habitantes, se tanto. Hoje, tem mais de cem mil. A essa Itabira antiga estou profundamente e visceralmente ligado. (JB, 8/8/1987).
Por Cristina Silveira
Como se sabe, há 94 anos, em 1930, pregou-se na parede o retrato de uma Cidadezinha, a Itabira do Matto Dentro... Casas entre bananeiras – mulheres entre laranjeiras – pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar… as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus.
Era devagar a vida “… nessa pequena Itabira, cuja humilde condição citadina ia transformar-se, um dia, em uma nova Belém da vida intelectual”, afirmou o velho Tristão de Athayde.
Não ficaria pedra sobre pedra. A invasão para expropriar o território teve início no dia 1 de junho de 1942, quando o inimigo entrou na Cidadezinha armado com o decreto-lei n. 4.352 ou os Acordos de Washington.
Ao mesmo tempo em que Alemanha nazista fazia o cerco a Stalingrado (Volgogrado), próximo ao Te Deum de Natal, em 13 de dezembro de 1942, a força de comando do poderoso inimigo fez o primeiro cerco de chegada: mudou o nome da cidade, de Itabira do Matto Dentro, para…
Deu ruim! O contra-ataque eloquente de alguns poucos itabiranos trincheirou o inimigo. Sem o musical “do Matto Dentro” (Itabira-do-Matto-Dentro: como é longe, como é bom…, Mário de Andrade) a cidade recuperou o seu primeiro nome: Itabira, o lendário território cobiçado pelo marquês de Pombal.
Entretanto marcou um ponto de viragem analisado pelo poeta Drummond na crônica Itabira, sempre Itabira, publicada em 1947:
“…Há um minério itabirito; há, segundo o escritor Cornélio Penna, um modo de ser, individual e coletivo chamado itabirismo; e há, sobretudo uma gente discreta, hospitaleira, pobre e digna, que não se vende aos poderosos do dia, e que conhecemos como – os itabiranos. Pois toda essa tradição histórica e geográfica, esse patrimônio sentimental, esse ponto de referência econômica, esse dado científico, tudo isso desapareceu da noite para o dia, graça a um mal avisado decreto do governo de Minas Gerais que mudou o nome de Itabira para…”
Em outro cerco de chegada, o inimigo atacou a arquitetura. Arrancou o calçamento original de ruas centenárias, cada pedra 70% de ferro “britada em milhões de lascas” que o “trem-monstro de cinco locomotivas” levou para a Europa fazer a sua Segunda Grande Guerra Civil. O Ocidente coletivo tinha/tem fome de ferro e sede de aço. !Macabro! E destruíram eiras de casas velhas, portanto belas, para os seus “manda brasa” avançarem na destruição crudelíssima apoiada pelos gananciosos e pelo silêncio da servidão voluntária.
Não pararam. Prosseguiram. Como a bomba de racimo, o inimigo arrasou a Serra do Cauê. Destruiu a paisagem. Disseminou doenças. Ensurdeceu as noites silenciadas pela neblina do Espinhaço. Observa-se que nada mudou, são 82 anos de continuados bombardeios a impregnar “na paisagem mísero pó de ferro”, putrefação da Montanha Pulverizada.
Treze anos depois, em 1955, um grupo de cidadãos itabiranos – “simples matutos” – com a velha Garrucha carregada de documentos, leis e a palavra, foram recebidos pelo presidente da República a quem expuseram a ilegalidade administrativa da bastarda de Washington. Eram todos conterrâneos unidos em um só propósito: os Direitos de Itabira. Entre eles, a presença companheira do cronista Antonio Crispim – 53 anos e 10 livros publicados.
Vinte sete anos depois, em 1982, o jornal O Cometa Itabirano visitou o itabirano, Carlos Drummond de Andrade, o velhinho de 80 anos, autor de 42 livros, e de “consciência tranquila”, explicou ao Cometa a ofensiva dos itabiranos em 1955:
“O que fiz, isso em outra ocasião, foi esforçar-me, pelas colunas do Correio da Manhã, no sentido de obter que a Cia. Vale do Rio Doce cumprisse os seus estatutos, transferindo para Itabira a sua sede, arranchada docemente no Rio de Janeiro. Nessa campanha, por sinal, a artilharia pesada de argumentos, de que me vali, foi fornecida por um valoroso conterrâneo, o José Hindemburgo Gonçalves. Nada conseguimos. É tão comum Itabira perder suas causas e seus direitos!”
Confortável para o inimigo que tinha a seu favor o domínio do tempo para a guerra de desgaste contra-atacou com o método da Alemanha nazista: a industrialização de mentes. Criou o que se conhece hoje como Big Techs (grandes empresas de tecnologia a dominar o mercado de informações), arma moderna e eficiente da guerra cognitiva.
O alvo foi Carlos Drummond de Andrade – o que teve ouro e a Serra do Cauê – poeta e cronista, “elemento perigosíssimo”. O efeito foi devastador, ainda hoje ouve-se na cidade a ignominia: “ele não gostava de Itabira”.
No intermezzo de 27 anos, após a visita oficial dos itabiranos ao Palácio do Catete, o país vivia a torturante Ditadura Militar, instalada em 64; a monotonia imposta pelo inimigo a sufocar a cidade. Até que se fez uma luz Drummond, quer dizer, a Prefeitura e a elite reagiram com armas de valor permanente.
| Outubro de 1972. Do Oiapoque ao Chuí o Brasil festejava os 70 anos de vida do poeta Drummond e Itabira sabendo do que se tratava foi lá e fez. O prefeito da cidade, Joaquim Santana de Castro, em companhia de alunos da Faculdade de Filosofia de Itabira e da Universidade Católica de MG, “vieram ao Rio convidar o poeta Carlos Drummond de Andrade para visitar a sua cidade, quando lhe serão prestadas homenagens pelo 70º aniversário. Estão programadas uma exposição de fotografias e quadros, missa, conferencias sobre a vida e obra do poeta, e no encerramento, uma sessão de gala com apresentação de crônicas e poesias de Drummond adaptadas para o teatro pelos alunos da Faculdade de Filosofia de Itabira”. [ Jornal do Brasil].
| Julho de 1974. Inicia-se a série Festival de Inverno “Um ano decisivo! Em julho uma cidade nova estava nascendo. A arte estava ocupando lugar, tomando o lugar, e se ajeitando entre as montanhas de ferro, as ladeiras e o povo.” [Jornal Nós Somos Uma Cidade Educativa, 1975].
E havia outros festivais: o da Canção Popular, o Caipira, do Papagaio, e também o Salão Nacional de Humor CDA/O Cometa… O homem do saco levou tudo pros cafundós do Judas. É plausível que logo-logo, o Festival de Inverno seja engavetado no porão do passado.
A onda agora são os festivais internacionais, com início em Paraty-RJ em 2003. E faz lembrar a gíria irônica – “International de Bruxelas” – criada pelos motoristas da CVRD na “mina”, da presidência da Cia sediada ilegalmente no Rio. O conceito amplo de cultura foi devorado pelo capitalismo, a cultura tornou-se a cápsula dourada do neoliberalismo, e a plateia ama celebridades da mídia platinada.
| Setembro de 1977. Umas “simples professoras” da EENZA e FIDE, Graça Lima e Ângela Sampaio escreveram carta ao poeta Drummond para falar da educação poética, literária que desenvolviam nas escolas. Usaram do arco e flecha (não havia os drones táticos) para atravessar os portões das escolas, municiadas da obra de Carlos Drummond de Andrade, obra consagrada na história da literatura internacional.
E a história de “simples professoras” a fazer cultura se repete em 2023 quando foi inaugurado o busto do romancista Cornélio Penna no jardim do Museu de Itabira. As escolas municipais Cornélio Penna, Antônio Camilo Alvim e Antonina Moreira, de forma lúdica e encantadora, apresentaram e representaram o romancista Cornélio Penna aos alunos e à cidade.
| Novembro de 1979. Sobressaltada aos rugidos de guerra (duas vezes ao dia as explosões de dinamite encobriam tudo com a poeira envenenada), desponta nos céus da cidade “um vagabundo errante”.
Era o jornal O Cometa Itabirano – uma estratégia de combate arquitetada por Lúcio Vaz Sampaio e outros rapazes. Aterrissou com propósito essencial de publicar a obra do poeta Drummond, recordar a história de Itabira e de sua gente. Um jornal de Ideias, Política e Cultura que transportou Itabira para fora do território e além-mar.
A cidade nunca mais foi a mesma. A chegada de O Cometa coincide com a saída dos militares do Palácio do Planalto, a sua presença era a perspectiva histórica de futuro, a possibilidade de continuar a resistência. Isso foi há 45 anos, hoje se verifica que o jornal O Cometa Itabirano foi apenas um lançador de foguetes katyusha diante as táticas terroristas do inimigo.
| 1980. Mais uma vez as “simples professoras” organizam a primeira Feira do Livro Infanto-juvenil de Itabira, em que diversos escritores e artistas plásticos, em contato direto com as crianças e jovens, demonstravam que o recurso para dominar a língua se faz por meio da literatura e da arte. Dessa vez o inimigo estava representado pela mendacidade da Câmara Municipal, que em presença do escritor Orígenes Lessa, manifestou o sentimento de repulsa à figura do poeta.
| Maio de 1982. A cidade contra-ataca com a inauguração do Centro Cultural de Itabira. Outro evento que não dependeu do o ataque direto do inimigo: a Prefeitura mesma tomou a ofensiva para si.
Em 2001 Itabira era governada pelos Manés do Grupão e seus pérfidos asseclas viciados em si mesmos. Ignorando a letra da lei que protege a arquitetura de prédios públicos, não tiveram pejo de vandalizar um ícone da cidade. Munidos de brocha banhada em uma tinta de vermelho indefinido borraram a fachada de tijolinhos de barro do prédio do Centro Cultural; ao olhar do outro lado da rua, não se vê mais a arquitetura, a vista panorâmica é de todo desagradável.
| Outubro de 1984. Mais uma vez as “simples professoras” da FACHI-Faculdade de Ciências Humanas de Itabira criaram a Semana de Literatura, meio de valorizar a leitura, a escrita e a obra literária nacional. Foram Semanas de portas abertas para o conhecimento. Fecharam as portas da Semana de Literatura. Para quê? Talvez para dar largas a caprichos hedonista. Canta Itamar Assumpção: porcaria na cultura tanto bate até que fura.
| Agosto de 1984. Uma nova ofensiva da Cidade. Era prefeito José Maurício Silva; com um canhão municiado de inteligência e coragem, realizou o I Encontro Nacional de Cidades Mineradoras. “O FUTURO É AGORA”. A Associação Brasileira de Cidades Mineradoras foi “instituída para promover, por todos os modos possíveis, a defesa de interesses fundamentais dos municípios cujas comunidades têm na atividade mineradora o fulcro principal ou muito significativo de sua sustentação. Tais interesses não são apenas relevantes. Mais do que isto, pode exprimir, mesmo, uma perspectiva de sobrevivência…” (Carta Aberta de Itabira, agosto de 1984).
Poderosos de todas as cidades mineradoras pilhadas do país e da América do Sul se encontraram em Itabira para trocar ideias sobre imposto único, incidência de alíquota sobre toneladas em dólar, da matemática que não confere…
Depois do prefeito José Maurício Silva ninguém mais tocou no assunto, é como se não houvesse acontecido o contra-ataque forte da Prefeitura de Direito. Deixaram tudo para trás, o que ficou é a boa lembrança do Boteco do Nilo, onde fervilhavam expectativas de futuro.
| Outubro de 1998. Dezesseis anos depois da inauguração do Centro Cultural de Itabira o inimigo estava sossegado quando a cidade fez novo cerco. Dessa vez entre a munição da zarabatana havia o nome de outro cidadão querido pelo país.
É que a inteligência sagaz de Altamir Barros, sabendo que o arquiteto Oscar Niemayer desejava desenhar um memorial para o amigo Drummond, passa a influenciar o prefeito Jackson Pinho Tavares, do PT, na ideia amorosa de um dos mais importantes arquitetos do mundo.
E lá está o Memorial, construído nas redondezas de um ícone da Cidadezinha, o Pico do Amor. Lá está o Memorial de frente para a cidade, entre o frescor do Parque Natural Municipal do Intelecto de onde ecoa a voz do seu Raimundo “Intelecto” Cesário da Costa a anunciar: “Olha as laranjas intelectas”.
Outra munição saída da zarabatana ancestral foi a criação da Biblioteca Maria Julieta. Trata-se da segunda Biblioteca Municipal, a primeira foi organizada por Luís Camillo de Oliveira Netto e se chamava Biblioteca Popular de Itabira, agora leva o nome de seu criador.
“Os tempos são ruins. É fenômeno universal, uma espécie de deterioração dos conceitos e do sentido estético. Em qualquer país do mundo é a mesma porcaria!… É um fenômeno universal, porque, com a massificação dos meios de comunicação, tudo ficou igual no mundo inteiro.” (CDA)
São 29.930 dias de ataques sem trégua a submeter, humilhar o povo da cidade, a destruir a sua estrutura urbana, a vampirar seu espírito. Não param. A guerra de desgaste contorna a geografia de Itabira, fazem da água, arma; arma testada com sucesso em duas outras cidades, Mariana e Brumadinho. E as caixas do SAEE secas!
Cerco, intimidação continuada é terrorismo, pior que a guerra. Falta ao povo da cidade, do Brasil a obstinação inquebrantável para lutar o bom combate.
Será Itabira o próximo Mar de Aral da Terra?
Sorrisos e abraços para todos,
Cristina, A Velha
|”Deu nisso” é título de crônica de CDA publicada no Jornal do Brasil, 22/7/1971|
Quando a “simples professora” Cacá Amoroso assumiu o primeiro ano de gestão da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade, criada para administrar o CENTRO CULTURAL DE ITABIRA – portanto a Fundação não é o CENTRO CULTURAL DE ITABIRA – ela nos ensinou a diferença entre fazer cultura e fazer entretenimento. O que está posto no “Deu Nisso” é claramente essa diferença fundamental para começar a falar de Cultura. Eu aprendi… Inté.
Cristina, a Velha. Velha? Velha como a aurora, desde o sempre sem fim amém destemida a despertar a gente para um novo dia, este em que tudo depende de nós, da nossa fibra de carne e alma. Salve, Cristina! Salve, Itabira!
Joana, de Zé Octávio, saudade de você.
Me aguarde, logo-logo publicarei garrucheirices de você e Préu. Escritos lindos….
Saudações
Cristina, como sempre, dando visibilidade à história de Itabira , sobretudo em aspectos não tão doces e líricos como é de costume ornamentar o discurso sobre esta terra . Esse olhar “gauche” e enviesado empresta novos traços e tons à fotografia na parede. A metáfora do “arco e flecha”, empregada pela articulista no texto diz, com maestria, da batalha nos campos desta terra tupiniquim para pronunciar o nome do poetabirano Drummond bem como para aproximar os conterrâneos rebeldes, pelo sangue, de uma produção literária que dignifica o nome de Itabira e a projeta internacionalmente . Parabéns ao jornalista Carlos Cruz pelo espaço aberto às publicações de Cristina na Vila de Utopia.
Graçaquerida, o pouco que tenho de escrita me foi motivado e ensinado por vocês, as “simples professoras” e você sabe o quanto eu agradeço. Se a “simples professora” Cacá Amoroso não tivesse entrado em minha vida eu estaria mergulhada em profunda dor das “ingnorâncias”.