“Dersu Uzala”, a lição valiosa de Kurosawa sobre a importância do legado
Por Octavio Caruso
O capitão Vladimir Arseniev (Yuri Solomin) é enviado pelo governo soviético para explorar e reconhecer as montanhas da Mongólia, juntamente com uma pequena tropa. Em meio a expedição eles encontram Dersu Uzala (Maksim Munzuk), um caçador que vive apenas nas florestas. Percebendo que Dersu conhece bastante o local, o que pode facilitar o trabalho, o capitão lhe oferece que acompanhe a tropa até o término da missão. É o início de uma forte amizade entre o capitão e Dersu, que aos poucos demonstra suas habilidades.
Obra literalmente arrepiante. Eu conheci na época de garimpo adolescente, VHS da Globo Vídeo, consigo lembrar com exatidão a minha reação ao final da sessão, os olhos molhados, lágrimas cruzando meu rosto, uma melancolia profunda, vontade de viver aquela aventura, conhecer o protagonista, símbolo máximo de pureza e bondade, e compartilhar de sua sabedoria. Assim como o personagem do capitão no desfecho de sua jornada ética, chorei por constatar que aqueles valores representados pelo protagonista são insubstituíveis. “Dersu Uzala” foi um dos meus primeiros contatos com a filmografia de Akira Kurosawa, cartão de visita precioso.
O único projeto que o diretor realizou fora do Japão, uma resposta criativa para o período mais complicado de sua vida profissional. A televisão tomava conta do mundo, os seus filmes anteriores naufragavam nas bilheterias, o prejuízo em “Dodeskaden – O Caminho da Vida”, cinco anos antes, abalou profundamente sua segurança, Kurosawa tentou o suicídio. O colega diretor soviético Sergey Gerasimov, incapaz de aceitar que um nome tão importante para a história do cinema fosse abandonado no crepúsculo da vida, ofereceu uma coprodução com a Mosfilm e, apesar de inicialmente considerar um passo muito arriscado, o mestre japonês aceitou a proposta que garantia a ele total liberdade artística.
O livro escolhido para a adaptação era pouco conhecido até mesmo entre os russos, mas ele já havia tentado filmar uma versão da história anos antes, a mensagem transmitida pelo livro autobiográfico de Vladimir Arsenyev falava diretamente às suas crenças humanistas mais arraigadas, a integração do homem com a natureza, a beleza na velhice e a importância da amizade.
O tom é contemplativo, sereno como o aprendizado legítimo, o ritmo é lento, porém, nunca entediante. Somos cativados pelos personagens e encantados pelo cenário. Como não se apaixonar pela nobreza de Dersu na sequência ambientada na cabana na floresta? Após utilizar aquele local para descanso, o homem faz questão de consertar o teto e pedir uma caixa de fósforos e mantimentos não perecíveis ao capitão, recursos que serão abandonados, já que ambos estão de partida.
O indivíduo que se considerava civilizado, levado a crer pelas medalhas de latão no uniforme que era superior ao selvagem, coerentemente questiona aquele gesto que considerava, no mínimo, totalmente desnecessário. O simpático nômade, na mais leve simplicidade, afirma que esta ação impediria que outros, aqueles que irão buscar no futuro o mesmo conforto na cabana, morressem de fome e frio. A cena sintetiza a grandeza do pequeno ancião, alguém que carrega valores íntegros e uma generosidade admirável. Somos levados então a enxergar que o respeito só é conquistado genuinamente pelas atitudes sinceras, não por qualquer senso de hierarquia artificial. Dersu ensina pelo exemplo que a única coisa que importa na vida é o legado.
O filme, primeira experiência do diretor filmando em 70 mm, foi um tremendo sucesso de público e crítica. Kurosawa conseguiu provar seu valor, conquistando o respeito de uma nova geração de cinéfilos pelo mundo. “Dersu Uzala” recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, mas quem ganhou o prêmio mais importante foi o público, que, graças à atitude generosa de Gerasimov, estendendo a mão para um homem desesperançado que desejava a morte, seria presenteado nos anos seguintes com os esforços finais do mestre: “Kagemusha”, “Ran”, “Sonhos”, “Rapsódia em Agosto” e “Madadayo”, uma sobrevida cinematográfica de valor inestimável.
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