Conversa em família

Maria Julieta Drummond de Andrade*

– Acho um barato ter um pai de oitenta anos assim tão charmoso.

– Não exagere. Quando você chegar a minha idade vai ver que não é nada fácil.

– Pois não parece. Para mim (e para muita gente) você é um broto.

–  Chega de confete. Espero que não esteja planejando escrever sobre mim outra vez. Tudo o que você tinha a dizer já disse quando fiz setenta e cinco. Agora basta.

– Já se passaram cinco anos e a festa é outra. Você não me daria uma entrevista?

– Até você? Será que um octogenário merece descobrir que a própria filha perdeu o pudor e virou repórter?

– Você vai me deserdar por isso?

– Não, porque não há herança. Mas, se somos amigos íntimos, o que mais você quer saber sobre mim?

– Nada, quero só bater um papinho…

– Para publicar depois?

– Desculpe, mas os jornais estão atrás de mim há vários dias. Afinal você precisa compreender que não tenho a menor responsabilidade no fato de ser sua filha única.

– Está arrependida?

– Pelo contrário, mas as pessoas ficam insistindo, pedindo depoimentos…

– Você devia ter aprendido comigo a dizer não.

– É verdade que você me ensinou muita coisa, mas nem sempre fui boa aluna.

– Modéstia sua. Não tenho queixas da filha que me coube, e espero que a recíproca seja verdadeira.

– Felizmente é, mesmo porque estamos em desigualdade de condições: se você não estivesse satisfeito comigo, podia ter outras filhas, ao passo que eu…

– É, pai é um só. Fico com pena de você.

– Nada disso: estou encantada com o que tenho. Juro.

– Não precisa exagerar só porque estou fazendo oitenta anos. Isso também não é culpa minha. Eu mesmo me espanto de estar com essa idade: foi tudo tão rápido…

– É verdade. Outro dia mesmo você fez cinquenta e passamos a data juntos em Buenos Aires, se lembra?

– E você me deu um susto danado, inventando que tinha organizado uma festa de surpresa.

– Aí você se meteu no quarto, furioso, e disse que de lá saia nem a bala.

– Que maldade!

– Você vivia me passando trotes: foi uma vingancinha carinhosa. E quando você me ajudou a dar o primeiro banho no primeiro neto?

– Que me conste, ele não morreu afogado.

– Pior foi quando você, distraído, pôs um travesseiro sobre o segundo bebê,  que estava na cama grande.

– E o coitadinho nem chorou.

– Também você deu um lindo poema de presente a ele.

– Foi ele quem me deu o poema. Devia ter lhe pago direitos autorais.

– E aquela outra viagem, quando alugamos uma quinta fora de Buenos Aires, em Bella Vista?

– Sempre penso em escrever uma elegia sobre esse lugar. De noite olhávamos as estrelas com um telescópio. O jardineiro era miudinho e a menina do lado tinha um nome tão bonito: Marula.

– Por que é que você só entrou na piscina uma vez? Não foi bom?

– Tão bom que não precisei entrar mais.

– E a última viagem, há três anos?

– Apesar de frio, achei agradável ver as estátuas de Bourdelle, em Palermo. Mas o melhor foi arrumar seu arquivo: mexer com papéis é comigo. Sabe de uma coisa? Mesmo detestando viajar, não acho nada ruim visitar você de vez em quando.

– Está falando sério?

– Você acha que eu brinco sempre?

– Sempre, não, mas muitas vezes. Com esse jeito caladão, você é o maior moleque que conheço.

– Mais respeito para com o seu velho pai.

– Velho? Para mim, você é o mais jovem do mundo. Não vive pulando, fazendo caretas, dando umas corridinhas de Carlitos?

– Mas só dentro de casa. Imagine se o meu eleitorado souber disso:  um poeta de oitenta anos deve se dar ao respeito.

– A turma até curtiria saber que você é tão engraçado.

– Não está insinuando…

– Ué, não falei que queria uma entrevista? Você é ou não é um pai público? Mas não se preocupe, escrevo pouco. O importante é você continuar gostando de mim, tanto quanto eu gosto de você.

*Maria Julieta Drummond de Andrade (1928/87, filha única de Carlos Drummond de Andrade (1902/87), sua amiga e confidente

– Folha de São Paulo, Folhetim n. 302, de 31 de outubro de 1982 – Foto: O Globo. Acervo: Cristina Silveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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2 Comentários

  1. Eu acho a Maria Julieta e a Cecília Meireles, as faces mais belas da literatura brasileira. Sou gamada com as duas. As duas tem uma tristeza no olhar que lhes fazem divinamente belas. No caso da Maria Julieta não tenho dúvida de que essa beleza divina é fruto da educação amorasa e cuidadosa da d. Dolores Dutra e do Carlos Drummond, o Carlito de Itabira. A Vila da Utopia prrecisa publicar mais Maria Julieta.

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