Chico Buarque relembra os tristes tempos que o Brasil viveu ao ser homenageado em Portugal com o prêmio Camões
Foto: Rodrigo Antunes/ Reuters
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, entregaram o Prêmio Camões a Chico Buarque, no Palácio Queluz, em Lisboa
Homenageado com quatro anos de atraso, o que trancou toda a pauta do prêmio Camões, instituído em 1988 por Brasil e Portugal, finalmente o compositor, músico, dramaturgo e escritor brasileiro Chico Buarque recebeu a comenda, a maior de literatura de língua portuguesa, nessa segunda-feira (24).
O reconhecimento de sua obra ocorreu em 2019, quando foi vencedor da 31ª edição do Prêmio Luiz Vaz de Camões de Literatura. Porém, o ato de entrega não foi assinado pelo então presidente Jair Bolsonaro, o que para o homenageado foi um alívio.
“Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula”, disse o laureado em seu discurso no Palácio Nacional de Queluz, Lisboa, Portugal.
“Chico transformou em patrimônio literário comum os amores de nossos povos, as alegrias de nossos carnavais, as belezas de nossos fados e sambas, as lutas obstinadas de nossas cidadãs e cidadãos pela conquista da liberdade e da democracia”, retribuiu o presidente Lula, presente na solenidade.
“Em seu cancioneiro, em suas peças de teatro e em seus romances, o autor hoje homenageado nunca deixou de fazer da língua portuguesa instrumento de transmissão de nossas culturas e de nossas lutas.”
O prêmio Camões reconhece, anualmente, autores cuja obra projeta e enriquece o patrimônio literário e cultural da língua portuguesa. É realizado e financiado pela Biblioteca Nacional do Brasil e pela Secretaria de Cultura de Portugal.
Foi concedido a Chico Buarque pelo conjunto de sua produção literária. Pela premiação, o artista e escritor brasileiro recebeu 100 mil euros.
(Com informações da Agência Brasil)
Leia a íntegra do discurso de Chico Buarque
Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária.
Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua.
Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro.
No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.
O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco.
Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI.
Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica.
Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais.
Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.
Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões.
De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde – sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.
Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos.
Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido.
No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte.
Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula.
Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.
Muito obrigado