Cantiga de Viúvo – Registro Literário

João Ribeiro

São três os poetas (*) que compõem o florilégio de hoje, e todos, poetas modernos, ainda que diferentes e distantes, um dos outros e entre si, pelo teor da forma e da inspiração.

Devem ser tidos entre os melhores da geração nova que não conta mais de meia casta de valores primaciais.

Carlos Drummond de Andrade – Alguma Poesia, Belo Horizonte, ed. Pindorama.

É o mais radical dos três poetas de hoje, e por isso mesmo deve ser o mais contestado pelos que detestam ou aborrecem a feição ultraista da poesia nova.

A meu gosto pessoal agrada-me intensamente a sua inspiração desembaraçada e livre de todos os lugares comuns e de todos os preceitos da poesia antiga.

Há sem dúvida o propósito de fazer ou sentir diferentemente a poesia das coisas. Mas pouco importa o propósito se há sinceridade evidente em todas as suas palavras.

Eis um pouco de sua profissão de fé:

Também já fui brasileiro

moreno como vocês.

Ponteei viola, guiei forde

e aprendi na mesa dos bares

que o nacionalismo é uma virtude.

Mas há uma hora em que os bares se fecham

e todas as virtudes se negam.

…………………

E, contudo, ele é brasileiro, o seu ritmo é profundo como é o seu amor ou a sua ironia.

Há belezas inéditas da sua terra natal que o empolgam e suscitam milagres de inspiração. Sob a forma epigramática que é um pouco da sua escola ou falta de escola aí estão os esplendidos versos da Europa, França e Bahia que se vão ler e definem as contradições do seu suposto absenteísmo. A saudade da terra é bastante para nacionalizar o seu indiferentismo:

Europa, França e Bahia

À Rodrigo de Melo Franco de Andrade

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.

…………………….

Chega!

Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.

Minha boca procura a “Canção do Exílio”.

Como era mesmo a “Canção do Exílio”?

Eu tão esquecido de minha terra…

Ai terra que tem palmeiras

Onde canta o sabiá.”

Há muita coisa neste livro que demonstra ser Alguma Poesia a mais modesta simulação de verdadeira exuberância.

Não há imagem mais expressiva da solidão e viuvez que essa Cantiga de Viúvo, sonho delicado e enfermiço da tristeza e desconsolação.

Em parte alguma será mais evidente a inutilidade da rima para dar música e melodia a uma canção.

Ei-la, a Canção de Viúvo, que é uma das melhores página do livro:

A noite caiu na Minh ‘alma,

fiquei triste sem querer.

Uma sombra veio vindo

veio vindo, me abraçou.

 

Era a sombra de meu bem

que morreu há tanto tempo.

 

Me abraçou com tanto amor

me apertou com tanto fogo

me beijou, me consolou.

 

Depois riu devagarinho,

me disse adeus com a cabeça

e saiu. Fechou a porta.

Ouvi seus passos na escada.

Depois mais nada, acabou

 Haveria muito que transcrever desse livro cheio de riso bom e saudável, de pensamentos e de sugestões, de verdades eternas.

O Papai Noel às Avessas é uma cantiga admirável, como o é a maligna pintura da Sociedade ou a da sexta da família mineira, realista e bem observada.

Mas, seria passar a este folhetim todas as páginas e são muitas do meu agrado.

Para o leitor darei um exemplo típico e expressivo, o da Iniciação Amorosa que não é tão brutal como pareceria a um teólogo que esmerilou os casos da consciência dos intentos juvenis.

A Iniciação Amorosa tem a sua canção na febre de 40 graus e não podia ser pior para o incauto estreante.

Vamos aos versos porque eles bravent l’honnêteté sabem dissimular o realismo sob roupagens leves e vaporosas:

Iniciação Amorosa

A rede entre duas mangueiras

balançava no mundo profundo.

O dia era quente, sem vento.

O Sol lá em cima,

as folhas no meio,

o dia era quente.

 

E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando

as pernas morenas da lavadeira.

 

Um dia ela veio para a rede,

se enroscou nos meus braços,

me deu um abraço,

me deu as maminhas

que eram só minhas.

A rede virou,

O mundo afundou.

 

Depois fui para a cama

febre 40 graus febre.

Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espaço verde.

E ainda para concluir o epigrama signo da antologia grega, que se intitula Anedota Búlgara que tem o sabor de recente atualidade:

Anedota Búlgara

Era uma vez um czar naturalista

Que caçava homens.

Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas,

ficou muito espantado e achou uma barbaridade.

 

[Jornal do Brasil, 13.11.1930]

*(Manoel Bandeira, Augusto Frederico Schmidt e CDA)

João Ribeiro (1860-1934)

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