Autorretrato

Drummond, sem os óculos surrupiados, esculpido por Genin Guerra, no Memorial Drummond e diante da mina da Vale em Itabira

Foto: Carlos Cruz

Carlos Drummond de Andrade

Diz o espelho:

O sr. Carlos Drummond é um razoável prosador que se julga bom poeta, no que se ilude. Como prosador, assinou algumas crônicas e alguns contos que revelam certo conhecimento das formas graciosas de expressão, certo “humor” e malícia. Como poeta, falta-lhe tudo isso e sobram-lhe os seguintes defeitos: é estropiado, anti-eufônico, desconceituoso, arbitrário, grotesco e tatibitate.

O maior de nossos críticos passados, presentes e futuros, o sr. Pontes, que tirou do próprio nome essa consistência de cimento armado, característica do seu estilo, incumbiu-se de lembrar-lhe todos os dias que ele não é poeta; que poeta, só B. Lopes e Theodore de Banville.

Mas o sr. Drummond teima em não escutar a lição desse douto espirito, e a todo o momento nos oferece mesquinhas produções poéticas, de que resultam cólicas e explosões de bom gosto, o sr. Pontes inclusive.

Estátua de Carlos Drummond de Andrade, Léo Santana, Rio de Janeiro, RJ
Foto: Edmund Gall (https://www.flickr.com/photos/e_n_gall/9890000135)

O sr. Drummond de Andrade passa  por ser o autor de um poema (?) ou que melhor nome me tenha a que o título “No meio do caminho”. Essa produção corre mundo e é considerada obra de gênio, ora monumento de estupidez. Na realidade, não é nenhuma dessas coisas, nem pertence ao estro do sr. Drummond.

Com efeito, a quem se der o trabalho de examinar lhe o texto verificará que se trata tão somente da repetição, oito vezes seguidas, dos substantivos “meio”, “caminho” e “pedra”, ligados por preposições, artigos e um verbo. Não há nisto poema algum, bom ou mau. Há apenas alguns vocábulos, que podem ser encontrados facilmente no “Pequeno Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa”, revisto pelo sr. Aurélio Buarque de Holanda.

Esse pequeno fato literário fez despertar em alguns julgadores a suspeita de que se trata de um mistificador. Tem-se por vezes a impressão do que o sr. Drummond se diverte com o escândalo produzido por seus escritos, escândalos de que emergem as seguintes opiniões a seu respeito: “É um burro”. “É um louco”. É superior a Castro Alves e igual a Baudelaire”. Alguns traços pessoais do referido escritor contribuem para aumentar essa duvida.

O sr. Drummond de Andrade é um indivíduo oculto, como certos sujeitos da oração, ausente mesmo usa no trato social palavras poucas e frias. Não é visto no Amarelinho nem na Livraria José Olympio. Uns acham-no tímido, outros, convencido.

Quando está caceteado na presença de outro escritor costuma acariciar a orelha com a ponta dos dedos, à procura de um fio de cabelo, que arranca discretamente. Em geral não ri. Apenas uma vez foi visto a esboçar um leve sorriso, devido a uma pilheria oral e mimica do sr. Marques Rebelo. Dizem que o romancista da “Estrela sobe” considera esse fato como um dos seus maiores triunfos.

No conjunto das exterioridades significativas do seu temperamento, há a assimilar que o sr. Drummond mais uma vez se contradiz, passando de escritor a homem prático. Se aquele é abstruso e não raro exotérico, este é funcionário em comissão, muito metódico e fiel aos preceitos burocráticos, que põe acima dos estéticos e dos políticos.

Foto: acervo BN

Talvez ambicione com isso aproximar-se do inimitável diretor de Secretaria que foi Machado de Assis. Como servidor público, pode ser visto em seu gabinete à rua Álvaro Alvim, atendendo simultaneamente a três telefones, recebendo vinte pessoas e lavrando vertiginosamente despachos de “arquive-se”, “cumpra-se” e “não há verba”.

Alguns prejudicados por esse último gênero de despacho insinuam que toda a sua atividade é fictícia, e que os negócios públicos caminhariam da mesma maneira ou melhor se ele, em vez de trabalhar, fosse a uma sessão de cinema.

Outro ponto a esclarecer. Não há muita coisa interessante na vida do sr. Carlos Drummond de Andrade, embora ele pense o contrário. Tem explorado largamente o fato de haver nascido em Itabira, cidade mineira do ferro, como se isto constituísse uma singularidade.

Também já publicou que foi expulso pelos jesuítas de Friburgo e que não é bacharel em direito, nem médico, nem engenheiro; é gente apenas. Dir-se-ia alimentar, entre outros preconceitos, o anticlerical e o antiuniversitário, o que já deixou de ser uma originalidade.

Quanto aos seus críticos, dão extrema importância ao fato de ser ele um homem magro, no físico e na poesia, ao contrario (segundo os mesmos críticos), do sr. Augusto Frederico Schimidt, considerado gordo por dentro, isto é, literariamente, e por fora.

É talvez uma nova teoria da crítica literária, que se ensaia no Brasil: a da balança de armazém, para pesar banhas, ossos e letras. Se amanhã, com a velhice que chega, o sr. Drummond engordar e o sr. Schimidt emagrecer, terá de ser revista a classificação de ambos.

Por último, e do ponto de vista dos meridianos literários, que o sr. Viana Moog pôs novamente em moda, o sr. Drummond é um escritor de centro-sul, mas pouco fiel ao seu clã, pois vive de namoro com os escritores do norte. Será um mascarado? É, pelo menos, um sujeito esquisito.

[Diário de Natal (RN), 25/7/1948. BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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