Loló e o computador

Loló e o Computador, edições de 1985 e 2005, da Biblioteca Euclides da Cunha, Rio. 

Foto: MCS

As três amigas

Maria Julieta Drummond de Andrade

|Trechos de Loló e o Computador|

Loló é uma menina engraçada. Tem dez anos, duas covinhas redondíssimas ao lado da boca (que só aparecem quando ela ri) e outra menor no meio do queixo (que só aparece quando ela fica zangada e franze a boca).

Seus olhos são verdes e lustrosos como bolinhas de gude. Corta o cabelo bem curtinho, para não perder tempo se penteando, e acha um horror as sandálias e vestidos moderninhos que a mãe compra para ela: só quer saber de usar tênis, camiseta e jeans. Às vezes as pessoas se confundem e dizem:

– Mas que menino tão bonitinho! Como é o seu nome?

Loló, que na verdade é Maria Carlota mas não suporta esse nome, responde mostrando só a covinha do queixo:

– Eu me chamo Pseudônimo Anônimo, e a senhora? – e sai disparando de bicicleta pelo playground do edifício, deixando a perguntadora com cara de tacho.

A maior tristeza de Loló é ser filha única. Morre de inveja das colegas que têm irmãos e vive reclamando porque o pai e mãe nunca providenciaram ao menos um irmãozinho para lhe fazer companhia. Por isso prefere brincar sozinha e não dá bola para as crianças do prédio.

Só uma vez convidou uma vizinha do 17º andar para ir a sua cobertura cheia de plantas. A menina era tão boba que nem se interessou pelo segredo que Loló lhe confiou: o caroço de manga que tinha plantado num canto do jardim a qualquer momento podia virar uma árvore maior do que as palmeiras do Jardim Botânico.

É tão medrosa que morreu de aflição ao ver Jiji, a corujinha mansa, diferente das outras corujas, pois dorme de noite e fica acordada de dia, como se fosse gente. Jiji mora numa gaiola aberta, no terraço, e quando Loló vai para a cama ela se empoleira num cabide do quarto, bem pertinho da amiga. Pois a tal garota assustada não quis nem fazer uma gracinha na coruja, e foi logo arranjando pretexto para ir embora.

Além de Jiji, Loló tem outra amiga do peito: é Féli, a gatinha preta mais dengosa do mundo, linda, linda, com luvas brancas nas patinhas da frente e olhos que parecem rodelinhas de ouro. O defeito de Féli é a barulheira que apronta de vez em quando, só porque não arranja namorado.

Loló está louca para chegar o dia do casamento da gata, pois faz questão de ser madrinha e até já prometeu estrear um dos tais vestidos caretas na cerimônia. Afinal, festa é festa, e Féli, que está solteira há tempo, merece toda consideração. Ela também dorme com Loló, ronronando sem parar e bem enroscada numa ponta do travesseiro, com o rabo fazendo cócega no nariz da menina, que espirra muito de noite.

Outro problema é que a gata é ciumenta demais. Vive implicando com a pobre da Jiji, que nunca diz nada e fica olhando para ela, com aqueles olhos arregalados abrindo e fechando o bico. Aí, de tanto miar sem conseguir resposta, Féli acaba engolindo o mau humor e indo atrás de pombas, que passeiam na cobertura e devoram os farelos de pão que Loló espalha pelo chão.

Tadinhas das pombas, não têm sossego! Também, quem manda serem tão gulosas e porquinhas? Só fazem comer e deixar titica por toda parte. Tadinha da gata também, que fica atrás delas, miando desesperada, e não consegue pegar nenhuma, porque está na cara que não nasceu para caçadora de pomba. Loló às vezes ralha com Féli, por causa dessa mania de perseguir as aves. Mas depois fica com pena: apesar de tudo, ela é tão quentinha e carinhosa…

A terceira amiga de Loló é a secretária eletrônica, de apelido Selê, instalada no corredor, ao lado do telefone. Foi o pai quem mandou coloca-la ali. Só que ele é muito distraído e sempre esquece de liga-la, quando vai trabalhar, e a mãe não dá a menor bola para a pobrezinha.

Então Loló resolveu tomar conta dela e quando fica sozinha com a cozinheira bate papos enormes com Selê, que se sente importantíssima. A menina anda até meio preocupada com a voz fanhosa da secretária e já pensou em chamar o Dr. Oto Rino, que é quem cuida dela quando tem dor de garganta ou de ouvido. Mas Selê diz que não está precisando de médico e sim de uma nova fita de recados.

Ilustração Mariana Massarani e Eduardo Carlos Pereira

O Boletim

Desse jeito, Loló vai vivendo sua vidinha, que às vezes não é tão boa assim. Ela gostaria de estar mais perto de sua mãe, que é muito bonita e todos os dias vai ao cabelereiro, à manicure, à costureira, à massagista, à ginástica, à cartomante, e ainda joga buraco todas as tardes. De noite vai jantar fora com o pai, parecendo uma fada cheirosa.

A mãe não tem tempo para nada e isto deixa Loló um pouco triste. O pai também quase não para em casa. Está sempre trabalhando e falando em dólares e ações, assunto que não interessa a Loló. E quando volta do escritório e começa a beber o primeiro uísque, a mãe chega toda afobada, avisando que é preciso os dois se vestirem, porque está na hora da festa.

Loló queria tanto brincar com o pai e com a mãe, mas sabe que é impossível. Até nos fins de semana eles estão ocupados, porque ou vão para fora ou ficam dormindo até meio-dia, ou passam a tarde com amigos no clube ou na piscina da cobertura.

Capas das edições do livro Loló e o computador

Outra coisa que faz com que a vida de Loló não seja assim tão gostosa, apesar da companhia de Jiji, Féli e Selê: o colégio. Puxa que chatura acordar cedinho, deixar a coruja e a gata dormindo no quarto, engolir correndo na copa o café com leite cheio de nata e ainda aguentar reclamações de Rosicler, a cozinheira, e de Everaldo, o motorista. Eles sempre acham que já é trade. Ah, seria legal se não houvesse colégios… Afinal, para que é que eles servem? Só para aborrecer as crianças?

Pior são as aulas de matemática e geografia. Por mais que Loló se esforce (e ela não é muito capaz de se esforçar não, prefere mesmo é curtir as três amiguinhas), não há jeito: esquece tudo, confunde os exercícios e testes, que saem cheios de erros. Como suas notas estão cada vez mais baixas, tem até vergonha de mostrar o boletim aos pais. A sorte é que os dois são bacanas e em geral não dizem nada.

Num desses sábados de chuva, porém, quando eles resolveram sem mais nem menos almoçar em casa, Loló ficou com a cara no chão, ao ver o pai folhear o boletim com o ar satisfeito de quem comeu e gostou. Sabendo como ele é distraído, ela não se surpreendeu, ouvindo-o comentar orgulhoso, com a mãe:

– Que beleza, Matilde, nossa filha só tem nota dez!

A mãe pegou no boletim e ficou vermelha de raiva:

– Você está precisando usar óculos e dois pares de lentes de contato ao mesmo tempo, Godofredo. Maria Carlota tirou zero em todas as matérias!

Escutando seu nome completo, Loló percebeu que as coisas estavam pretas para o seu lado, porque a mãe só a chamava de Maria Carlota quando estava furiosa. O pai examinou de novo o boletim, franziu as sobrancelhas, pigarreou e encarou a filha com ar de general:

– Que vergonha! – resmungou. – Como é que a senhora aqui presente tem coragem de fazer uma coisa dessas com a gente? Então não damos tudo o que você quer?

Loló baixou a cabeça, para não mostrar a covinha do queixo, e ficou chora-não-chora, enquanto a mãe acrescentava:

– Maria Carlota não tem a menor consideração com os pais. Só pensa em brincar com aquela coruja antipática e com a tal gata assanhada e ficar conversando com a secretária eletrônica, que não passa de um aparelhinho sem importância. Nem sequer prova os vestidos que compro para ela…

Capas de Loló e o Computador na biblioteca Euclides da Cunha, Rio (Foto: MCS)

Loló foi ficando tão triste, tão incapaz de explicar que os zeros no boletim nada tinham a ver com o carinho que sentia pela família, que o pai teve pena e perguntou, mais calmo:

– E por que é que você não estuda um pouco mais? Você está num dos melhores colégios do Rio de Janeiro. Todos os filhos dos banqueiros meus amigos estão matriculados lá e não dão vexame assim…

Loló começou a roer a unha do dedo anular esquerdo, cacoete que tem quando não sabe o que fazer, enquanto uma lágrima pequenina ia escorrendo do seu olho direito, o mais chorão dos dois. A mãe não pôde continuar ralhando, porque lembrou que estava na hora da depilação e saiu depressa da sala, sacudindo a cabeças:

– Um dia desses eu ainda mando coruja, gata e secretária, toda essa tralha, lá para o sítio de Itaipava!

– Na minha secretária você não mete a mão, Matilde, porque aqui em casa ninguém é capaz de dar um recado direito, só ela – desabafou o pai, cada vez com mais remorso de ter brigado com a filha.

Ilustração: Mariana Massarani e Eduardo Carlos Pereira

O Superminimicrocomputador

A lágrima de Loló já estava a ponto de pingar da bochecha para o ombro. Então o pai não resistiu e puxou a menina para perto dele, passando a mão no cabelinho curto dela. Loló fungou e enxugou a lágrima na manga da camiseta, mostrando as covinhas de alegria.

– Você não está precisando de uma professora particular, queridinha? Quem sabe assim as notas melhoram?

Abrindo a boca pela primeira vez, depois daquele almoço infeliz, a menina falou:

– Pai, o colégio é o fim, as tias são muito enjoadas. Outra professora, aqui em casa, eu não aguento não.

– Então, por que é que você, que é uma garota inteligente, não faz esforço para estudar direito?

– Eu faço, pai, juro que faço, mas não adianta. As tias ficam o tempo todo falando de número e de um monte de lugares de nome complicado. Aí me dá sono, eu atrapalho tudo. Palavra que, se eu pudesse, estudava um pouquinho mais…

– Então Loló, como é que vai ser? Você tem que aprender, passar de ano, essas coisas que toda criança faz…

De repente Loló criou coragem. Seus olhinhos de bola de gude ficaram ainda mais verde e as duas covinhas mais risonhas:

– Você quer mesmo me ajudar? – ela perguntou, quase sem fôlego.

– Claro minha filhinha, mas nem eu nem a sua mãe temos tempo para fazer os deveres com você. Somos tão ocupados…

– Não é desse jeito não, pai. Se você quiser ajudar, então compre para mim um superminimicrocomputador.

– Um super quê? – indagou o pai, intrigado.

– Superminimicrocomputador – repetiu Loló.

– De onde é que você tirou isso, menina? Nunca ouvi falar em computador desse tipo. Nem sabia que você se interessava por essas coisas de gente grande.

– Foi Selê que me contou que, depois do mini e do microcomputador, agora apareceu o superminimicro, que é deste tamanhinho – explicou Loló, fazendo o gesto de juntar as mãos.

– Que Selê é essa, tão sabida?

– A secretária eletrônica, pai, que é minha amiga e entende muito dessas coisas. Ela disse que esse computadorzinho é um barato!

– Pode ser – concordou o pai, ainda desconfiado.

– Mas ela deve ter dito também que qualquer computador é caríssimo.

– E você não vive falando de overnight e de letras de câmbio? Para que é que serve o dinheirão que você ganha?

O pai sorriu, encantado com a esperteza da filha:

– Loló, você é vadia mas danadinha, sabe?

– Ué, pai, você não é empresário? E empresário não tem uma porção de dólares? Como é que você não vai poder me comprar um superminimicrocomputador?

Ele estava quase resolvido a fazer a vontade da menina, mas achou que devia bancar o durão e disse, muito sério:

– E para que é que você quer o computador? Para perder ainda mais tempo brincando? E a coleção de zeros que você anda exibindo por aí?

Loló voltou a se sentir insegura, mas disse:

– A Selê me contou que o superminimicrocomputador sabe tudo, muito mais do que qualquer supermaximacro. Então eu pensei que, passando para ele os problemas e exercícios, vou poder resolver tudo direitinho e virar a primeira aluna da classe.

– Mas se ele fizer as tarefas em seu lugar, Loló, quando é que você vai aprender alguma coisa?

– Tem grilo não, pai. Já conversei com a Jiji, que é superculta, e ela me disse que de tanto ver exercícios bem-feitos eu acabo aprendendo a fazer tudo sozinha.

– Que Jiji é essa? – perguntou o pai, distraído.

– Você esqueceu que minha corujinha se chama Jiji?

Encabulado por não saber quase nada sobre a vida da menina, ele disfarçou:

– Ah, é mesmo. Estou precisando pedir ao Dr. Oto Rino um pouco de fosfatase, que dizer, de fosfato para esta minha falta de memória. Então, segundo Jiji, o computador vai resolver o problema das notas baixas?

– É isso aí, pai. Até a Féli, que só pensa em namorar, acha a mesma coisa.

E antes que ele perguntasse quem era Féli, Loló explicou:

– Féli é a minha gatinha, se lembra?

O pai fingiu que lembrava, mas na verdade lembrou é que tinha um encontro com amigos no clube. Teve vontade de discutir, não queria ceder tão depressa. A falta de tempo foi mais forte, porém, e ele concordou para não perder minutos importantes:

– Então vamos fazer um pacto, minha filha. Na segunda-feira mando comprar esse tal computador, e aí você me promete que no mês que vem traz para casa um boletim bem legal. OK?

– OK! – exclamou Loló, com as covinhas brilhando de felicidade.

Deu um beijo no pai e saiu correndo para contar a novidade a Jiji e Féli, deixando para conversar com Selê quando ficasse sozinha em casa, com Rosicler.

[Livro: Loló e o Computador, Maria Julieta Drummond de Andrade. SP: Companhia Editora Nacional, 200 – Pesquisa: Cristina Silveira]

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