Às portas de Itabira, no céu da boca do poeta Drummond
Por Cristina Silveira
Ambrosia, substantivo feminino, “nove vezes mais doce do que o mel”.
O brasileiríssimo Darcy Ribeiro apelidou a ambrosia de “doce de eu menino.” Serviu a divina sobremesa em jantar em sua casa ao presidente da República FHC. O convite era amigável, a mesa posta com delicias da cozinha mineira, serviu ao discurso de protesto – inclusive da privatização da CVRD –, ao governo do sociólogo esnobe.
Do banquete despojado, FHC não digeriu a alquimia dos três sabores ancestrais, não ingeriu a sabedoria Macunaíma do mestre Darcy.
Em casa de minha mãe e de outras mães de “eu menina”, a ambrosia era preparada com leite gordo, e se pra dieta de convalescente, os ovos eram os azuis ou de pata. Em casa da mãe de minha mãe, ambrosia só com o leite de vaca Estrela.
Vaca imponente, quase toda preta não fosse a estrela branca no centro da testona, marca de nascença. Indiferente e profundo aquele olhar de vaca sobre o pasto verdejante do capim meloso, era Estrela de tetas fartas do leite branco como nuvem que alimentava a família do mais amável vô do mundo, o meu, sô Rui da Costa Lage.
Em 1955 o poeta Drummond publicou Memórias do paladar, duas crônicas dedicadas a nos contar o que se comia na Cidadezinha no início do século 20, quando do outro lado do mundo nascia a culinária futurista de Marinetti.
Em Memórias II, Drummond revive Siá Maria, seu anjo da guarda contra os “decretos” do Solar dos Andrades; alude a certa sobremesa, singela e misteriosa preparada pela mãe Julieta Augusta.
Depois de oito anos o doce mistério no céu da boca do pequeno Carlito é revelado na revista O Cruzeiro: Leite, ovos açúcar & canela em português ou simplesmente Canela y Misterio, em espanhol.
A autora da revelação é Thereza de Paula Penna (1927-2007), nascida em Curvelo MG, onde se dizia: “mulher Paula Penna mansa, nasceu morta”.
A Thereza é irmã de Alceu Penna (1915-1980), desenhista, ilustrador, figurinista, autor das Garotas do Alceu e um dos primeiros a desenvolver a técnica dos quadrinhos no Brasil.
A Vila de Utopia conta a história e dá a receita, mais doce do que o mel, para ler ou cozinhar e aquecer os corpos confinados enquanto a pandemia passa e os pandemônios ladram. Por hora, “Fique em Casa” e leia a Vila de Utopia.
Leite, Ovos Açúcar & Canela

Thereza de Paula Penna
(uma receita para Carlos Drummond de Andrade)
Em “O céu da boca”, crônica de Carlos Drummond de Andrade, esse grande poeta diz: “E nunca mais ninguém soube fazer para mim, por mais que eu explicasse e suplicasse e inventasse, e por maior que fosse a boa vontade da executante, certa sobremesa singelíssima de leite fervendo, ovos, açúcar, canela e mistério, que mamãe cansada de tantos filhos, e de tanto rebuliço de cada filho, ainda assim mansamente nos preparava”.
Creio que este mistério a que Drummond se refere seja a saudade da infância e lembrança de coisas antigas misturadas ao paladar deslumbrado de um menino de Itabira.
Chegando à idade adulta, o paladar exigente espera encontrar tudo isto de volta num prato de doce fumegante cujo segredo o grande poeta procura em vão.
Nas minhas recordações de infância há também um prato com os mesmos ingredientes. Minha mãe, o preparava para os lanches dos dias frios.
A receita deve ser a mesma!
Sou mineira também e minha família, originária de Itabira, se honra do parentesco de literatos ilustres como Afonso Penna, Cornélio Penna e, em grau mais longínquo, de Carlos Drummond de Andrade…
Oxalá a receita seja a mesma e que o antigo menino encontre o encanto daqueles dias no sabor daquele doce composto de leite fervendo, ovos, canela e… saudade.
Ambrosia
(Alimento dos Deuses no Olimpo e em Minas Gerais.)
2 litros de leite, 1 colher de sopa de chá de sal, 1 e ¼ de xícara de açúcar, 6 ovos, 1 pau de canela, canela em pó.
Leve ao fogo, numa vasilha grande e larga, o leite com sal, açúcar e canela em pau. Deixe ferver, diminua o calor do fogo para conserva-lo apenas quente. Bata as claras em neve firme, junte uma a uma, três gemas, continue batendo. Derrame esta mistura de ovos sobre o leite, cuja fervura deve apenas se manifestar por um leve tremor. Quando os ovos estiveram cozidos, vire-os com uma espumadeira, conservando-os em pedaços grandes. Depois de cozidos, retire-os para uma sopeira. Bata as três gemas restantes, junte ao leite para engrossar. Retire o pau de canela e despeje o leite fervente sobre os ovos da sopeira. Polvilhe com canela em pó. Sirva em pratos fundos, polvilhado com mais canela.
Esta receita é excelente para aumentar o consumo de leite entre crianças rebeldes ou pessoas doentes. [Biblioteca da ABI-Rio. Coluna Lar Doce Lar… Revista O Cruzeiro, 25/5/1963]
Cristina Silveira sempre surpreendendo o leitor desta vila de utópicos desde antanho com saborosas revelações. Fiquei com água na boca. Venâncio Lage Pires
Caro Venâncio, pelo seu renome se não é Garrucheiro, descende de… pois então vá à Santa Maria tire leite de vaca rainha do curral e faça a ambrosia ou ovos moles ou ainda doce de leite talhado. Fico agradecida de que vc aprecie a nossa Vila Utópica e essencial. Obrigada pelo prestígio…
Cristina Silveira, que delícia de matéria.
Vou experimentar a receita.
Beijos doces
Gui, pois experimente a receita da Thereza, essa jornalista primorosa. Obrigada por nos ler.
Cristina,
Como disseram acima, matéria surpreendente, que envaidece a amizade e o conteúdo estimula se informar mais.
A receita instiga a quem é do ramo da gastronomia, preferiria, apreciar a receita.
Norberto de Nael.