A primeira Onda do garoto Carlito
Imagem: Maria de Alvarenga/CNSD/1939/Tratamento: Ricardo Tamm
Fernando Py: Onda, Wimpl – Poema-em-prosa (Maio…, Itabira, maio de 1918). Repr.: Revista Mineira, BH, fevereiro de 1923; Para Todos, Rio, 24.3.1923; D. de Minas, BH, 5.5.1923.
O jornal que estampou este poema-em-prosa foi criado para sair somente uma vez, no mês de maio de 1918, pelo poeta itabirano Astolfo Franklin e por Altivo Drummond Andrade, irmão de CDA.
Foi impresso em cores diversas e as publicações eram assinadas por extravagantes psudonímos. A matéria de CDA, publicada à sua revelia, por iniciativa do irmão, recebeu do autor a classificação de “brincadeira infantil”, o que não impediu, contudo, de transcrevê-la três vezes, cinco anos após, com alterações do texto que visavam a dar-lhe maior seriedade.
Segundo o poeta, é possível que date de uns dois anos antes (1916?); e é provável que haja escrito outras peças semelhantes, hoje inteiramente perdidas.
O exemplar consultado pertence ao acervo deixado pelo próprio CDA. Na reprodução em Revista Mineira vem junto com outros poemas-em-prosa: Música, Bem-aventurados e Mãos – sob o título genérico de Teia de Aranha; na publicação em Para Todos… está assinada pela inicial C.
Onda é o poema que ficou da série do garoto Carlito, havia outros, que o “vento cantou” suas cinzas ou foram rendados por traças. Mas, guardado numa gaveta bem perto do mar, Onda continua marolando nas páginas literárias.
A prova dos noves é que Onda é o único poema escrito e publicado em jornal (Maio) de Itabira, quando era a Cidadezinha, em 1918. Por isso mesmo, merece ser grafitado nos muros das ruas da Cidade; ser fotografia na parede dos corredores das escolas da Prefeitura, como inspiração cultural.
A Vila de Utopia apresenta as duas versões de Onda, a primeira é de 1923. A outra, transcrita de entrevista do poeta ao encanto de José, irmão de João Condé, no Correio da Manhã de 1948. (MCS)
ONDA
C.
– Nunca lhe contaram a história da onda?
– Nunca.
– Pois eu lhe conto a história da onda…
Ela veio, muito mansa, espreguiçar-se na praia,
numa caricia dolente. Parecia o corpo de uma mulher.
Era imensamente triste. Foi rolando sobre a areia, rolando…
Perto havia uma árvore, onde folhas secas punham olheiras de tisica.
A onda beijou-a longamente, num beijo de gaze, de espuma…
A árvore, então, derramou duas lágrimas verdes que a onda levou…
– Só?
– Pois o senhor acha pouco, homem insaciável?!
(Para Todos (Rio), 24/3/1923. Hemeroteca da BN-Rio)
Confidências do itabirano
José Condé
1.
Alguém afirmou um dia ser Itabira o lugar onde havia mais ferro no mundo. Desde essa época a cidade ficou vivendo em função dessa revelação.
Todavia, como outras da velha paisagem mineira, Itabira permaneceu a mesma; com seu doce ar colonial e suas casas sonolentas povoadas de fantasmas.
O antigo sonho de grandeza, porém, conserva-se o mesmo. Dir-se-ia o fundamento da vida do seu povo bom e simples – gente presa ainda ao passado, reservada como é do gosto mineiro, sóbria até na maneira de sonhar.
Foi isso decerto que levou o poeta a dizer:
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheiameento do que a vida é porosidade e comunicação.
Sabeis, naturalmente, de quem vos falo. Pois Itabira não é somente a terra do minério, mas também a terra de Carlos Drummond de Andrade. Seu pai foi o último de uma geração de fazendeiros à moda antiga, de senhores austeros para quem a vida era antes de tudo um estado de luta permanente.
É fácil, pois, imaginar o jovem Carlos Drummond: magro, de ar doentio, de uma tristeza que vinha daquelas ruas tristes, daquelas “noites brancas, sem mulheres e sem horizonte”.
2.
Retornando àquele tempo, vamos encontrá-lo feito caixeiro de uma casa comercial, espécie de empório onde se vendiam desde fazendas e carreteis de linha, até toucinho, sabão e vela de cebo.
Carlos Drummond concluira havia pouco o curso escolar e como tivesse uma constituição fraca, não permitiu sua mãe que ele continuasse os estudos em Belo Horizonte. Assim, para não ficar atôa, tornou-se caixeiro, embora não recebesse ordenado.
Isso foi durante a guerra de 1914-1918. E detalhe curioso: era um dos dois únicos germanófilos da cidade. Em vez de trabalhar, discutia; discutiu até o dia em que os alemães afundaram navios brasileiros.
Consequentemente sentiu-se cansado de ser germanófilo e entendiado de ser caixeiro. Abandou o “emprego” e como pagamento por oito meses de trabalho no balcão, recebeu de presente um par de calças zebradas – suas primeiras calças compridas.
3.
Começa então a primeira aventura no mundo das letras. Existia em Itabira um Grêmio Literário e Dramático Artur Azevedo, responsável pelas belas letras locais. Havia um limite de idade para se ingressar nele.
Como não tivesse a idade mínima exigida – quatorze anos – Carlos Drummond provocou uma reforma dos estatutos e pouco depois era admitido naquela asociação. Seu discurso de posse encheu de orgulho o coração do velho fazendeiro, seu pai.
Aliás, havia na sua família um ambiente generoso e compreensivo para as coisas do espírito. Os primeiros passos de Carlos Drummond na literatura foram conduzidos por seu irmãos Altivo, que escrevia poemas e crônicas. Este, estudado no Rio, costumava enviar ao futuro poeta revistas e livros, de Fialho de Almeida, Oscar Wilde e Antonio Patrício.
Certa vez, indo passar as férias em Itabira, Altivo (que segundo a moda do tempo assinav-se Altyvo) fundou um jornalzinho que viveu apenas um número. Intitula-se MAIO, e era impresso com tinta roxa e verde.
Nesse jornalzinho de Itabira, no longinquo ano de 1918, vamos encontrar pela primeira vez impresso um trabalho de Carlos Drummond de Andrade.
Vale a pena transcrevê-lo, pois assinala a estréia do poeta em letra de forma. Tinha ele 15 anos. Título da composição: ONDA. E reparem o extravagante pseudonimo que arranjou: WIMPL.
Uma onda veio, mansamente, espreguiçar-se na praia,
numa caricia dolente…
Parecia o corpo de uma mulher…
Era imensamente triste. Foi rolando sobre a areia, rolando…
Perto havia uma árvore onde folhas secas punham olheiras…
A onda beijou-a longamente, num beijo de gaze, de espumas…
A árvore, então, derramou duas lágrimas verdes que a onda levou…
4.
Daí até a estreia em livro, as coisas se passam mais ou menos rapidamente. Vai estudar no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte; depois mais dois anos no Colégio Anchieta, em Friburgo, de onde é expulso.
Novamente em Belo Horizonte, a partir de 1922, a poesia é a sua preocupação de todas as horas. São seus companheiros nesse tempo: Abgar Renault, Milton Campos, Gustavo Capanema, Emílio Moura, Mario Casassanta, Pedro Nava, Martins de Almeida e mais tarde Cyro dos Anjos.
Durante a tarde se reúnem na Livraria Alves; de noite, no Café Estrela, cujo dono, de nome Semeão, costuma emprestar-lhes dinheiro para irem ao cinema.
Estamos na época do modernismo. Os poemas de Carlos Drummond de Andrade dão uma nota de escândalo nos jornais em que vêm publicados.
Segue-se então o primeiro livro, Alguma Poesia, aparecido em 1930. Foi impresso nas oficinas da Imprensa Oficial de Belo Horizonte, onde trabalhava o poeta. Editado por conta própria, Carlos Drummond levou quase um ano para pagar as prestações.
O resto é muito conhecido. Está dentro da sua poesia.
O Rio. O passado agora longe. As lembranças.
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
5.
Concluída a fase de reminiscências, a nossa conversa tomou outro rumo. Alí estava o poeta, magro, de gestos comedidos, falando pouco, embora nos revelando algumas cenas da sua vida até agora desconhecidas do público e acreditamos mesmo que de alguns dos seus amigos mais íntimos.
Detalhe curioso. Poucos intelectuais brasileiros tem sido mais elogiados e mais atacados do que este poeta. E, no entanto, de nenhum outro se conhece tão pouco a respeito da sua vida íntima.
Há alguns anos uma de nossas revistas de cultura dedicou-lhe um número especial. Foram escritos mais de trinta artigos sobre a sua poesia. Nenhum, porém, que apontasse ao menos um aspecto de sua infância, que servisse de indicação a um provável e futuro biógrafo.
A não ser esta observação pessoal: “Carlos Drummond de Andrade podia ter uma alcunha, como os cavalheiros dos velhos tempos. Dava-lhe o de “O esquisitão”.
– Não, não sou esquisito – me disse ele. – Sou um tímido.
Já haviam passado mais de duas horas e a nossa conversa continuava naquela noite chuvosa de sábado. As palavras do poeta se multiplicavam abordando desde as suas reminiscências até as predileções em literatura, cinema ou viagens.
– Gostaria muito de viajar – me diz. Infelizmente amo demasiadamente a minha tranquilidade de espírito. Acredito que jamais viajarei, pois acho horrível esse negócio de tratar de passaporte e conhecer novas criaturas. E isso de tal maneira que um passeio de barca mesmo a Niterói me é extremamente penoso.
Carlos Drummond gosta de cinema. Mas é um desses saudosistas ainda cheios de ternura por Greta Garbo e Joan Crawford.
– Não dou muita confiança às artistazinhas de hoje.
Também gosta de música. Ravel, Beethoven e Satie são seus compositores preferidos. Em matéria de poesia, suas predileções se voltam para Apolinaire, Baudelaire e o nosso Manuel Bandeira, a quem admira totalmente.
– Foi o poeta que deu ao modernismo a melhor lição de poesia – diz Drummond referindo-se a Bandeira. – Mário de Andrade, embora grande, só será compreendido daqui a muitos anos.
– Alguma tentativa de romance? Indagamos.
– Não. Nunca pretendi nem pretendo escrever romance. Estou preocupado no momento em preparar um volume de contos.
E assim ficou encerrada a palestra. Com as confidências do itabirano, trazíamos também a presença de uma natureza humana apaixonada e rica, mas voltada para a própria vida do que para as pobres vaidades literárias.
Sua poesia revolucionária, para os ingênuos apenas uma maneira de atrair a atenção pública, é a poderosa mensagem de uma criatura à procura de si mesma. A mensagem sincera e ardente de um dos mestres da sua geração e um dos nossos maiores poetas.
[Correio da Manhã (Rio), 5/9/1948. Hemeroteca da BN-Rio]