A mais bela
Antônio Crispim*
Dentro de poucos dias será escolhida “Miss” Belo Horizonte, ou seja a moça gentil que disputará às outras moças gentis das cidades mineiras a honra de representar o nosso Estado no grande concurso de beleza do Rio. Eu não tenho candidata. Por isso posso arriscar uma opinião pessoal sobre o assunto a preocupar até os graves antropologistas do Museu Nacional – como se a beleza fosse um produto de museu, um fóssil qualquer… Não tenho candidata, mas quero que a eleita seja, de fato, a mais linda moça de Belo Horizonte, lugar onde há mais moças bonitas do que em não importa qualquer outro lugar do mundo, e onde, portanto, a seleção se torna dificílima (as concorrentes não precisam agradecer).
Oh, eu não queria ser juiz num tribunal que tivesse de escolher a minha mais linda patrícia. As responsabilidades são tremendas e o julgamento é quase sempre iníquo, pois o juiz, um efêmero como os outros efêmeros, costuma ver com o coração, que enxerga mal, quando não vê com os olhos de outrem, que são interessados, ou não vê de modo nenhum, para imitar a justiça, que é cega. Dizem que a beleza perturba. Eu acredito. Mas, se perturba, como avaliá-la? Olhos que a contemplam são olhos desvairados.
Conheci a beleza que não morre e fiquei triste…
Dizia Anthero de Quental, que as nossas melindrosas não conhecem, mais que foi um grande e pobre poeta.
Não, eu não queria fazer parte desse júri, mas queria que ele escolhesse, mesmo, a mais bonita de todas. Escolhesse entre as da Serra e as da Floresta, as de Santa Tereza e as de Santo Antônio, as da Lagoinha e as do Calafate, e que ela fosse realmente tão linda, tão indiscutível e urgentemente linda que todos, homens, mulheres, crianças, bichos, coisas, árvores, concordassem e dissessem:
– Sim, de fato ela é a mais bonita moça de Belo Horizonte.
Mas repito, eu não queria fazer parte desse júri tão cheio de responsabilidades…
*Antônio Crispim é pseudônimo de Carlos Drummond de Andrade. Crônica originalmente publicada na década de 1930 no suplemento “Minas Gerais”, do qual o poeta itabirano foi redator. E foi republicada na coletânea Crônicas (1930-1934), editada pela Secretaria de Estado da Cultura, em 1987.
Incrível! Nunca soube desse pseudônimo do nosso poeta, mas o estilo é inconfundível!
grande responsabilidade de um júri desses: avaliar a beleza essencial, invisível aos olhos “desvairados”! numa época quando pouco se falava sobre machismo (vamos ser!), uma mulher deveria ser “gentil”, para que aos olhos patriarcais ela fosse aceita e preterida ao casamento – à la Marcela Temer “bela, recatada e do lar”. mesmo em XXI também não se pode falar muito sobre machismo: é melhor seguirmos caladas e “gentis”, a homens e mulheres mudarem comportamento… rs rs… #sqn!
feminismo tem que ser “ensinado” todos os dias, em todos os lugares e haja gentileza e empatia pra se colocar no lugar do outro e compreender que o tempo de desconstrução do machismo, pode levar muito tempo, mesmo para as mulheres… somos vítimas dele, mas a luta é pela igualdade e não pela opressão de um pelo outro! mulher pode ser o que ela quiser: musicista, artesã, faxineira, dona de casa, médica, jornalista, puta, mãe, advogada, psicóloga, engenheira, dona de si e do seu corpo e gentil, só com que merecer!
a crônica foi escrita em 1930 e de lá pra algum avanço tivemos em relação ao machismo, mas os concursos de beleza continuam os mesmos: anacrônicos, caretas, preconceituosos e ainda apoiado por mulheres que acreditam mesmo, que o padrão de beleza é esse que o machismo e a sociedade patriarcal definiram: o do sem personalidade e anoréxico.
#CDA
#ViladeUtopia
#ForaTemer
#machistasnãopassarão