Conselhos literários de Carlos, meu pai

Ilustração: André, aquarela de Altamir Barros, 2008. Foto: Neuza Lima

Maria Julieta Drummond de Andrade

Pela vida afora, meu pai, que nunca teve intenção de ser professor de nada, me tem dado, quase sem querer, alguns conselhos, que me são de utilidade cada vez que improviso alguns passos na literatura. O primeiro e antigo, de quando eu tinha quatro ou cinco anos e, um dia, sentada no chão, comecei a cantar:

“Dei rosa, dei rosa,

Dei cravo, dei cravo,

Pra que que eu fui dar

A rosa mais linda

Do meu coração?”.

Meu pai gostou da brincadeira e, quando soube que eu mesma inventara, anotou minhas palavras e explicou-me, de maneira singela, que eu acabara de compor um poema. Fiquei surpreendida, porque, até então, nessa matéria, só conhecia os versinhos que decorava no jardim de infância.

– Então poesia era isso, essa repetição cadenciada, essa ida e volta rítmica. Esses nomes de flor que diziam muito mais do que significavam?

Naturalmente não formulei, na época, nenhuma dessas perguntas. Mas acho que aprendi difusamente, e para sempre, a identificar o fenômeno poético onde quer que ele se esconda. A prova é que até hoje me lembro com nitidez do episódio.

Mais tarde, já no colégio, quando tinha que fazer as primeiras redações e colocava um cromo cheio de purpurina no caderno, ele me aconselhou a descrever primeiro a cena ilustrada (uma galinha rodeada de pintinhos, uma casa de campo) e só depois construir a história que quisesse. Fiquei sabendo, assim, que o primordial numa página escrita é a objetividade.

Estando no curso de admissão escrevi, certa vez, que, assustada, eu me deitara “enroladinha como uma bola”. A severa professora modificou a frase para “enrijecida como um feixe”, e, como essas palavras não faziam parte do meu vocabulário de 10 anos, tive a sensação de que escrever direito era sinônimo de escrever difícil.

Meu pai, a quem mostrei a correção, desfez-me a ilusão, indicando-me que é exatamente o contrário, no caso, minha comparação, simples e natural, era bem mais expressiva do que a de dona Mirtes. A lição foi dupla, pois descobri também que os professores não são infalíveis.

Senhoritas Maria Julieta Drummond de Andrade e Maria Ethel Mahcado diante de um Chagall (Reprodução/Acervo: Cristina Silveira)

Já moça, tentando burilar um conto, embatuquei de repente num qualificativo para Lua. Meu pai veio em meu auxílio e me fez ver como era inútil pretender acrescentar mais atributos a todos os que se acham implícitos nessa palavra, tão cheia de poder evocativo. Ela já é em si branca, de prata, misteriosa, leitosa, bela, comovedora, tudo – e qualquer adjetivo só pode empobrecê-la.

As coisas têm um nome pelo qual devem ser chamadas; é o substantivo que importa e que necessita ser preservado em todo o seu valor. Mas, se eu insistisse em mostrar minha Lua sob um ângulo diferente, então teria que lançar mão de outras formas inesperadas, capazes de produzir um impacto no leitor. Sugeriu-me “Lua de abril”, que aceitei imediatamente.

Por outro lado, e sem entrar em contradição, mostrou-me que é pela escolha dos adjetivos que se reconhece um escritor. Comentando certa frase, em que eu mencionava um “fino agradecimento”, elogiou a combinação: esse fino modificava sutilmente a qualidade do agradecimento, indicando que quem o escrevera gostava de cultivar os bons autores.

Nesse ponto meu pai orientou-me de forma eclética, mas no fundo sempre tive a impressão de que, segundo ele, se eu me limitasse a ler Machado de Assis, não necessitaria de outra aprendizagem.

Acostumei-me, assim, a contos que tem começo, meio e fim; a romances em que a linha argumental é secundária e nos quais interessa, sobretudo, a inquietante análise psicológica dos personagens; a crônicas em que o tema supostamente fundamenta! serve apenas de ponto de partida para as divagações, pois é no mínimo que se encontra a essência do acontecimento.

Também a seu conselho, li e reli o Journal, de Jules Renard, e os Carnets, de Joubert, dois catedráticos do pensamento cético e condensado. Em Flaubert meu pai chamou-me a atenção para a frequência do emprego da terceira pessoa do singular, em vez do eu revelador.

Fez-me meditar sobre o início da parte VI de L’Education Sentimentale, quando, falando de Frederic Moreau, desiludido, Flaubert se limita a anotar: Il voyagea, Il connut la melancholie des paquebots…”

E dessa maneira isenta, discretíssima, transmite o sofrimento e a solidão do homem, durante os anos em que esteve longe de Mme. Arnoux, aprendi que economia de palavras e de emoção são indispensáveis para quem tenciona escrever.

Ensinou-me também a usar o dicionário sem preguiça e com prazer, a não dispensar um dicionário de verbos e regimes, a colecionar todos os dicionários, a fugir da tentação de fazer literatura epistolar e a só escrever cartas para dar e pedir notícias, a não ser exigente demais comigo mesma e admitir humildemente certas repetições de palavras e de sons, das quais os escritores franceses abusam, sem preocupação. E sobretudo a evitar a prolixidade:

– Escrever é cortar palavras – ele me vem repetindo sem cessar e com razão.

É por isso que, na esperança de ser capaz, pelo menos hoje, de seguir este conselho difícil, vou ficando por aqui.

(Jornal do Brasil, 26.10.1982)

Anúncio da Prefeitura de Itabira no JB em 31/10/1982

Conselhos Literários…, de Maria Julieta, está na cabeça da página 10, do Caderno Especial do JB: Drummond, 80 Anos. Complementa a página, o poema, Balada livre em louvor de Carlos Drummond de Andrade, de Manuel Bandeira para os 60 anos do poeta, e fecha com um rodapé da Prefeitura de Itabira, no governo de Milton Dias dos Santos, em homenagem ao poeta.

 

 

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