A Geopolítica de um Quadrilátero Mortífero: a mineração enquanto a “pedra” no caminho de Drummond
Foto: Miguél Bréscia
Por Vagner Luciano de Andrade*
EcoDebate – Mineiro, Minério, Minerar, Mineração, Minerador, Minerário. Quando se analisa algumas palavras-chave na literatura nacional e internacional verificam-se publicações múltiplas que versam sobre ecologia política, sobre paisagem cultural, sobre patrimônio natural e outras premissas do tempo presente.
Assim o respectivo texto discute questões inerentes à temática do ambiente (in)sustentável em paisagens tradicionalmente mineradoras. Neste contexto cita-se a vida e obra de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), um dos mais célebres mineiros.
Como exemplo inicial tem-se “O maior trem do mundo” publicado em 1984 no Jornal “O Cometa Itabirano:
O maior trem do mundo
Leva minha terra
Para a Alemanha
Leva minha terra
Para o Canadá
Leva minha terra
Para o Japão
O maior trem do mundo
Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
Engatadas geminadas desembestadas
Leva meu tempo, minha infância, minha vida
Triturada em 163 vagões de minério e destruição
O maior trem do mundo
Transporta a coisa mínima do mundo
Meu coração itabirano
Lá vai o trem maior do mundo
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei não voltará
Pois nem terra nem coração existem mais.
Nos dizeres de Drummond, nota-se um clamor contrário aos múltiplos malefícios advindos desta prática tão comum nas “Minas” e com recente ampliação para as “Gerais”. A mineração é tão inerente à mineiridade, que pensar o Estado, sem sua participação ativa e inativa, a modelagem histórica, socioeconômica e cultural se torna algo impensável.
“Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra”. Foram muitas “pedras” nos caminhos drummondianos. São muitas “pedras” no caminho dos mineiros.
Esse mineiro/minense compôs poemas diversos sobre as paisagens minerárias, versos que criticavam com propriedade as mineradoras e, respectivamente os governos estrategicamente organizados ao sacrifício da geografia mineira e dos trabalhadores pelo capital privado destinados à “desculpa” da industrialização emergencial e do progresso apressado para uma nação demasiadamente “atrasada”.
O viés vil e a ganância lucrativa pelo metal demostraram a historicidade e a perversidade da lógica minerária, e de sua ilógica criminalidade.
O termo “pedra de ferro, futuro aço do Brasil”, evocada na “Confidência do Itabirano” evidenciam as relações conturbadas dele com a mineração e que foram alvo de rica análise em Maquinação do Mundo, um livro de José Miguel Wisnik publicado pela Editora Companhia das Letras em 2018. Uma boa referência para se pensar na ecologia, enquanto meio de protesto submerso na contemporaneidade.
O autor, autóctone do Leste do Quadrilátero Ferrífero é um ícone “imortal” da Literatura brasileira, e suas obras são um importante panorama acerca da ecologia minerária enquanto esboço político de um protesto socialmente latente.
A partir da malévola mineração entre os caminhos historicamente dispostos entre Belo Horizonte e Itabira – MG, o autor construiu reflexões expressivas. Seus descaminhos literários descrevem itinerários minerários evocando uma realidade mineiríssima que ecoa violação, progresso e desolação.
Alternâncias se fazem, se refazem e se desfazem nas serras mineiras. No seio desse território/coração minerário se consolidou o inconciliável Quadrilátero Ferrífero e seus múltiplos usos e abusos.
Do casarão de sua família, ainda criança, avistava o amado Pico do Cauê, serra diminuída a uma cratera após décadas de exploração contínua da antiga estatal CVRD – Companhia Vale do Rio do Doce. O pico aparece no poema “Itabira”, de Alguma Poesia datado de 1930.
Ao Cauê
Carlos Drummond de Andrade
Meu Cauê, se eu pudesse,
Se algum poder tivesse,
Não te veria sofrer…
O teu cimo desabando
Ferro em lágrimas rolando
Das escarpas a correr…
Teu sofrer resignado,
Teu silêncio abnegado
Dão-nos bem uma lição:
Tua vida se acabando
As indústrias aumentando,
És do mundo a redenção!…
Itabira,
Eu me alegro, mas padeço,
Minha terra,
Sou feliz, mas não esqueço
Itabira
Que o Cauê é tua glória,
Teu passado, tua história
E sofro ao vê-lo ruir
Drummond nasceu na antiga cidade de Itabira do Matto Dentro, em 31 de outubro de 1902 e sua memória e percepção dessa pequena urbe e regiões adjacentes viria a permear parte de sua obra. No entorno, localidades seriam violadas pela égide minerária: Barão de Cocais, Catas Altas, Santa Bárbara, dentre tantas outras. Essa área seria o nascedouro do ambicionado “quadrilátero mortífero”.
Em Itabira, surgiu em 1942, a CVRD, criada pelo presidente Getúlio Vargas para explorar comercialmente a riqueza mineral do Quadrilátero Ferrífero e privatizada por Fernando Henrique Cardoso em 1997.
O escritor estudou no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, e no Colégio Anchieta, dos Jesuítas, em Nova Friburgo, tendo formado em Farmácia pela UFMG. Fundou nos meados dos anos de 1920, com Emílio Moura e outros companheiros, “A Revista”, para divulgar o Modernismo Brasileiro.
Em 1925, casou-se com Dolores Dutra de Morais, com quem teve dois filhos, Carlos Flávio, primeiro filho do casal, morto meia hora após o seu nascimento, e Maria Julieta. Durante a maior parte da vida, Drummond, um ‘historiador’ autodidata foi funcionário público, embora tenha começado a historiar cedo e prosseguisse escrevendo até seu falecimento, que se deu em 17 de agosto de 1987 no Rio de Janeiro, doze dias após a morte de sua filha.
Além de poesia, produziu contos, crônicas e livros infantis. Da ironia à criticidade escreveu e descreveu seus saberes, sabores e dissabores. A capital mineira se tornaria seu “triste horizonte”:
“Tento fugir da própria cidade, reconfortar-me em seu austero píncaro serrano. De lá verei uma longínqua, purificada Belo Horizonte sem escutar o rumor dos negócios abafando a litania dos fiéis. Lá o imenso azul desenha ainda as mensagens de esperança nos homens pacificados – os doces mineiros que teimam em existir no caos e no tráfico. Em vão tento a escalada!”
Contista, cronista e poeta brasileiro, considerado por muitos o mais influente poetizador brasileiro do século XX, Drummond foi um dos principais poetas da segunda geração do Modernismo no Brasil. Para diferentes analistas, expressou os dissabores de sua época e sociedade denunciando permanências e rupturas então desapercebidas ou ignoradas pela grande maioria.
Sua escrita expressa a busca de uma legitimidade brasileira, e de uma criação nacional, própria e insubordinável aos mandos e desmandos capitalistas neoliberais.
A CVRD se tornaria seu “vale de lágrimas” e como empresa pública privatizada nos anos 1990, sentenciou a nação brasileira a um dos maiores desastres ambientais da humanidade, em 2019:
Lira itabirana
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
(Poema publicado no jornal O Cometa Itabirano, em dezembro de 1983)
A poesia de Carlos Drummond a partir da dialética “eu x mundo”, desdobrando-se em três atitudes: eu maior que o mundo imediato, marcada pela poesia irônica; eu menor que o mundo opressor, marcada pela poesia social; eu igual ao mundo acolhedor/excludente abrange a poesia metafísica.
O contexto em que Drummond vive o estimula a escrever sobre a poesia política, debruçando-se sobre as angústias decorrentes da mentalidade e da civilização formada a partir da Guerra Fria e amarrada ao capitalismo neoliberal, à tecnocracia, às ditaduras de toda sorte.
Essas tessituras ressoam dura e secamente no eu artístico e em sua posição filosófica: do pescoço para baixo sou marxista, porém do pescoço para cima sou espiritualista e creio em Deus, diriam seus biógrafos.
No final da década de 1980, o erotismo ganha espaço na sua poesia até seu último livro, porém a denúncia e o protesto o caracterizam enquanto ícone de seu tempo. O corriqueiro e banal é tema constante de criticidade discreta em sua obra, como a ironia deflagrada no trecho abaixo retirado de “De Alguma Poesia” escrito em 1930:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar… as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
Pessimista, objetivo e concreto, Drummond, como os modernistas, segue a libertação proposta por Mário de Andrade e Oswald de Andrade, com a instituição do verso livre, mostrando independência metodológica e conceitual. Herdando a liberdade linguística, o verso livre, as temáticas cotidianas, expressam problemas e mentalidades em metamorfoses explícitas.
A obra de Drummond vai além daqueles mineiros de seu tempo, alcançando um coeficiente de solidão, que “prendendo” tematicamente o leitor, desprende-o da situação-prisão descrita. Ler Drummond é uma atitude livre de referências ou prospectivas, ou de marcas ideológicas, desconstruindo o ideal das coisas para novas reconstruções.
Entendendo o ideal como irreal e impossível no plano do cotidiano, leva-nos a imergir nos absurdos intrínsecos à historicidade mineiramente humana. Lendo-o percebe-se a equivocada história do próprio solo mineiro, e, portanto, brasileiro, onde progresso, se torna sinônimo de alienação, manipulação e degradação.
Ao descrever a geopolítica de um quadrilátero mortífero materializa a imaterialidade da mineração, enquanto a “pedra” no caminho de Minas Gerais. Há formas mais eficiente, humanas e sustentáveis de se progredir.
Mineiramente te agradecemos, Drummond, pois seu protesto ecoa em nossos horizontes, forçando-nos a corromper com a pretensa modernidade política alinhada às mineradoras que desconstroem paisagens, horizontes, sonhos e histórias.
Em cada pico que desaparece, uma força cresce dentro de nós. No meio do caminho havia uma pedra. Ela, (a imobilidade), não existe mais. Que Minas Gerais supere sua condenação minerária e se permita trilhar novos caminhos.
*Vagner Luciano de Andrade, graduado em História/Licenciatura pelo Centro Universitário de Maringá – UNICESUMAR, especialista em Museografia e Patrimônio Cultural pelo CEUCLAR – Centro Universitário Claretianos. Agente voluntário de educação e mobilização da Rede Ação Ambiental
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