Drummond nunca brigou com Itabira, nem a cidade com o filho mais ilustre: sua crítica sempre foi à Vale
Na visita ao poeta em 14 de fevereiro de 1981, ao se despedir, Drummond fez um pedido à equipe do Cometa: ‘Não deixem de brigar pelos direitos de Itabira frente à mineração
Foto: Humberto Martins/ Acervo do Cometa Itabirano
Uma leitura crítica ao documentário Uma Fotografia na Parede, da TV Globo Minas
Por Carlos Cruz
O documentário Uma Fotografia na Parede, exibido pela TV Globo Minas numa tarde de sábado, 27 de setembro de 2025, parte de uma premissa de que a cidade finalmente compreende o sentido nostálgico da frase “Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!”, como se o poeta tivesse se afastado por mágoa ou rejeição de sua aldeia natal — e de que só agora a cidade estaria fazendo as pazes com seu filho mais ilustre, Carlos Drummond de Andrade.
Essa leitura, embora possa parecer poética, não se sustenta historicamente. Drummond nunca rompeu com Itabira. O que houve — e está fartamente documentado ao longo da história — foi uma sucessão de críticas contundentes do poeta-cronista à Companhia Vale do Rio Doce, pela exploração mineral que pouco deixou à cidade em troca da imensa riqueza de seu subsolo.
Suas crônicas no Correio da Manhã são testemunhos dessa indignação, como se vê nas postagens realizadas neste site Vila de Utopia. A dor de Drummond não era contra sua terra natal, mas contra o descaso da mineradora para com a cidade onde passou a infância e imaginou que sua história era mais bonita que a de Robinson Crusoé. Leia as crônicas aqui: Drummond e a mineração.
Essas mesmas críticas tiveram prosseguimento posteriormente nas páginas do Jornal do Brasil, como também no jornal O Cometa Itabirano.
A “conciliação” com Itabira, se houve, foi com o poeta vivo. Com a Vale, nunca
Se é que houve alguma “conciliação” de Itabira com Drummond — e vice-versa — ela foi iniciada e cultivada muito antes. Nas décadas de 1970 e 1980, as Semanas de Literatura promovidas pela antiga Faculdade de Ciências Humanas de Itabira (FACHI), sob liderança das professoras Ana e Graça Lima, e Ângela “Danja” Sampaio, já celebravam o poeta com afeto e reconhecimento.
Em 1979, o jornal O Cometa Itabirano tornou-se um espaço de colaboração esporádica de Drummond, que publicou ali poemas contundentes com críticas à mineração como Lira Itabirana (“O rio é doce. A Vale, amarga…”) e O Maior Trem do Mundo, esse último com o jornal distribuído durante o I Encontro Nacional de Cidades Mineradoras, em 1984.

Inicialmente, Drummond recusou-se a divulgar o evento por não acreditar mais nas palavras dos homens públicos, conforme registrou em carta ao Cometa. Mas sua contribuição literária foi enviada mesmo assim, como gesto de compromisso com a cidade e com a causa por justiça tributária às cidades mineradas — por meio de poesia-protesto.
Foi como uma contribuição inestimável a esse encontro que o poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade encaminhou o poema O Maior Trem do Mundo, publicado no jornal O Cometa Itabirano, do qual se tornou frequente colaborador, depois de escrever, em carta à redação, que não iria ajudar na divulgação do encontro, por não mais acreditar nas palavras dos homens públicos, depois de se ver derrotado em suas diferentes frentes de luta em favor de sua terra natal.
“Minha velhice experiente me ensinou tantas coisas. Uma delas: descrença em nossos homens públicos”, assim manifestou o poeta em carta ao O Cometa, expressando ainda a sua “impossibilidade racional de crer na letra das palavras e no discurso dos homens”.
O poeta, mesmo não acreditando nas palavras dos homens públicos e revelando o seu justificado ceticismo, poucos dias depois, para grata surpresa de todos na redação do jornal itabirano, enviou o poema-manifesto O Maior Trem do Mundo, publicado na edição de agosto de 1984.
O jornal com o poema foi distribuído durante o encontro nacional das cidades mineradas, evento preparatório para o posicionamento político das cidades frente à futura Assembleia Nacional Constituinte, instalada em 1º de fevereiro de 1987, após o fim do regime militar, com o objetivo de elaborar uma nova Constituição democrática para o país, promulgada em 1988.

Um gesto de afeto e gratidão
Outro episódio revelador de que nunca houve essa briga entre Drummond e Itabira — inventada por áulicos da Vale, que se sentiram ofendidos pelas críticas do poeta à mineradora — ocorreu quando o então prefeito José Maurício Silva, atendendo a pedido do poeta, também em 1984, dividiu a avenida Carlos Drummond de Andrade, designando um trecho com o nome de seu pai, Carlos de Paula Andrade.
Essa avenida, com o nome do patriarca da família Drummond, se estenderia até o bairro Praia, mas acabou sendo usurpada por sucessivos prefeitos, limitando-a ao trecho da praça Acrísio até a ponte em frente à Prefeitura, para que fossem feitas outras homenagens a parentes e amigos de quem governava a cidade. Enfim, Drummond estava certo ao dizer que não mais acreditava nas palavras dos homens públicos.
Na visita que o Cometa fez a Drummond, em 14 de fevereiro de 1981, ele disse não achar justo receber a homenagem com a avenida em seu nome ainda em vida, enquanto seu pai — fazendeiro e ex-vereador — permanecia esquecido. E na saída, já se despedindo da “patota” do jornal, fez mais um apelo: “Não deixem de lutar pelos direitos de Itabira, como vocês já vêm fazendo, frente à mineração.”
Pouco tempo depois, ao receber da Prefeitura o decreto-lei nomeando o trecho da avenida com o nome de seu pai, e uma cesta com prendas de Itabira, especialmente selecionadas pela ex-chefe de cerimonial Maria Luíza “Manu” Sampaio, o poeta agradeceu com uma crônica publicada no Cometa, encerrando com a frase: “Beijo comovido a fotografia na parede.”
Esse gesto, longe de indicar mágoa ou distanciamento, revela o afeto que Drummond nutria por sua terra natal.

Quem brigou com quem?
Portanto, se houve alguma hostilidade com o poeta — repita-se — ela partiu de alguns itabiranos áulicos da Vale, os puxa-sacos de sempre, incomodados com as críticas que ele fazia à mineradora. Mas isso jamais representou um rompimento entre Drummond e a cidade.
A ideia de que ele “não gostava de Itabira” é uma distorção piegas e injusta, difamatória até. O que Drummond não gostava — e isso ele deixa claro em suas crônicas — foi da letargia social que testemunhou em 1932, quando voltou à cidade e viu uma comunidade paralisada, à espera da riqueza que viria com a exploração do Pico do Cauê.
“A cidade parece encantada. E de fato o é. Acordará algum dia? Os itabiranos afirmam peremptoriamente que sim. Enquanto isso, cruzam os braços e deixam a vida passar. A vida passa devagar em Itabira do Mato Dentro”, escreveu o poeta na crônica Vila de Utopia.
E lamentou as perdas incomparáveis:
“Itabira, onde estão tuas trinta fábricas de ferro do tempo do barão de Eschwege, com seus cadinhos dotados de trompas e martelos hidráulicos, os seus fornos e as suas oficinas de armeiro, que antecederam e suplantaram em eficiência a real fábrica do Morro do Pilar?
– Que notícias me dás, Itabira, da Associação Brasileira de Mineração, último esforço da nossa gente para manter o caráter nacional dos nossos depósitos minerais, hoje entregues ao estrangeiro tão arrebentado quanto nós para explorá-los?”
São perguntas que o poeta-cronista itabirano fez — e que ainda persistem sem resposta. Terá a cidade, algum dia, essas respostas?
Méritos da produção global
Para não dizerem que só tenho críticas, apesar dessa falha, ou falta de interpretação, o documentário Uma Fotografia na Parede tem méritos importantes, como o de deixar implícito — mas visível — quem o patrocinou, com mensagem explícita de amor a Minas Gerais nos intervalos da exibição.
Ao trazer Drummond de volta ao centro do debate cultural, já se aproximando o mês de seu aniversário de nascimento, o documentário reacende em Minas Gerais o interesse por sua obra e por sua relação com Itabira.
A produção acerta ao tratar o poeta com humanidade, explorando sua dor e sua nostalgia sem cair em caricaturas. A trilha sonora e a direção de imagem criam uma atmosfera contemplativa, respeitando o tempo da poesia e da memória.
A presença de moradores locais, alguns poucos estudiosos de sua obra, e as imagens da cidade contribui para valorizar a cultura itabirana e estimular reflexões sobre identidade e pertencimento — mas sem apresentar, obviamente, o impacto da mineração que é, de fato, a fotografia na parede que ainda incomoda com sua poeira permanente lançada sobre a cidade.
Talvez por motivos óbvios, o documentário não aborda a tensão entre progresso econômico e ausência de preservação cultural — motivo de sofrimento para o poeta, mesmo distante de sua terra natal. Até as pedras de hematita únicas que existiam no centro histórico de Itabira foram entregues à Vale em pagamento de “dívidas” do município à mineradora.
Ao não trazer à tona o impacto da mineração, o documentário deixa de convidar o espectador a refletir sobre o legado da Vale — o que foi deixado (ou não) para Itabira — tema central nas crônicas de Drummond no Correio da Manhã, Jornal do Brasil e em O Cometa Itabirano. Leia aqui: A poesia de Drummond em defesa de sua terra natal.
O fato de o documentário estar disponível no Globoplay amplia seu alcance. Permite que mais pessoas conheçam esse recorte da história entre Drummond e Itabira ainda que por esse viés enviesado. Mas recomenda-se consultar outras fontes já citadas para entender melhor essa relação do poeta com sua aldeia — e com a mineração.
E, sobretudo, é preciso deixar claro, repetindo-se à exaustão: Drummond nunca brigou com sua cidade. Sua crítica foi sempre à mineradora — que ele, inclusive, chamou de “A Gulosa”, e conforme se constata também em O Maior Trem do Mundo:
“O maior trem do mundo
Transporta a coisa mínima do mundo
Meu coração itabirano
Lá vai o trem maior do mundo
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei, não voltará
Pois nem terra nem coração existem mais.”
É assim que “só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma com a derrota incomparável”.
Drummond não se afastou de Itabira. Sua poesia e crônicas são testemunhos de amor à cidade e denúncia contra o que a corroía — e ainda corrói com a mineração predatória. É assim que fotografia na parede não é símbolo de rompimento, mas de saudade — e de alerta.
Que o documentário Uma Fotografia na Parede sirva como ponto de partida para revisitar essa história com mais profundidade, sem apagar os versos, as palavras e os protestos que o poeta deixou como legado.
E que Itabira, ao olhar para essa fotografia, não apenas se comova — mas também se reconheça, se responsabilize e contribua para mudar essa mesma realidade mineral que persiste e incomodava profundamente o poeta.
Carlos Cruz, merece aplauso o texto publicado pela Vila de Utopia neste 6 de outubro em que é feita uma abordagem crítica a respeito do documentário Uma Fotografia na Parede, da TV Globo Minas. Não posso deixar de concordar com você: Drummond não brigou com Itabira e Itabira não brigou com Drummond. O olhar míope, enviesado do itabirano (que não se pode negar) em relação ao poeta , nasceu e se enraizou justamente como uma reação às críticas do escritor à mineradora que se tornou “presente” na cidade “abandonada” pelo ilustre filho ausente. A “fotografia na parede” tem sido, ao longo da história, o escudo e a lança com que se procurou cunhar e defender a imagem de desprezo e abandono necessária aos interesses da grande empresa que se fixou na cidade. Poucas ou raras vezes vi uma leitura tão lúcida quanto a essa questão instigante que encontra eco no imaginário do itabirano.
Drummond e Vale nunca se bicaram. É hipocrisia a empresa ficar gigolando o poeta. O neto herdeiro não devia permitir.
CDA: “A CVRD destruiu Itabira e tudo mais onde passasse um veio de ferro, um filete de ouro, um barranco de manganês e todos os minérios que faziam a riqueza de Minas Gerais”. Jornal do Comércio (AM), 15/10/1986.