Itabira quer mais do que cursos de Exatas no campus da Unifei, no Distrito Industrial Maria Casemira Andrade Lage
É hora de sonhar – e cobrar – uma universidade plural, pública e gratuita, com moradias estudantis e restaurantes a preços acessíveis
Fotos: Jessica Estefani/ Ascom/CMI/ Acervo Vila de Utopia
Apesar dos investimentos, a Unifei descarta o curso de Medicina e mantém foco exclusivo em áreas tecnológicas, perpetuando lacunas na formação de profissionais da saúde e da educação em Itabira
Carlos Cruz
No evento de assinatura do termo de repactuação entre Prefeitura, Unifei e Vale, realizado na quinta-feira (25), no campus da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), localizado no Distrito Industrial Maria Casemira Andrade Lage (1828/1929, a instituição reafirmou seu compromisso com a expansão dos cursos em Itabira.
Entretanto, na coletiva de imprensa após os pronunciamentos protocolares, o reitor da Unifei, professor Marcel Parentoni, ao descartar novas gestões para a implantação de uma faculdade de Medicina no campus de Itabira, foi categórico. “A Unifei não veio para dividir, mas para somar”, disse ele, referindo-se, sem citar nominalmente, à existência do curso de Medicina da Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira (Funcesi).
“É um assunto (a abertura do curso de Medicina, público e gratuito) que deve ser tratado com respeito às outras entidades. Nosso foco de expansão neste momento é na área tecnológica, dadas as evoluções que já aconteceram na área da saúde em outras instituições”, afirmou o reitor.
Ou seja, mais uma vez Itabira perde por causa dessa idiossincrasia itabirana, repetindo um padrão de decisões que enfraquece boas propostas, em nome da não concorrência, e que agora começa a contaminar até a própria Unifei.
Antecedentes

Foi assim também na década de 1990, quando a Vale decidiu que não mais injetaria recursos na Fundação Itabirana Difusora do Ensino (Fide), caso esta continuasse mantendo a “deficiente” Faculdade de Ciências e Letras de Itabira (Fachi), que oferecia cursos de licenciatura nas áreas de Exatas, Humanas e Ciências Biológicas.
Naquela ocasião, o ex-bispo de Itabira, professor Marcos Noronha, que em 1968 articulou e obteve a instalação da primeira faculdade da cidade, com apoio da reitoria da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), retornou à cena itabirana propondo a instalação de uma Faculdade de Engenharia Ambiental, vinculada à recém-estruturada Universidade Estadual de Minas Gerais (Uemg).
Estava tudo encaminhado para que essa faculdade da Uemg se estabelecesse em Itabira. O então presidente da Vale, Francisco Schettino, inicialmente endossou a proposta e prometeu doar o escritório do Areão para a instalação da nova faculdade itabirana, pública e gratuita.
Mas eis que surge a divergência do então bispo de Itabira, dom Mário Gurgel, para colocar água na fervura. Disse em entrevista ao jornal O Cometa, que o Estado estava falido, que a Uemg não iria para frente e que a Prefeitura acabaria tendo que arcar com sua manutenção. Defendeu, então, que seria melhor criar uma fundação comunitária para gerir o novo ensino superior de Itabira, sucedendo a Fachi.
No dia 15 de agosto de 1993, começou a nascer a proposta de criação da Funcesi, enterrando de vez a possibilidade de trazer uma extensão da Uemg para Itabira e sepultando a proposta da Faculdade de Engenharia Ambiental. “Será uma fundação normal, sem depender do Estado”, disse dom Mário, ao defender a proposta da fundação comunitária.
E assim criou-se a Funcesi, em 5 de outubro de 1993, uma instituição privada que continua recebendo recursos da Prefeitura e da Vale — a exemplo da recente instalação do curso de Medicina.
O prédio do Areão, que seria doado pela Vale para a instalação da Uemg, acabou sendo adquirido pelo então prefeito Li Guerra (1993–96) para nele instalar, inicialmente, a Itaurb, pagando-se a bagatela de US$ 1 milhão. Posteriormente, já no primeiro governo do ex-prefeito Ronaldo Magalhães (2001-04), foi doado pela municipalidade à Funcesi com o fim específico de se instalar novas faculdades.
Atualmente, salas do prédio do Areão têm sido alugadas, inclusive para a Prefeitura, quando nela se instalou durante a reforma do paço municipal — e até pela própria Vale e algumas de suas empreiteiras, em um claro desvio de finalidade no emprego de uma doação pública.
Medicina da Unifei está fora dos planos e a justificativa não convence

Agora, novamente, pelas palavras do reitor da Unifei, Itabira perde a oportunidade de ter uma faculdade de Medicina, pública e gratuita, para não entrar em concorrência com a Funcesi e seu caríssimo curso de formação de médicos.
Durante o evento na Unifei, este repórter questionou o reitor sobre a ausência de cursos fora do eixo tecnológico, especialmente nas áreas da saúde, humanas e licenciaturas. A pergunta mencionou o requerimento feito pela Unifei em 2014 ao Ministério da Educação para a criação de um curso de Medicina em Itabira — na mesma época em que a Funcesi também apresentou proposta semelhante.
O reitor confirmou que o requerimento foi abandonado e justificou, afirmando que Itabira não estaria mapeada pelo MEC para a abertura de cursos médicos. Acrescentou também que a Unifei não pretende “concorrer” com outras instituições do município, em referência à Funcesi, que já oferece o curso, ainda por formar sua primeira turma.
A justificativa, embora diplomática, levanta dúvidas sobre o papel da universidade pública na formação de profissionais da saúde. A presença de uma faculdade privada comunitária não deveria impedir a Unifei de oferecer formação médica gratuita e de qualidade — especialmente em uma região marcada por carência de profissionais e demanda crescente por atenção básica.
Em contrapartida, o reitor mencionou possibilidades de atuação tecnológica na área da saúde, como engenharia eletrônica biomédica e biotecnologia — o que, convenhamos, é muito pouco se comparado à expectativa gerada com o protocolo do pedido do curso de Medicina para o campus de Itabira.
Licenciaturas e o apagão na formação de professores
A pergunta que formulei também abordou a ausência de cursos de licenciatura em Itabira — uma lacuna crítica diante da iminente aposentadoria de boa parte do corpo docente da rede básica de ensino.
O reitor contra-argumentou dizendo que a Unifei forma professores há 15 anos em cinco licenciaturas, mas nenhuma delas é ofertada presencialmente no campus local. Informou ainda que há estudos para trazer a licenciatura em Física, hoje ofertada na modalidade EAD (educação a distância), para se estabelecer fisicamente em Itabira, em cumprimento a uma portaria do governo federal que exige presencialidade.
O campus da Unifei em Itabira também não possui nenhum curso na área de Humanas, o que limita sua capacidade de contribuir com a formação integral e interdisciplinar que o território demanda — deixando de configurar, em Itabira, um campus universitário na verdadeira acepção do termo.
Ainda não há também previsão para outras licenciaturas no campus local, como cursos de Letras, História, Geografia ou Pedagogia — áreas essenciais para suprir o déficit de professores na região, além de fomentar o pensamento crítico, tão carente nesta cidade ainda garimpeira, marcada pela mineração em larga escala.
Formar professores é uma das missões centrais da universidade pública. E em territórios como Itabira, que enfrenta o desafio de diversificar sua economia e fortalecer suas instituições sociais no pós-mineração, essa missão ganha ainda mais relevância.
O que mais importa, conforme disse o prefeito Marco Antônio Lage (PSB), que equivocadamente classificou como “marco zero” a assinatura do termo de repactuação — esquecendo-se dos investimentos já realizados pela Prefeitura desde 2008 — é a consolidação da Unifei como laboratório de novas tecnologias na área de engenharia, inclusive no reaproveitamento de rejeitos de minério de ferro para finalidades além da produção siderúrgica.
Com os novos prédios concluídos — o que só deve ocorrer em 2027 — a expectativa é dobrar, nos próximos anos, o número de estudantes matriculados e presentes no campus de Itabira, atualmente em torno de 1.800. Número ainda bem abaixo do que foi prometido em 2008, quando o campus avançado da Unifei foi instalado com projeções ambiciosas de ocupação e impacto regional.
Campus não universitário de Itabira
O reitor Marcel Parentoni também assegurou que o campus local não é mais uma extensão periférica da sede em Itajubá, mas um polo com identidade própria e vocação estratégica. Precisa, no entanto, ganhar autonomia para definir novos rumos, com cursos em todas as áreas do conhecimento, a fim de se tornar verdadeiramente um campus universitário.
Quem sabe, até mesmo se desvinculando de Itajubá, para se criar a Universidade Federal de Itabira (Unifeitabira)? Essa é uma das grandes dívidas históricas que a União tem com o município que gerou tantas “divisas” com a exportação da hematita do Cauê, sem que fosse traduzida em pagamento de impostos e royalties, uma vez que até 1969 nem mesmo o mísero imposto único sobre a mineração existia — e a Vale nada pagava pelo que era extraído de seu subsolo.
De positivo, há a proposta, antiga tanto quanto o próprio campus, mas ainda não realizada, de se instalar como extensão universitária um Centro de Desenvolvimento Tecnológico, que serviria inclusive para atrair novas indústrias ao futuro Distrito Industrial III, na antiga Fazenda Palestina, que mais uma vez será doada à Prefeitura para essa finalidade.
O diretor do complexo minerador da Vale, Diogo Monteiro, reforçou que o investimento é estratégico para atrair talentos e gerar soluções tecnológicas que contribuam para o desenvolvimento regional.
Já Marcelo Klein, diretor de Relações Institucionais da empresa, destacou que a educação é um dos pilares da agenda de sustentabilidade da mineradora — e que o projeto está alinhado ao programa Itabira Sustentável, parceria entre a Vale e a Prefeitura, que ainda permanece, em sua quase totalidade, no campo das boas intenções.
Gratuidade no ensino público não é redundância, é compromisso constitucional
A universidade pública não pode se furtar ao seu papel transformador. E ao afirmar que ela deve ser gratuita, não se trata de pleonasmo, como já foi sugerido por críticos mal informados. Em diversos países, inclusive na América Latina, há universidades públicas que não são inteiramente gratuitas.
No Chile, por exemplo, instituições como a Universidad de Chile — pública e tradicional — cobram mensalidades dos estudantes. O modelo chileno combina financiamento estatal com cobrança direta, e por lá, universidades federais podem exigir pagamento, dependendo da renda familiar do aluno.
Outros países da região também adotam modelos híbridos. Na Colômbia e no Peru, há universidades públicas com cobrança parcial ou integral de mensalidades, especialmente em cursos de alta demanda. Mesmo na Argentina, onde a gratuidade é mais ampla, há restrições para estrangeiros e programas pagos em instituições públicas.
No Brasil, a gratuidade nas universidades federais é uma conquista histórica, assegurada pela Constituição Federal de 1988. O artigo 206 estabelece como princípio do ensino público a “gratuidade nas instituições oficiais”.
Ainda assim, essa garantia precisa ser reafirmada diante de propostas que sugerem cobrança por cursos de pós-graduação, serviços complementares ou mesmo mensalidades em programas específicos.
A defesa da universidade pública e gratuita é, portanto, uma posição política — e não uma redundância. No Brasil, esse modelo semi-privatista enfrenta firme oposição da União Nacional dos Estudantes (UNE), que considera que, por ser pública, a universidade deve ser gratuita.
Essa posição, embora coerente com a tradição brasileira, é frequentemente criticada por setores neoliberais que apontam a necessidade de considerar as diferenças de classe social e a possibilidade de modelos híbridos, com cobrança proporcional à renda ou contribuição voluntária.
O debate não pode ignorar que a gratuidade irrestrita é, no contexto brasileiro, uma ferramenta de democratização do acesso ao ensino superior. Em um país marcado por desigualdades profundas, cobrar dos que podem pagar pode parecer justo — mas corre-se o risco de abrir brechas para a mercantilização do ensino público e a exclusão dos mais vulneráveis.
Itabira, que vive o desafio de planejar o pós-mineração, precisa de todas as áreas do conhecimento para construir um futuro sustentável, diverso e justo. E a universidade pública, gratuita e de qualidade — com faculdades em todas as áreas do saber — tem papel essencial nesse processo, como agente de formação, produção de conhecimento e democratização das oportunidades. Que assim, seja! Amém, como diria o professor Arp Procópio, de saudosa memória.