Municípios minerados passam a contar com nova ferramenta da ANM para fiscalizar os royalties do minério

Foto: Carlos Cruz

Plataforma Minera Brasil é apresentada em Belo Horizonte e promete ampliar o controle sobre a arrecadação da Cfem, ainda marcada por sonegação bilionária e falta de transparência

Durante o VI Encontro Nacional dos Municípios Mineradores, realizado nos dias 20 e 21 de agosto no auditório do Tribunal de Contas da União, em Belo Horizonte, prefeitos e representantes de mais de 300 cidades impactadas pela atividade mineral foram apresentados à nova plataforma Minera Brasil.

Desenvolvida pela Agência Nacional de Mineração (ANM) em parceria com o Serpro, o sistema ainda está em fase de implementação, mas foi anunciado como uma virada na forma como os municípios poderão acompanhar e fiscalizar a arrecadação da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem), quem sabe, até mesmo pondo fim à sonegação.

Isso porque a ferramenta permitirá o cruzamento entre as autodeclarações das mineradoras e as notas fiscais registradas na Receita Federal, algo que até então era inacessível à ANM.

A agência reguladora da atividade minerária no país conta com estrutura precária. São apenas três fiscais para mais de 39 mil processos minerários. Com a nova ferramenta, poderá enfim automatizar a verificação dos dados declarados pelas empresas.

Os municípios minerados, por sua vez, terão acesso a informações em tempo real sobre produção mineral, valores pagos de Cfem, lavras ativas, pesquisas em curso, além das condições de estabilidade de barragens.

Sonegação bilionária e falta de controle

A urgência da medida se justifica pelos números alarmantes da sonegação dessa compensação financeira revelados por auditorias do Tribunal de Contas da União (TCU) e da Controladoria-Geral da União (CGU).

Entre 2017 e 2022, cerca de 70% dos titulares de direitos minerários não pagaram espontaneamente a Cfem. A evasão fiscal no setor mineral é estimada em mais de R$ 12 bilhões, com perdas adicionais por prescrição de créditos que podem ultrapassar R$ 20 bilhões.

A Vale S.A., maior mineradora do país, é apontada como a principal devedora da Cfem. Segundo dados da Amig Brasil e do Tribunal de Contas da União (TCU), a empresa acumula passivos superiores a R$ 4 bilhões em Cfem não pagos.

Em Parauapebas (PA), onde opera parte da Estrada de Ferro Carajás, a mineradora deveria ter repassado cerca de R$ 360 milhões ao município, mas os valores foram subnotificados ou simplesmente omitidos.

Em Itabira (MG), cidade histórica da mineração onde a Vale iniciou suas atividades em 1942, a situação é igualmente preocupante. O complexo minerador local é responsável pela produção de pellet-feed, matéria-prima essencial para a pelotização.

Estima-se que a empresa tenha deixado de recolher aproximadamente R$ 40 milhões em Cfem entre 1996 e 2005, valor que deveria incidir sobre o faturamento líquido da comercialização do pellet-feed produzido no complexo.

Além disso, oscilações abruptas nos repasses mensais, como a queda de 64% registrada em abril de 2020, levantam suspeitas sobre a veracidade dos valores declarados, segundo a Amig Brasil.

Novo marco regulatório da mineração
A Amig Brasil propõe aumentar a alíquota da Cfem de 3,5% para 6,74%, o que pode dobrar a arrecadação anual dos municípios minerados (Foto: Eduardo Cruz/acervo O Cometa)

Esses dados reforçam a urgência de um novo marco regulatório e do protagonismo dos municípios minerados na fiscalização e na transparência da apuração dos royalties.

Para isso, além da plataforma, o encontro dos municípios minerados apresentou o esboço de um Marco Regulatório Municipal da Mineração, que propõe leis urbanas, ambientais e tributárias para que os municípios possam acompanhar e regular a atividade minerária em seus territórios.

A Amig Brasil defende que os municípios deixem de ser apenas “territórios minerados” e passem a exercer protagonismo na gestão dos recursos minerais.

A implementação de taxas municipais sobre a atividade mineradora foi debatida no encontro nacional como alternativa para compensar os impactos socioambientais e fortalecer a autonomia financeira das cidades mineradas.

Em Mariana, por exemplo, já é aplicada uma cobrança proporcional sobre investimentos de grande porte, referente à apreciação e votação da anuência para o licenciamento ambiental de novos empreendimentos.

A Amig Brasil propõe ainda o aumento da alíquota da Cfem de 3,5% para 6,74%, o que poderia dobrar a arrecadação anual.

A proposta surge em meio à reforma tributária, que pode reduzir em até 20% os repasses aos municípios minerados, segundo estudo da UFMG e da Fundação IPEAD. E faz parte da campanha da entidade na luta por justiça fiscal.

Segundo a Amig, esse reajuste pode dobrar a arrecadação anual dos municípios minerados, fortalecendo sua autonomia financeira e capacidade de investimento em áreas como saúde, educação e infraestrutura urbana, além da necessária e urgente diversificação econômica, como é o caso de Itabira, que está atrasada nesse processo.

Itabira e a dívida histórica da mineração
Por três décadas após a sua criação, a Vale não pagou um centavo de imposto ao município de Itabira. E mesmo quando começou a pagar, por meio do IUM), criado em 1969, destinava-se apenas 20% da arrecadação aos municípios, enquanto os estados ficavam com 70% e a União com 10% (Foto: Eduardo Cruz/Acervo O Cometa)

A história da mineração em Itabira, onde a Vale iniciou suas atividades em 1942, deve ser sempre lembrada como símbolo da espoliação institucionalizada, ou para usar uma linguagem mais modernosa, um case de insucesso da mineração para os territórios minerados.

Por quase três décadas, a então estatal Companhia Vale do Rio Doce não pagou um centavo de imposto ao município. E mesmo quando começou a pagar, por meio do Imposto Único sobre Minerais (IUM), criado em 1969, destinava-se apenas 20% da arrecadação aos municípios, enquanto os estados ficavam com 70% e a União com 10%.

Mesmo após a criação da Cfem, os municípios minerados continuam enfrentando perdas significativas, agravadas pela Lei Kandir, que isenta de ICMS os produtos destinados à exportação.

No caso do minério de ferro, cerca de 83% da produção nacional é exportada, o que significa que a maior parte da riqueza gerada não contribui com os cofres municipais. “Não é mais possível que os municípios minerados continuem a pagar a conta enquanto a riqueza gerada aqui é enviada para fora sem contrapartida”, afirmou Marco Antônio Lage (PSB), prefeito de Itabira e presidente da Amig Brasil.

É perfeitamente plausível afirmar que quase toda a hematita extraída do lendário pico do Cauê foi exportada sem que praticamente nada tenha sido pago em tributos ao município de Itabira.

Tecnologia, transparência e justiça fiscal

A plataforma Minera Brasil foi apresentada no encontro nacional de municípios minerados como uma resposta concreta à falta de transparência e à fragilidade institucional da ANM.

Segundo o diretor-geral da agência, Mauro Sousa, trata-se de uma “transformação histórica” que permitirá ao Estado enxergar, em tempo real, o caminho do minério, da origem ao destino final.

“O módulo DIEF/CFEM, já em fase de testes, permitirá o cruzamento automático entre as declarações das mineradoras e as notas fiscais eletrônicas”, explicou.

Para os municípios, a expectativa é de que a ferramenta traga previsibilidade orçamentária, segurança jurídica e capacidade de planejamento. “Quando a prefeitura passa a ter essas informações, no mínimo, ela tem condição de planejar melhor as suas questões orçamentárias e financeiras”, afirmou o consultor da Amig Brasil, Waldir Salvador.

É assim que a insurgência dos municípios minerados representa uma tentativa de romper com décadas de invisibilidade e subordinação aos interesses do Estado, da União e das grandes empresas mineradoras.

Ao assumirem o protagonismo na regulamentação e fiscalização da atividade minerária, esses municípios buscam garantir justiça tributária, compensações adequadas e autonomia para planejar seu futuro pós-mineração.

A plataforma Minera Brasil ainda está em fase inicial, mas já acende uma luz sobre o caminho possível: mineração com controle público, transparência e respeito aos territórios que sustentam a riqueza nacional e suprem as grandes siderúrgicas do Brasil e do mundo.

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