Na calada da noite, Câmara dos Deputados aprova PL da Devastação; Lula deve vetar

No destaque, cachoeira do Viana, no Parque Nacional da Serra do Gandarela, está sob ameaça com a flexibilização do licenciamento ambiental

Foto: Reprodução/
ICMBio

Aprovado na madrugada, o projeto flexibiliza o licenciamento ambiental, reinclui a mineração nas regras simplificadas e ameaça territórios exauridos como Itabira e Gandarela com o projeto Apolo, da Vale. Lula tem a obrigação de vetar o texto, mesmo que abra novo foco de atrito com o Congresso Nacional

Em uma sessão esvaziada e marcada por manobras regimentais, a Câmara dos Deputados aprovou na madrugada desta quinta-feira (17) o Projeto de Lei 2.159/2021, conhecido como “PL da Devastação”.

A proposta fragiliza o sistema de licenciamento ambiental no Brasil e reacende alertas sobre os impactos da mineração em territórios já exauridos, como Itabira, e ameaçados, como a Serra do Gandarela, até então protegida como unidade de conservação integral, na forma do Parque Nacional da Serra do Gandarela, com o projeto Apolo, da mineradora Vale.

Com 267 votos favoráveis e 116 contrários, o texto foi aprovado às 1h53, no apagar das luzes do semestre legislativo. A votação ocorreu às vésperas do recesso parlamentar e a menos de quatro meses da COP30, conferência do clima da ONU que será realizada em Belém do Pará.

Lobby das mineradoras

O texto aprovado reinclui a mineração de grande porte nas novas regras de licenciamento ambiental, o que havia sido retirado anteriormente pelo relator Zé Vitor (PL-MG), mas que acabou cedendo, voltando atrás frente ao “irresistivel” lobby das mineradoras.

Com isso, empreendimentos minerários passam a ter acesso a modalidades como a Licença por Adesão e Compromisso (LAC) e a Licença Ambiental Especial (LAE), mesmo quando causam significativa degradação ambiental.

A LAC permite que o próprio empreendedor declare os impactos ambientais da atividade, sem necessidade de estudos prévios ou vistoria técnica. Já a LAE autoriza obras consideradas “estratégicas” pelo governo federal serem aprovadas em fase única, com prazo máximo de 12 meses para análise, mesmo em áreas sensíveis como unidades de conservação e territórios indígenas não homologados.

Além disso, o projeto retira o poder de veto de órgãos técnicos como ICMBio, Funai e Iphan, mesmo quando os empreendimentos afetam diretamente áreas protegidas ou patrimônios culturais. A renovação de licenças pode ocorrer automaticamente, por autodeclaração feita pela internet, sem fiscalização prévia.

Licença vencida em Itabira e riscos subterrâneos

Em Itabira, a Vale opera com a licença ambiental do complexo minerador vencida desde 16 de outubro de 2016. O pedido de renovação foi protocolado em março de 2017, mas segue sem conclusão pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad-MG).

Para isso, a mineradora se ampara em prorrogação jurídica prevista no Decreto Estadual nº 47.474/2018, enquanto acumula passivos históricos, como o desmatamento da Serra do Esmeril, ocorrido na década de 1980, sem reparações ou compensações ambientais até hoje, além da poluição do ar, tremores e remoções de moradores em áreas de risco, como é o caso da barragem do Pontal, que impacta diretamente os bairros Bela Vista, Nova Vista e Jardim das Oliveiras.

Com o esgotamento célere e gradual das reservas minerais superficiais em Itabira, a Vale não confirma oficialmente, mas já realiza estudos para explorar um corpo de hematita localizado abaixo dos itabiritos, uma ocorrência rara na geologia, por meio de lavra subterrânea.

Essa nova frente de exploração, caso viabilizada, pode prolongar a vida útil do complexo minerador, mas também traz preocupações adicionais quanto aos impactos cumulativos e à segurança dos moradores em Itabira, mesmo que não avance abaixo da cidade, ficando restrita ao pit atual das minas do Meio e Conceição.

Com a aprovação do novo marco legal do licenciamento ambiental, caso não seja vetado pelo presidente Lula, essas futuras operações podem ser autorizadas por meio de licenças simplificadas, sem consulta pública, sem avaliação técnica rigorosa e com menor controle sobre os riscos socioambientais envolvidos.

Gandarela, o parque que resiste à mineração

Criado em 2014, o Parque Nacional da Serra do Gandarela é uma unidade de conservação de proteção integral, com cerca de 31 mil hectares de Mata Atlântica e Cerrado em transição.

O parque protege aquíferos estratégicos que abastecem a Região Metropolitana de Belo Horizonte, além de abrigar espécies ameaçadas como o lobo-guará e cavernas com alto grau de endemismo.

Apesar de sua importância ecológica e hídrica, o parque já nasceu recortado: áreas de interesse minerário foram excluídas de seus limites para viabilizar o projeto Apolo, da Vale. A zona de amortecimento ainda não foi oficialmente delimitada pelo ICMBio, o que permite que empreendimentos se aproximem perigosamente da área protegida.

Movimentos como o Chico, Salve o Gandarela e o projeto Manuelzão, da UFMG, denunciam que a mineração representa uma ameaça direta à integridade do parque e à segurança hídrica da região.

A recente decisão do TRF6, que manteve a preservação integral do Gandarela, foi considerada uma vitória jurídica importante, mas pode ser esvaziada pela flexibilização do licenciamento.

Territórios minerados e comunidades tradicionais sob risco

O PL também enfraquece a proteção de 259 Terras Indígenas e 1.553 Territórios Quilombolas em processo de demarcação. A consulta prévia passa a ser exigida apenas em áreas tituladas, ignorando a realidade da maioria dessas comunidades.

Isso abre caminho para que empreendimentos minerários avancem sobre territórios tradicionais sem diálogo ou salvaguardas.

Segundo o Observatório do Clima, o projeto representa uma “licença para destruir e desinformar”, ao permitir que empresas escapem da análise técnica e da responsabilização por danos ambientais. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) alerta que o PL é o maior ataque aos direitos dos atingidos em quatro décadas.

Da mesma forma, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em manifesto assinado por mais de 160 instituições científicas, reforça essa leitura ao classificar o PL 2.159/2021 como “o mais grave retrocesso ao sistema de proteção ambiental do país”.

O documento denuncia que o projeto ignora solenemente a emergência climática global e ameaça diretamente quatro dos principais biomas brasileiros (Amazônia, Cerrado, Pantanal e Caatinga), todos já próximos dos chamados pontos de não retorno ecológico.

A SBPC alerta que o avanço irrestrito sobre esses ecossistemas pode comprometer serviços ambientais vitais, como regulação climática, segurança hídrica e conservação da biodiversidade, além de ferir compromissos internacionais firmados pelo Brasil, como o Acordo de Paris e o Marco Global da Biodiversidade.

Considera também que o projeto afronta o artigo 225 da Constituição Federal, ao desmontar ferramentas de controle técnico e participação social, ao instituir modalidades de licenciamento que funcionam como um salvo-conduto político para empreendimentos de grande impacto.

Lula tem a obrigação de vetar e pressão cresce sobre o Planalto

A expectativa agora recai sobre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tem a prerrogativa de vetar total ou parcialmente o projeto.

A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, classificou o texto como “altamente prejudicial aos interesses ambientais, da saúde pública e da economia do país”. O Ibama já sinalizou que pode contestar a medida na Justiça por inconstitucionalidade.

O líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (PT-RJ), afirmou que “Lula com certeza vai vetar esse PL da Devastação” e que o governo não recorrerá ao STF, mas exercerá sua prerrogativa presidencial.

Um eventual veto presidencial, no entanto, pode abrir um novo foco de atrito com o Congresso Nacional, que já acumula tensões com o Executivo em diversas frentes.

Ainda assim, é o preço inevitável que se paga em um ambiente político hostil, dominado pelos interesses do grande capital em detrimento das demandas da sociedade por avanços nas conquistas ambientais.

Em vez de consolidar direitos e fortalecer a proteção dos ecossistemas, o PL da Devastação representa um passo atrás, institucionalizando retrocessos que colocam em risco o futuro climático, social e democrático do país.

A poesia de Drummond como forma de resistência

Durante a sessão anterior na Câmara dos Deputados, a deputada Duda Salabert (PDT-MG) recitou o poema O Maior Trem do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade, como forma de obstrução simbólica.

Publicado originalmente em 1984 no jornal O Cometa Itabirano, o poema denuncia a voracidade da mineração que leva embora as riquezas de Minas sem retorno.

“Leva meu tempo, minha infância, minha vida”, declamou Duda, evocando o poema que descreve o trem que serpenteia as montanhas de Itabira, carregando minério e deixando para trás paisagens devastadas e comunidades ameaçadas por barragens de rejeitos e pilhas de estéril.

A parlamentar também protocolou mais de 100 requerimentos para tentar barrar a votação – e que foi chamada por colegas de bancada de “a obstrução mais poética da história do Poder Legislativo”. Em vão até aqui, mas fica o grito de alerta.

Assista à leitura do poema O maior trem do mundo, de Drummond, na página oficial da deputada no Instagram: @dudasalabert

Fontes consultadas: portal Observatório do Clima, SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Vila de Utopia, projeto Manuelzão – UFMG, Ministério do Meio Ambiente (MMA), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Globo e Folha de S.Paulo.

 

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