Sobre os 95 anos de Alguma Poesia, do gauche de Itabira, em 2010

Arte de Lívia Magalhães com imagem de Reprodução: Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade, Itabira

“Queremos apenas a metade do que fomos.”

Por Dionísio da Silva (doutor em letras pela USP)

Jornal do Brasil (RJ), 23/3/2010 – Entre as efemérides deste 2010, teremos os 80 anos de Alguma Poesia, livro de estreia de Carlos Drummond de Andrade. Ele não pertenceu à Academia Brasileira de Letras, mas é um dos nossos maiores poetas de todos os tempos.

Provavelmente só não ganhou o Prêmio Nobel porque escreveu em português, um dialeto na Galáxia Gutenberg. No entanto, a primeira edição foi de apenas 500 exemplares, custeada pelo autor.

Reprodução: Acervo da Hemeroteca BN-Rio

Abre o livro o Poema de Sete Faces, cujos versos iniciais dizem: “Quando eu nasci um anjo torto/desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Quando escreveu esses versos, Drummond estava com 28 anos, formara-se em farmácia porque seus pais, fazendeiros decadentes, tinham exigido isso dele. Mas jamais exerceu a profissão.

Por que Drummond sentiu-se gauche na vida? Nascido em Itabira (MG), em 1902, escreveu seus primeiros textos entre fins da década de 20 e começo da de 30.

Na época, em vez do inglês, era o francês que aparecia com frequência na língua portuguesa, por um desses dois motivos: a pessoa não encontrava a palavra adequada para designar ou expressar certas realidades ou então queria mostrar que pertencia a uma classe social mais elevada, que sabia francês, vestia-se à moda francesa, conhecia pratos franceses, e importava, não apenas perfumes, roupas e cosméticos franceses, mas também revistas e livros franceses.

Reprodução: Acervo da Hemeroteca BN-Rio

E também o pão francês, que ainda hoje tem esse nome. Até fins do século 19, o pão mais comum no Brasil tinha miolo e casca escuros. Os viajantes de famílias ricas iam a Paris e na volta pediam a seus cozinheiros que fizessem um pão com miolo branco e casca dourada, como eles tinham visto e comido na França. Aqui a receita mudou um pouco, acrescida de açúcar e gordura na massa.

O que se deu com o francês antigamente agora ocorre com o inglês. Você vai a um evento, e as pessoas que o organizam chamam intervalo para o café de coffe break. Coffe para café? E break para pausa, intervalo? Break quer dizer quebrar, interromper, em inglês; o étimo é o mesmo do antigo breque dos carros, que já foi trocado por freio.

O francês gauche tinha substituído senestre, esquerda, palavra que tinha vindo do latim sinistra. O processo levou também a substituir destre, do latim dexter, por droit. Ainda hoje o francês, designa por droit/gauche por direito/esquerdo.

Reprodução: Acervo da Hemeroteca BN-Rio

É famosa a margem esquerda, rive gauche, do Sena, rio que atravessa Paris. O étimo latino permaneceu no sentido de esquerdo como indesejado, torto, errado, de que é exemplo a palavra “sinistro”, tão presente em apólice de seguro, designando desastre, incêndio, naufrágio etc. Que injustiça para com os canhotos!

Drummond sentiu-se gauche, isto é, desajeitado, esquerdo, também porque era tímido, amava os pais a ponto de não discordar deles. Por isso, fez o curso que não queria.

O poeta deixou de ser gauche. E é mais do que hora de repetir a sua Prece de Mineiro no Rio; “Espírito de Minas, me visita,/ e sobre a confusão desta cidade,/ onde voz e buzina se confundem,/ lança teu claro raio ordenador./ Conserva em mim ao menos a metade/ do que fui de nascença e a vida esgarça”.

Nos dois casos, ele falou por muitos de nós, mineiros ou não.

[Jornal do Brasil (RJ), 23/3/2010. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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