O enigma

Eureka Blindhotland (1970-1975), Cildo Meireles

Foto: Carol Mendonça/
Divulgação

Carlos Drummond de Andrade

As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho. Elas se interrogam, e à sua experiência mais particular. Conheciam outras formas de ambulantes, e o perigo de cada objeto em circulação na terra. Aquele, todavia, em nada se assemelha às imagens trituradas pela experiência, prisioneiras do hábito ou domadas pelo instinto imemorial das pedras.

As pedras detêm-se. No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de todo.  E na contenção desse instante, fixam-se as pedras – para sempre – no chão, compondo montanhas colossais, ou simples e perplexos e pobres seixos desgarrados.

Mas a coisa sombria – desmesurada, por sua vez – aí está, à maneira dos enigmas, que zombam da tentativa de interpretação. É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios. Carecem de argúcia alheia, que os liberte de sua confusão amaldiçoada. E repelem-na ao mesmo tempo, tal é a condição dos enigmas.

Esse travou o avanço das pedras, rebanho desprevenido, e amanhã fixará por igual as árvores, até que chegue o dia dos ventos, e os dos pássaros, e o do ar pululante de insetos e vibrações, e o de toda a vida, e o da mesma capacidade universal de se corresponder e se completar, que sobrevive à consciência. O enigma tende a paralisar o mundo.

Wazzan Sa, da Arábia Saudita (Reprodução)

Talvez que a enorme Coisa sofra na intimidade de suas fibras, mas não se compadece de si nem daqueles que reduz a congelada expectação.

Ai! De que serve a inteligência – lastimam-se as pedras. Nós éramos inteligentes, e contudo, pensar a ameaça não é removê-las; é criá-la.

Ai! De que serve a sensibilidade – choram as pedras. Nós éramos sensíveis, e o dom da misericórdia se volta contra nós, quando contávamos aplicá-lo a espécies menos favorecidas.

Anoiteceu, e o luar, modulado de dolentes canções que preexistem aos instrumentos de música, espalha no côncavo já pleno de serras abruptas e de ignoradas jazidas melancólica moleza.

Mas a Coisa interceptante não se resolve. Ela barra o caminho, e medita, obscura.

[Diário Carioca (RJ) 5/11/1950. Hemeroteca BN-Rio – Pesquisa: Cristina Silveira]

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