Livro relata esquema de corrupção envolvendo militares de alta patente
Fotos: Rafael Lima
Escrito pelo coronel da reserva Rubens Pierrotti Jr., “Diários da Caserna” narra a história do desenvolvimento de um inovador simulador de apoio de fogo de artilharia (Smart) para o Exército Brasileiro, que se revelou um processo repleto de vícios e desmandos. O autor desnuda a inépcia de diversos oficiais de alta patente, deixando claro como pode ser perigoso para os destinos de um país quando a política entra no quartel
Nos últimos anos, as Forças Armadas do Brasil retomaram um protagonismo na política nacional que não possuíam desde o fim da Ditadura Militar. Com a eleição para a presidência de Jair Bolsonaro, diversos membros da instituição ocuparam cargos de destaque no governo.
Quatro anos mais tarde, diante da iminente saída do ex-capitão do exercício do mais alto cargo político do país, segurando-se na última ponta de esperança de se perpetuarem no poder, tiveram papel importantíssimo para os eventos que culminaram nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.
É na esteira desses acontecimentos que ganha elevada importância o livro Diários da Caserna – Dossiê Smart – A história que o Exército quer riscar, publicado, em abril, pela Editora Labrador.
Escrita pelo coronel de artilharia da reserva e advogado Rubens Pierrotti Jr., a obra relata os meandros de um grande esquema de corrupção e de outros crimes envolvendo oficiais de alta patente do Exército Brasileiro, na busca para construir um inovador simulador de apoio de fogo de artilharia denominado Smart.
O livro é baseado em história real, considerando a vivência do autor durante décadas nas Forças Armadas e tem os pés bem fincados na realidade.
Ao longo de oito capítulos e mais de 500 páginas, o leitor acompanha as relações escusas dos generais Aureliano e Simão com Papa Velasco, representante comercial da Lokitec, empresa espanhola de engenharia contratada pelo Exército Brasileiro para o desenvolvimento do simulador Smart, em um processo de licitação fraudulento. Assim como os mandos e desmandos dos oficiais de alta patente para passar por cima das regras instituídas para dar lisura ao projeto.
Tudo isso tendo como linha mestra uma série de entrevistas da equipe de jornalismo investigativo do periódico espanhol El País, que conseguiu entrevistar uma das principais testemunhas de um grande esquema de corrupção no Exército, dentro do Projeto Smart, baseado em dossiê vazado pela BrasilLeaks (plataforma online de denúncias anônimas).
O depoimento do coronel Battaglia, protagonista da trama, é fundamental, tanto para o jornal quanto para o desenvolvimento da história, pois ele é testemunha ocular dos erros e desmandos cometidos pelos generais.
Tendo trabalhado durante anos como supervisor operacional do projeto, Battaglia foi voz de resistência, apontando as inúmeras falhas cometidas no processo e se recusando a aprovar o simulador (repleto de defeitos e não conformidades) mesmo sofrendo pressões e ameaças para fazê-lo.
Uma espécie de herói quixotesco, Battaglia luta contra moinhos gigantes, que no livro não são ameaças imaginárias, mas bem reais, representadas pela máquina “viciada” do Exército. O protagonista está ciente, porém, de que suas batalhas podem ser em vão, já que a força do inimigo é desproporcional.
Nesse sentido deve ser compreendida a frase de Dostoiévski, do livro Crime e Castigo, citada pelo autor logo no início da obra: “certas pessoas (…) têm o pleno direito de cometer toda sorte de desmandos e crimes, como se a lei não houvesse sido escrita para elas”.
A luta do protagonista Battaglia e de outras personagens, como Aristóteles, que reprovam o simulador é justamente esta: fazer com que a lei se aplique a todos, independentemente das estrelas que carregam em seus uniformes.
Mas, como dito, a oposição é demasiada forte e, no livro, está bem representada pelos generais Aureliano e Simão, que, em diferentes ocasiões, gerenciam o projeto de desenvolvimento do simulador de apoio de fogo de artilharia. O primeiro, além de gerente, é responsável por idealizar o projeto, tudo leva a crer, como forma de pagar um favor especial realizado por seu amigo de maçonaria Papa Velasco.
O segundo, cuja descrição física lembra proeminente figura militar e política de tempos recentes, entre jantares e viagens patrocinadas pela Lokitec, esquece-se de que está no projeto para defender o Exército e logo se torna um porta-voz dos interesses da empresa espanhola de engenharia. E o pior: ignorando os avisos, o general Simão passa por cima de todas as normas e faz com que a Lokitec receba pagamento integral, sem mesmo ter entregado itens básicos do contrato.
Em certo momento da trama, vemos recrudescer o conflito entre Simão e Battaglia. Sem se furtar a seus deveres e sem baixar a cabeça para o general, o protagonista torna-se alvo preferido do gerente do projeto, que faz de tudo para difamá-lo, buscando forçá-lo a se retirar do Exército.
A participação no Projeto Smart e o assédio moral praticado por Simão e por outros oficiais para que fosse aprovado um simulador capenga cobram o preço na vida pessoal de Battaglia, que vê seu casamento naufragar e sua saúde mental se deteriorar.
Ao mesmo tempo que Battaglia tenta retomar sua vida, ao lado da nova namorada Angélica, ele trava contato com as notícias mais recentes a respeito do andamento do Projeto Smart. Constata que, a despeito dos diversos avisos que ele e alguns de seus colegas deram, os defeitos no simulador e os vícios do projeto permanecem.
O que não impede que o Exército dê o projeto como terminado de forma bem-sucedida. Mas o que se sabe, deixa claro o protagonista da trama, é que uma tecnologia que foi desenvolvida para ser o estado da arte em simuladores de apoio de fogo de artilharia encontra-se defasada mesmo antes de começar a funcionar corretamente.
As provas do Dossiê Smart e o depoimento de Battaglia não são suficientes para que qualquer um dos envolvidos no projeto, independentemente dos fortes indícios de prevaricação, corrupção e improbidades administrativas, serem punidos.
A vida pessoal do protagonista lentamente entra nos eixos. Já na reserva, ele se recompõe como advogado e, para curar os traumas que o episódio causou, decide escrever um livro relatando tudo que sabe. Certa vez, conversando com sua terapeuta, diz: “Vou escrever a história do Smart. Acho que o povo brasileiro tem o direito de saber”.
Indagado pela psicóloga se não tem medo das revelações causarem mal-estar entre aqueles que desejam que a história fique escondida, responde: “Vou fazer o que o Rodrigo Pimentel fez no livro Elite da Tropa. Ele contou exatamente o que se passou, mas escreveu como ficção, não como memória ou biografia. Trocou nomes, lugares”.
No livro, vida real e imaginação colidem. E o autor deixa escapar que o drama ficcional tem mesmo ares de biografia e, por que não dizer, de denúncia.
Algo que se torna mais evidente quando personagens da trama, alguns dos oficiais que tiveram seu quinhão de responsabilidade no fiasco do Projeto Smart, assumiram cargos de confiança no recém-empossado governo de um certo ex-capitão do Exército. Destaque para general Simão, que se torna vice-presidente da República.
Envolvente história de um esquema de corrupção que coloca em xeque a idoneidade de parcela dos oficiais de alta patente do Exército Brasileiro, Diários da Caserna – Dossiê Smart – A história que o Exército quer riscar, também se notabiliza por fornecer um retrato fidedigno das engrenagens do Exército e de como podem ser promíscuas suas relações.
Dialoga com o momento atual da política brasileira, mostrando que a propalada incorruptibilidade das Forças Armadas não passa de um mito. Além disso, sem papas na língua, desnuda a inépcia de diversos oficiais de alta patente, deixando claro como pode ser perigoso para os destinos de um país quando a política entra no quartel.
Ficha técnica
Título: Diários da Caserna – Dossiê Smart – A história que o Exército quer riscar
Autor: Rubens Pierrotti Jr.
Formato: 16 x 25 x 23 cm
Páginas: 528
Preço de capa: R$ 69,90
Preço e-book: R$ 49,90
Editora: Labrador
Gênero: ficção brasileira
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