A falta que faz a Itabira: 35 anos sem Carlos Drummond de Andrade
Drummond em seu escritório, no Rio
Foto: Acervo BN
Carlos Cruz
Para Itabira, esta quarta-feira (17) deveria ser um dia para não esquecer de lembrar de uma perda incomparável, a morte do poeta Carlos Drummond de Andrade, há 35 anos, aos 84 anos de lucidez e poesia.
É bem possível que a data passe quase despercebida, embora o produtor cultural da Flitabira, jornalista Afonso Borges tenha convidado os párocos das catedrais do país, liderados pelo arcebispo de Belo Horizonte, dom Walmor Oliveira de Azevedo, para que nesta data durante o Ângelus, às 18h, dobrem os sinos louvando a poesia brasileira, em “memória deste que é o nosso Poeta Maior, Carlos Drummond de Andrade”. Se será atendido, a conferir.
Saiba mais aqui:
Nos 35 anos de morte de CDA, os sinos dobram pela poesia em Itabira, em Minas Gerais, no Brasil
Mas Itabira poderia fazer mais, como fez ao lembrar os dois anos de sua morte, ocorrida 12 dias depois do falecimento de sua única filha, Maria Julieta Drummond de Andrade. Para o sensível coração do poeta foi um golpe mortal. “Drummond morreu de amor”, declarou a médica cardiologista e geriatra Elizabeth de Freitas, que cuidou dele nos seus últimos dias de vida.
Em 17 de agosto de 1989 Itabira plantou uma árvore em sua memória, lembrando o percursor ecológico e a sua luta pelos direitos de sua cidade natal frente a devastadora mineração, em inúmeras crônicas no Correio da Manhã, depois no Jornal do Brasil. E também no jornal O Cometa Itabirano.
Mesmo com tudo isso, o filho mais ilustre de Itabira, durante quase toda a sua vida, não foi muito querido em sua terra natal. Só passou a ser respeitado principalmente depois que o jornal O Cometa divulgou a sua obra e o seu compromisso político com a terra natal.
Nas páginas do jornal, o poeta retornou a Itabira, reconciliando a cidade com o seu filho mais ilustre que nunca a esqueceu.
Letargia itabirana
Passados 35 anos de sua morte, muitas das questões que o poeta levantava em relação à mineração continuam pendentes de solução, mesmo porque a letargia itabirana que tanto o divertiu, e advertiu, continua a mesma de sempre, enquanto as pendências históricas permanecem imutáveis, sem solução à vista.
“Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma a derrota incomparável.”
“Itabira, onde estão tuas trinta fábricas de ferro do tempo do barão de Eschwege, com seus cadinhos dotados de trompas e martelos hidráulicos, os seus fornos e as suas oficinas de armeiro, que antecederam e suplantaram em eficiência a real fábrica do Morro do Pilar?”
“A cidade parece encantada. E de fato o é. Acordará algum dia? Os itabiranos afirmam peremptoriamente que sim. Enquanto isso, cruzam os braços e deixam a vida passar. A vida passa devagar em Itabira do Mato Dentro.”
Foi certamente cansado dessa letargia itabirana que o poeta escreveu, em uma de suas cartas enviadas ao O Cometa, em agosto de 1984, que não mais acreditava nas palavras dos homens públicos, tantas eram as promessas, cartas-de-intenções com projetos de salvação municipal jamais efetivadas, como uma longa história que ano após ano se repete como farsa.
Chove ouro em Itabira
Se o poeta fosse vivo certamente estaria cobrando dos governos e da poderosa Vale mais atenção para com a sua cidade natal.
Por exemplo, certamente ele ia querer saber se ainda existe ouro nas minas de Itabira, e também na grota do Minervino, depois de ser informado que a Agência Nacional de Mineração (ANM) pediu informações a respeito de ainda existir essa ocorrência, no processo de aprovação do novo plano econômico para as minas. E que já deve ter sido aprovado sem que Itabira tomasse conhecimento de seu conteúdo.
Se nesse caso a Vale respondesse, como fez no início da década de 1980, que o ouro faiscado por alguns moradores improvisados de garimpeiros na grota do Minervino, no Pontal, e também o existente em suas minas, era insignificante, como certamente deve ter respondido agora à agência reguladora, o sagaz cronista muito provavelmente voltaria a propor, como fez em 22 de outubro de 1982, em sua coluna no Jornal do Brasil, na crônica Chove ouro em Itabira, que deixasse tudo para os garimpeiros, a maioria gente sofrida de sua terra natal.
Em tom de atendimento à reivindicação, na crônica Drummond ironizou, como se fosse a Vale falando num lampejo de generosidade com a cidade onde nasceu:
“- Em rala compensação pelo que tiramos do município, em 41 anos de sucção da sua riqueza, vamos ajudar os garimpeiros! Vamos dar-lhes assistência sanitária e um servicinho de prevenção de acidentes, e facilitar-lhes a sindicalização!”
“A egrégia Câmara Municipal, comovida com esse rasgo de generosidade, baterá palmas:
– Bravos! Muito bem! Até que enfim, ilustre Companhia, a senhora se lembrou de dar alguma coisa, em vez de tirar da gente!”
Na crônica, Drummond que nunca se esqueceu de lembrar de sua terra natal, contou aos seus leitores de todo o país como foi que apareceu o ouro na grota do Minervino.
“Para os pobres, tudo que é bom cai do céu; o resto fica por conta da falta de sorte, ou do Diabo. Na verdade, o ouro de Itabira não baixou das nuvens; simplesmente vem incrustado no rejeito de ferro explorado por uma grande estatal, a Companhia Vale do Rio Doce.”
E prosseguiu o cronista itabirano:
“A empresa sabia do ouro e estudara a fundo a possibilidade de explorá-lo economicamente. Concluiu que não era rentável, e deixou-o rolar serra abaixo, depois de montar uma usina destinada a elevar o teor ferrífero do itabirito, última reserva de minério a substituir a hematita exaurida.”
E, como Antônio Alves de Araújo, o cismado Tutu Caramujo, ex-presidente da Câmara e prefeito de Itabira (1869/72), que já cismava com a “derrota incomparável”, Drummond viu a Vale se preparando para deixar a cidade onde nasceu e cresceu para se tornar uma das maiores mineradoras do mundo.
“E manda-se progressivamente para Carajás, legando a Itabira o espetacular vazio de sua paisagem e umas migalhas de ouro (cerca de 50 miligramas por tonelada de rejeito). Já não é grande empregadora, e sim empresa cautelosa que se retira em busca de paragens mais rendosas.”
Como certamente a Vale voltou a negar que existe a viabilidade de explorar o ouro que certamente se encontra em miligramas incrustado nos itabiritos, inclusive no rejeito do Minervino, Drummond certamente voltaria a propor, acreditando ironicamente no rasgo de generosidade da ex-Companhia Vale do Rio Doce.
“A Vale do Rio Doce é próspera e pode se dar ao luxo de deixar à gente humilde de Itabira aquilo que não lhe interessa”, propôs Drummond nas páginas do JB. “Chove ouro no Pontal. Chuvinha fina, mal dá para molhar, mas consola muita gente. Deus a conserve, e se não implicarem com ela, tanto melhor.”
O problema foi que implicou. A Vale não permitiu que o garimpo fosse organizado na forma de cooperativa, servindo como uma frente de trabalho a ocupar quem não tinha perspectivas de emprego, como milhares de trabalhadores que ainda hoje estão nessa situação em Itabira e no país.
Na mesma ocasião, por exemplo, em Vitória, no Espírito Santo, foi organizada uma frente de trabalho para voltar com o minério que caia fora dos vagões para ser embarcado nos navios. Para Itabira a proposta de Drummond foi de um garimpo organizado, mas a ideia não prosperou para os garimpeiros.
Só para a Vale. O ouro que era desprezível passou a ser explorado industrialmente por muitos anos, com Itabira chegando a produzir 700 quilos anualmente do precioso metal.
Se o ouro é ainda recurso mineral viável em Itabira, não se sabe. A Vale não diz, só informou à ANM.
Leia mais aqui:
Ainda pode chover ouro no Pontal? A Agência Nacional de Mineração quer saber. E Itabira também
Aqui:
E mais aqui:
Garimpo, do ferro ao ouro em Itabira
Pendências históricas
Ainda em relação aos questionamentos da ANM encaminhados à Vale antes de aprovar o novo plano econômico para exploração das minas de Itabira, a agência quis saber se haverá necessidade de remover moradores para a expansão do “pit” da mina.
Se vivo fosse, Drummond certamente cobraria uma resposta – e que ainda não foi dada a Itabira. Se prefeito e vereadores sabem a resposta, boquifecharam-se até aqui.
Outro tema que o cronista itabirano certamente hoje estaria repercutindo nacionalmente em suas crônicas é a histórica injustiça tributária contra Itabira. Atualmente, as cidades mineradas perdem com a isenção de ICMS às exportações pela Lei Kandir.
Por essa lei, tudo que é exportado não precisa pagar esse imposto de circulação de mercadoria. É para incentivar as exportações, dizem. Sem pagar ICMS, a mineração faz cair o bolo tributário distribuído entre os municípios mineiros e de outros estados minerados – todos perdem, mesmo os que não são minerados, pois diminui a arrecadação geral dos estados com o imposto.
Drummond certamente compraria a briga pelo fim da Lei Kandir. Em defesa de Itabira, cobraria compensações, as mesmas que historicamente nunca chegam à Cidadezinha Qualquer, como muitos ainda a tratam como se fosse apenas a mina.
Desde 1942, o poeta itabirano foi quem deu repercussão nacional aos conflitos permanentes de sua cidade natal com a então Companhia Vale do Rio Doce. E fez severas críticas ao sistema tributário injusto que contempla com migalhas o município.
Em sua crônica Só isso, publicada no dia 3 de outubro de 1964 no Jornal do Brasil, Drummond pede licença “para fugir por alguns minutos à linha aérea e desinteressada destes escritos e tratar do assunto que compete aos doutos em lei e em economia.”
E prossegue: “Por trás dele, azula uma paisagem de serra, a que estou emocionalmente ligado e este é o ponto de contato entre o colunista e a matéria técnica”.
Na crônica, Drummond fala do projeto de criação do Imposto Único sobre Minerais (IUM), mas que se apresenta com uma distribuição extremamente injusta para os municípios minerados.
“O produto da arrecadação desse imposto será distribuído entre a União, os Estados e os Municípios, e é claro que não pode ir para Sancho, Martinho e esse vosso criado. Mas a União terá 10%, o Estado 70% e o Município apenas 20%, o que me parece terrivelmente injusto.”
O poeta lembra que para o município, minério “é riqueza que não se recompõe, e com a exploração intensiva se esgota para sempre”.
É assim que Drummond considera que “os 20% destinados aos municípios – só isso? – em contraste com os 70% atribuídos aos Estados, têm algo de mesquinhamente ridículo, que não pode passar despercebido à sensibilidade municipal de nossos legisladores, na maioria procedentes de pequenos núcleos habitacionais, onde a miséria coletiva definha sob a miséria dos orçamentos”.
Descrença
De tanto ver triunfar as injustiças contra Itabira, enquanto as autoridades locais e a tal sociedade civil organizada permaneciam de braços cruzados vendo a vida passar devagar, Drummond foi duro ao responder à turma de O Cometa que não iria colaborar com a divulgação do I Encontro Nacional de Cidades Mineradoras, realizado em agosto de 1984, em Itabira. Portanto, há 38 anos.
“Minha velhice experiente me ensinou tantas coisas. Uma delas: descrença em nossos homens públicos.” Drummond manifestou ainda a sua “impossibilidade racional de crer na letra das palavras e no discurso dos homens”.
Mas o poeta, mesmo não acreditando nas palavras dos homens, e mesmo revelando o seu justificado ceticismo, poucos dias depois de se negar a participar da divulgação do encontro das cidades mineradas, para grata surpresa de todos na redação do Cometa, enviou para publicação O Maior Trem do Mundo:
Antes, em novembro de 1983, Drummond publica no Cometa outro poema profético. Lira Itabirana viralizou nas redes sociais 32 anos após a sua publicação, com a maior tragédia ambiental do país, provocada com o rompimento da barragem que destruiu o povoado de Beto Gonçalves, no município de Mariana, causando 19 mortes – e seguiu pelo rio Doce até litoral capixaba deixando seu rastro de destruição.
Lira Itabirana
O Rio? É doce./A Vale? Amarga/Ai, antes fosse/Mais leve a carga./Entre estatais/e multinacionais,/Quantos ais!/A dívida interna./A dívida externa./A dívida eterna./Quantas toneladas exportamos/De ferro?/Quantas lágrimas disfarçamos/Sem berro?
E assim, sucessivamente, Drummond transformou O Cometa em palco de sua poesia engajada em defesa de sua terra natal. Precisava mais? Precisava, principalmente nos dias de hoje, pela falta que ele faz.
Leia mais aqui
A poesia de Drummond em defesa da terra natal
e também aqui
Muito bem Carlos, a sua matéria sintetiza o fim da Itabira. Não há o que fazer, senão sentar no sofá e assistir tv. Mas me diga, onde está plantada a arvore do poeta? Ainda existe? Pergunto porque na cidade da itabira a mineradora destroi tudo, o que fica é o ranço da orgia da morte.