O exemplo do Peru e as suas implicações políticas

Rafael Jasovich*

Indígenas e camponeses, ronderos, habituados a rondar as suas comunidades para garantir a segurança dos vizinhos, convergiram em Lima para vigiar e garantir o resultado das eleições, a própria democracia.

O contexto internacional da terceira década do século vem sendo marcado pelo sério declínio da convivência democrática já, de si, congenitamente débil e seletiva. Esse declínio tem duas faces.

Por um lado, o agressivo predomínio das forças políticas de direita mais conservadoras. No continente latino-americano essa agressividade manifesta-se na renovada presença da extrema-direita que se afirma de múltiplas formas.

É assim que se tem o discurso do ódio racial e sexual nas redes sociais, que por vezes se aloja impunemente no discurso político oficial (o mais nefasto legado de Donald Trump).

E ainda o doutrinamento ideológico de perigos imaginados (o comunismo, o extremismo, ou o chip inserido nas vacinas) ou do negacionismo ante perigos reais (a gravidade da pandemia).

E vem o recurso à narrativa do golpe antidemocrático para restaurar uma ordem supostamente ameaçada por uma iminente subversão que, de fato, é milimetricamente planeada por quem se proclama ser a única opção para travá-la.

Preocupa, sobretudo, também a emergência de grupos armados ilegais que atuam com a cumplicidade do Estado.

A outra face do declínio democrático reside na desorientação das forças políticas de esquerda. Também esta se manifesta de múltiplas formas.

Com a perda alarmante de contato com as necessidades, aspirações e narrativas de indignação das classes populares cujos interesses dizem defender.

Tem-se ainda a exclusiva concentração em estratégias eleitorais de curto prazo quando é cada vez mais incerto que haja eleições ou que estas sejam livres e justas.

Soma-se a emergência do novo sectarismo e dogmatismo, seja em nome da prioridade do desenvolvimento extrativista, seja em nome da prioridade das pautas identitárias raciais ou sexuais.

Deste sectarismo decorre a incapacidade para identificar o que, apesar de tudo, une as diferentes forças de esquerda e para incidir pragmaticamente nesses pontos de união de modo a oferecer uma alternativa política credível (a vítima mais recente desse sectarismo foi a esquerda equatoriana depois do primeiro turno das eleições de 2021).

A convergência tóxica dessas duas faces do declínio democrático está fazendo com que as populações vulnerabilizadas pelo capitalismo cada vez mais selvagem, pelo colonialismo eterno e pelo patriarcado não menos eterno busquem um de três caminhos consoante os contextos.

Sucumbem ao desespero e se resignam pela via do crime ou pela salvação no outro mundo, acolhendo-se mansamente como cordeiros à proteção dos lobos transcendentais do capital religioso; revoltem-se fora das instituições.

Dando origem a explosões sociais que podem incluir ocupações de zonas das cidades (Índia e Colômbia), saque de lojas e supermercados (África do Sul) ou destruição de estátuas de escravagistas e de assassinos dos vencidos da história (África do Sul, EUA, Colômbia, e, mais recentemente, Brasil).

Organizem-se para garantir a transformação do sistema político e social, usando os processos eleitorais para fazer eleger candidatos que prometam tal transformação.

Só este último caminho garante o resgate da convivência democrática e por isso me concentro nele, sem, no entanto, deixar de insistir que ele tem lugar no contexto em que outros caminhos estão ou podem vir a ser seguidos em paralelo ou seqeencialmente.

Exemplos não faltam, reforma constitucional (Chile) eleições diretas (Bolívia e Argentina).

É necessária a união das forças democráticas em torno de um programa que contemple principalmente a classe social mais desprotegida e vulnerável.

*Rafael Jasovich é jornalista e advogado.

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