Não só a Vale e o Brasil devem a Itabira. A dívida histórica é também do mundo, diz José Miguel Wisnik
Carlos Cruz
A pedra e a montanha são duas metáforas usadas pelo poeta Carlos Drummond de Andrade (1902/87) e também pelo escritor João Guimarães Rosa (1908/67) – e que ganham dimensão regional e ao mesmo tempo universal.
E ambos os signos têm o significado das dificuldades encontradas em uma determinada situação, muitas vezes intransponíveis – e que, principalmente no caso da pedra, remetem a própria colonização brasileira e à opção do país pelo desenvolvimento dependente, meramente exportador de matéria-prima, as chamadas commodities.
Os pontos comuns e divergentes da literatura desses grandes escritores mineiros foram abordados na abertura do 3º Festival Drummond e da 18ª Semana Drummondiana, nessa sexta-feira (25), no teatro do Centro Cultural, com a mesa mesa-redonda Drummond com vida Guimarães Rosa.
Do debate participaram o músico, escritor e jornalista José Miguel Wisnik, professor de literatura da Universidade de São Paulo, autor de Maquinação do Mundo – Drummond e a Mineração – e a escritora Marli Fantini, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista na obra de Guimarães Rosa.
A apresentação do tema proposto para o bate-papo teve a mediação do jornalista e escritor Afonso Borges, gestor cultural e idealizador do projeto Sempre um papo.
Referências
Para Wisnik, assim como o Morro da Garça, que fica a 70 quilômetros de Cordisburgo, cidade natal de Guimarães Rosa, é uma referência regional que se tornou universal, assim é também o ex-pico Cauê para Drummond.
Outro ponto comum é que essas referências geográficas são também símbolos de luta, resistência e traição. “O Morro da Garça é ao mesmo tempo uma referência para a localização do boiadeiro, mas é também o lugar da emboscada”, diz José Miguel Wisnik.
Já o Cauê para Drummond, segundo ele, representa o modelo de colonização brasileira e as vicissitudes que ocorreram no país e no entorno de Itabira. Dessa realidade provinciana, da Cidadezinha Qualquer, Drummond nunca se desvencilhou.
E esse sentimento de perda incomparável pela Montanha Pulverizada, dinamitada e triturada, que, há 77 anos, segue transportada pelo maior trem do mundo, irá permanecer para sempre na obra do poeta itabirano.
De acordo com Wisnik, essa “saga” teve início com o acordo de Washington, quando foi criada a Companhia Vale do Rio Doce para, em 1942, resolver o impasse e dar início à exploração do minério de Itabira para suprir a indústria bélica dos aliados na guerra contra o nazi-fascismo na 2ª Guerra Mundial (1939/45).
Antes disso, no país, duas correntes distintas disputaram qual o modelo deveria ser seguido para explorar a fabulosa riqueza de Itabira. “Com a guerra, vingou o modelo meramente exportador, enquanto o segundo modelo, ao qual Drummond estava entre os seus defensores, achava que o minério de Itabira deveria ser transformado no futuro aço do Brasil”, acentua Miguel Wisnik.
Nesse acordo, conta Wisnik, os ingleses ressarciram a Itabira Iron Company e os americanos entraram com o empréstimo para se criar a Companhia Vale do Rio Doce. Isso enquanto o Brasil entrou com um capital in natura, que foi o pico do Cauê. “O ferro itabirano foi o capital oferecido pelo país como sua parte no esforço de guerra e foi crucial para a vitória dos aliados na guerra contra o nazi-fascismo.”
Dívida histórica
Portanto, sendo assim, a dívida histórica com Itabira não é só da Vale e do governo brasileiro, mas de todo o mundo que se livrou, com o armamento pesado fabricado com a hematita do Cauê, da distopia que viria caso a guerra fosse vencida por Hitler e seus aliados do chamado eixo do mal. “No acordo de Washington, Itabira foi o ponto crucial nas negociações sob o ponto de vista diplomático, militar e estratégico.”
É assim que para José Miguel Wisnik, que passou a entender melhor a presença de Itabira na obra literária de Drummond depois de visitar a cidade por três vezes, a pedra no caminho tem, além do sentido metafísico, também um significado local e universal.
“Para Drummond tem a ver com o sentimento de derrota ao ver a empresa crescer e se desenvolver exponencialmente deixando Itabira sem a contrapartida devida. Foi assim que ele lutou, nos anos 50, juntamente com outros abnegados itabiranos, contra essa situação de injustiça.”
O escritor se refere à série de reportagem que poeta e jornalista itabirano publicou no jornal Correio da Manhã, na sua luta incansável para que a empresa cumprisse o que determinava o seu estatuto, transferindo a sua sede para Itabira.
E, também, por uma maior participação do município no rateio do Fundo de Melhoramento da Zona do Rio Doce, que dispunha de parte ínfima do lucro da mineradora para a investir nos municípios na área de influência da mineradora ao longo da Estrada Vitória a Minas. Leia também aqui, aqui e aqui.
O poeta se sentiu derrotado por não ver atendidas as reivindicações históricas de Itabira. Entretanto, a denúncia persistente em sua coluna dominical no jornal carioca serviu para tornar público o que ocorria em sua cidade natal.
Foi uma premonição do fracasso, sob o ponto de vista do desenvolvimento local e do país, traduzido pelo vigente modelo exportador de commodities, sem que a hematita do Cauê virasse “o futuro aço do Brasil”.
Atavismo
Conforme atesta o estudioso da obra do poeta, Drummond nunca se desligou de Itabira. “Um dos mais fantásticos equívocos da cultura brasileira é o mal-entendido de que o poeta não se interessava pela sua cidade natal, o que é uma grande inverdade”, atesta Wisnik. “Na literatura brasileira não existe nenhum escritor que tenha essa vinculação tão forte, profunda e transformadora com o lugar onde ele nasceu.”
Conforme o escritor jornalista descreve, Itabira é a casa que Drummond sempre revisita com os seus poemas e crônicas. “Criaram (os seus adversários) a imagem de que Drummond era um inimigo do progresso da cidade, quando na verdade o seu posicionamento sempre esteve ligado a essa disputa sobre qual deveria ser o papel da mineração para o desenvolvimento de sua cidade natal e do país. Ele tinha uma visão critica e isso se voltou contra ele.”
Wisnik torce para que o seu livro – Maquinação do Mundo – Drummond e a Mineração – possa contribuir para desmitificar essa imagem distorcida, “plantada” pelos vitoriosos do modelo econômico exportador de commodities.
Propaganda enganosa
Segundo o autor, numa propaganda da Vale, nos anos 70, a empresa se apoderou da imagem da pedra para se referir ao minério de Itabira que ela transformava em riqueza para o país, numa crítica indireta ao posicionamento do poeta.
“Diziam (na propaganda) que a Vale gerava 70% dos empregos em Itabira. Drummond respondeu que Itabira respondia por 100% da riqueza da Vale e por tudo que era transportado por sua ferrovia.”
“Antes de vir a Itabira, eu não tinha uma visão da cidade marcada por esse impacto. Eu estudava, dava aula sobre Drummond e nada sabia do que se passava aqui e de como isso repercutia na vida e na obra do poeta”, contou José Miguel Wisnik.
“Foi uma grande descoberta e hoje tenho uma visão muito emocionada da cidade”, descreveu o debatedor, que passou o dia de ontem em visita à Casa de Drummond, contemplando da janela a ausência do Cauê.
E, depois, badalando o sino Elias na atual igreja do Rosário (Catedral), presente que ele lhe deu dois dias antes de seu aniversário. “Drummond achava que a riqueza gerada pelo minério deveria reverter em algo que fizesse de Itabira um grande polo industrial e cultural. E isso não aconteceu.”
A pedra e a montanha pulverizada
É assim que para José Miguel Wisnik tanto Drummond como Guimarães Rosa têm no pico do Cauê e no Morro da Garça como marcos geodésico e geográfico em suas obras literárias.
“Um tem a ver com a perda e o outro com a terceira margem do rio, esse conto espantoso sobre o homem que manda fazer para si uma canoinha com a qual entra no rio sorrateiramente sem um destino definido. Não passa para a outra margem, um lugar enigmático de quem está ausente sem nunca ter ido, mas também não retorna.”
Já a pedra para Drummond, afirma o escritor e atento jornalista depois de conhecer a realidade local, tem essa condição singular itabirana, de uma pequena cidade diante de um colosso mineral, que mesmo estando no mesmo local provinciano é também uma questão nacional ainda não resolvida da modernização brasileira – e da dependência mundial da commodity que, volta-se a repetir, deixou de ser o futuro aço do Brasil.
”Diante dessa realidade, Drummond viu à frente o que estava para ocorrer com a cidade, uma realidade que a maioria das pessoas que aqui vivia não conseguia enxergar.”
Para o escritor, hoje é possível ver claramente como a Máquina do Mundo, que é a própria Vale, age depois dos rompimentos das barragens de Mariana e Brumadinho, com todas as consequências trágicas conhecidas.
“Na descrição da Máquina do Mundo os recursos da terra estão dominados, submetidos a uma máquina exaustiva, esgotante. Hoje é possível ver com toda clareza essa máquina em ação, com todas as suas consequências já conhecidas, o que antes só o poeta enxergava”, comparou José Wisnik.
“Há ainda uma situação mal resolvida nessa história e que é silenciada. Quando a Vale mostra, na peça publicitária de 1970, que a pedra era o desenvolvimento brasileiro, hoje é preciso acrescentar que tem também as toneladas de rejeitos que estão aí causando tragédias.”
Para Wisnik, é preciso rever Drummond e todas essas coisas que ele revelou. “Isso não pode continuar mais sendo silenciado.”
A realidade distorcida
A professora Marli Fantini disse que o entendimento que se tem da realidade é muitas vezes uma visão distorcida. O entender essa realidade é uma busca incessante nas obras dos dois autores, Drummond e Rosa.
E que muitas vezes essa realidade não é desnudada no tempo presente, sendo preciso que ocorram muitas badaladas do sino Elias para que seja compreendida – e desnudada.
Foi assim com Riobaldo, o jagunço filho bastardo, que aos 18 anos conhece Diadorim, que se passava por homem. E se apaixona, mas não pôde manifestar esse sentimento. Afinal, ele era um jagunço e não podia se relacionar com outro homem, não ficava bem.
“Diadorim morre no lugar do novo chefe do bando, que é Riobaldo. E segue o desespero de Riobaldo ao descobrir que aquele que julgava ser homem era na verdade uma mulher linda, de olhos claros, um corpo lindo. E ele fala: ‘Diadorim tinha morrido para sempremente longe de mim. E eu sabia e não queria saber. Meus olhos marejavam. Não escrevo. Não falo para assim não ser. Foi, não é, não fica sendo Diadorim.”
Ou seja, num primeiro momento, no desespero, vem a tentativa de negar a realidade. É assim também que ocorre com as perdas incomparáveis para Drummond, a realidade que muitos não querem ver – ou que levam tempo para perceber. “São as perdas, as pedras no meio do campo”, comparou a professora da UFMG.
Rememorando meu saudoso pai, Aníbal Moura, o mesmo sempre dizia que a “cava” do Cauê deveria ser declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
Pois foi com o nosso minério de ferro que os Aliados derrotaram os nazistas e seu poderoso exército.
Infelizmente a “cava” agora vem sendo entupida com rejeito de outras extrações do ferro, contrariando o legado histórico dessa nossa participação na grande guerra mundial.
Caro primo, concordo com suas lúcidas reflexões! Somos todos órgãos do Cauê… Parabéns por mais um excelente trabalho histórico-cultural!
Oops, órfãos, quis dizer!
Então aproveitemos a fala grande do valoroso companheiro Aníbal e nos organizemos para uma ação civil coletiva do Povo contra a CVRD/Vale em tribunal internacional. É a única saída para Itabira recuperar a sua alma vendida à CVRD/Vale de Morte.