Vou ser médico
Um conto de Rafael Jasovich*
Era uma vez… Assim começava a minha mãe quando lia para mim contos infantis . Achei por bem seguir o exemplo dela e abrir esta estória com essa frase.
Sou do interior de Rondônia, nascido a mais de 400 km da capital. Vim ao mundo num pequeno sítio onde se criavam umas galinha magras, uma vaca e duas cabras.
Mal dava para o sustento da pequena família onde a figura paterna faltava fazia alguns anos, sumido no mundão atrás de alguma quimera. A pequena roça de mandioca e feijão nunca vingava e a fome corroia nossas barrigas.
Minha mãe, mesmo pouco estudada gostava de ler e lia para nós livros juntados de doação, o sonho dela era ver o filho doutô .
Quando fiz cinco anos comecei a frequentar a escolinha rural, mais pela merenda que pelo estudo. Andava mais de seis quilômetros para ir e outro tanto para voltar.
Sem sapatos usava um chinelo velho que não cabia mais no pé de meu irmão, do qual herdava também a roupa. Assim fui apreendendo as primeiras letras e as frases foram fazendo sentido, tomei certo gosto pela leitura, herança de minha mãe talvez ou a genética fazendo sua parte.
A professorinha, sim ela era bem jovem, vendo meu interesse começou a me emprestar livros e me fazia contar o que eu tinha lido.
Li autores nacionais e alguns estrangeiros. No começo não entendia muito do que lia, sabia que era importante e a professora ia me explicando.
Adquiri também um gosto pela poesia, e me apaixonei loucamente por uma coleguinha de sala, a qual dedicava alguns versinhos que escrevia com meu lápis meio comido na ponta num pedaço de papel de embrulho.
Um dia apareceu no pequeno sítio um cara vestido de branco com um aparelho pendurado no pescoço, depois soube ser um estetoscópio. Disse ser um agente de saúde, para mim era um médico.
A partir desse dia ficou marcado meu destino, eu ia ser médico.
O tempo, senhor da razão, foi passando e eu já adolescente terminei muito mal e porcamente o ensino médio. Aí começa mais um caminho tortuoso e cheio de espinhos para tentar a tal carreira de médico.
Cursinho nem pensar, faculdade publica sonho distante e particular um roubo.
Na vida aparecem oportunidades, minha mãe falava – cavalo encilhado só passa uma vez na porta de casa – e não é que passou. No sentido figurado montei.
Faculdade de medicina no Paraguai, sem vestibular e com mensalidade de um mil e quinhentos reais. Pensei: trabalhando e vivendo como sempre vivi, austeramente, achei que dava. Começava uma nova etapa de minha vida.
Contas a fazer, passagem de ônibus até Ponta Porã, fronteira com Pedro Juan Caballero (Paraguai), onde eu ia estudar e morar, matula para a viagem de mais de 40 horas, matrícula da faculdade, um dinheirinho a mais para arrumar moradia. O total arrecadado foi à derrota das galinhas, a venda da vaca e uma das cabras.
Munido de uma mochila com meus poucos pertences parti para o desconhecido mundo onde eu iria encontrar meu futuro. Imaginava-me já vestido de branco, estetoscópio no pescoço num posto de saúde da pequena cidade de Rondônia onde eu ia voltar triunfante como médico.
Minha chegada a Pedro Juan Caballero não foi muito legal. Era um dia quente de verão e as ruas poeirentas da cidade me receberam com mais de 35 graus de temperatura.
A cidade parecia uma estranha mistura de cidade pequena do interior do século 20 com carros modernos, importados e caros circulando pelas ruas. O trânsito perigoso, lembrava a Índia onde cada um fazia o que bem entendia.
Tinha o endereço de uns conhecidos de Rondônia que já estudavam em Pedro Juan Caballero. Andei uns 3 quilômetros o que não foi difícil para mim, acostumado que estava a andar a pé por falta de grana.
Cheguei à quitinete onde moravam dois caras e uma menina, todos patrícios. Descobri ao conversar com eles que mais de 2 mil rondonienses estudavam medicina no Paraguai. Bom, achei que ia me sentir em casa.
Não foi bem assim e as coisas se complicaram. Lugar na quitinete nem pensar, eram duas camas e um colchão no chão. Ajudaram-me levando-me a outro apartamento em um prédio cheio de quitinetes onde moravam mais rondonienses, paraibanos, tocantinenses, baianos, maranhenses e por ai vai.
O Brasil representado em sua miscigenação quase perfeita: negros, mulatos, pardos e alguns brancos.
Arrumei um lugar num apto de dois quartos, sala, banheiro, cozinha onde moravam duas meninas e dois rapazes. Eu fiquei no colchão na sala, tudo por 300 reais por mês incluindo água, luz e internet. A dois quilômetros da faculdade onde ia estudar.
Dormi ai, as pessoas super acolhedoras, todos com histórias parecidas de pobreza e sonhos.
Dia seguinte fui à faculdade fazer a matrícula. Fiquei sabendo de mais um problema para meus parcos recursos. Tinha que fazer minha residência no Paraguai, custo de R$ 1,2 mil que óbvio eu não tinha.
Mas entre mortos e feridos, nos salvamos. No primeiro dia de aula tive de comprar o uniforme da faculdade e mais um jaleco branco. Afinal, eu ia ser médico e o jaleco era obrigatório assim como o uniforme (por sorte só camiseta),
Fiquei liso, com dinheiro apenas para um salgado por dia durante 15 dias, mas estava feliz ainda que preocupado. Afinal, eu ia ser médico.
Primeiro dia de aula começou a via cruz de entender os professores que ministravam aula em espanhol, complicado.
Ao sair da faculdade logo das primeiras aulas pensei com meus botões – hoje começou um longo caminho de seis anos para atingir o objetivo. Estava preparado para resistir, estudar e levar adiante essa epopéia.
Nunca imaginei, pelo menos nesse momento, que ia me deparar com muitas e diferentes formas de levar a vida. Ia conhecer o álcool, algumas drogas e a grande diversidade de pessoas que formavam o contingente enorme de estudantes da minha faculdade.
Isso é outra estória e essa convivência, mais o estudo de coisas tão diferentes, iriam me formar não só como médico, mas também moldar meu caráter.
Ah, ia me esquecendo, meu nome é Daniel.
*Rafael Jasovich é jornalista e advogado, membro da Anistia Internacional e contista nas horas de folga.