Vila de Utopia
Carlos Drummond de Andrade*
A casa era grande, na rua Municipal: dois andares que subiam cheios de porta e sacadas, oferecendo a frontaria sem ornatos, maciça, impressionante, à admiração dos que passavam. Dentro dela, olhando para o pátio central, outro sobrado, este menor, guardava cômodos inúteis; parecia um pombal. Em 1911 esse sobradinho desapareceu, mas a casa não diminuiu de tamanho, os passos ecoavam ainda nos mesmos imensos corredores, nas mesmas salas infinitas. E nela existiam desvãos que nós nunca havíamos explorado. Por baixo da escada, por cima da copa, aqui, ali, o mistério abria-nos os seus lares. Mas nós crescíamos depressa e não púnhamos reparo na casa grande.
Sabíamos que a casa tinha muitos anos, que ali morreram avós, tios e primos; em tal quarto nasceu meu pai, naquele outro meu avô estendeu, até a morte, uma perna baleada nas últimas eleições sangrentas do município; mas nós circulávamos livremente através do ar coalhado de lembranças e eflúvios familiares, de pesadas e obscuras memórias dos coronéis e das damas antigas, dos vestidos de dona Joana e das festas do comendador Paula Andrade.
Com a mesma inconsciência natural nós crescemos e nos dispersamos: um dia a casa foi vendida, e então um amargor sem aviso prévio, uma angústia nos subiram à boca, aos olhos: verificamos como aquela casa fazia parte de nossa vida, e como essa vida ficava sem explicação, despregada das enormes paredes azuis que o Andrade dominador salvara da ruína para compor com elas o nosso quadro infantil e humano.
Tinha setenta, oitenta anos… Nunca soubemos ao certo a idade daqueles barrotes veneráveis. Ninguém sabia. E não pedíamos informações. Insisto em dizer que a vida era inconsciente e calma. O pico do Cauê, nossa primeira visão do mundo, também era inconsciente, calmo. Na nossa rua apenas passavam as pessoas que iam assistir à chegada das malas no Correio, espetáculo diário e maravilhoso, pelo humorismo que nele sabia pôr o velho Fernando Terceiro, as pessoas que iam reconhecer firmas no tabelião Barnabé; e algum vago transeunte, em demanda da rua Santana, algum vago moleque, que ia atirar pedras na casa da Didina Guerra (às vezes, eu aderia cinicamente a esse moleque). Nos dias de júri, a curiosidade das tragédias e das humilhações alheias punha um enxame de criaturas no Fórum, perto de nossa casa; mas nós íamos caçar passarinhos ou tomar banho na praia do Rosário, onde uma bica nos dava a impressão de uma catarata doméstica, submetida aos nossos desejos.
Como foi que a infância passou e nós não vimos? Até hoje interrogo aquele menino que durante quatro anos foi aluno deploravelmente bom do grupo escolar, e não o sinto nem aprumar-se, nem enriquecer-se de experiências vitais, nem desprender-se do cenário familiar. No entanto, o menino existiu, sofreu, brigou, amou, desesperou, cresceu. Vinte anos depois, voltando à cidade, não encontrei vestígio algum da aventura individual. Só a velha casa continuava, espetacularmente azul na rua deserta, de onde haviam desaparecido o tabelião Barnabé e o coletor Quinca Custódio, mas onde restava o inesgotável Fernando Terceiro ainda ereto, fazendo sempre o comentário sarcástico dos acontecimentos e dos homens entre os quais incluía o seu vizinho e também humorista Minervino Betônico.
A vida anterior sutilizara-se. A cidade, entretanto, continuava o mesmo aglomerado de casas desiguais, nas ruas tortas grimpando ladeiras. Um silêncio grave envolvia todas essas casas e impregnava-as de uma substância eterna, indiferente à usura de materiais e das almas. Dessa maneira ela se preserva da destruição. Hoje, amanhã, daqui a cem anos, como há cem anos, uma realidade física, uma realidade moral se cristalizam em Itabira. A cidade não avança nem recua. A cidade é paralítica. Mas, de sua paralisia provêm a sua força e a sua permanência. Os membros de ferro resistem à decomposição. Parece que um poder superior tocou esses membros, encantando-os. Tudo aqui é inerte, indestrutível e silencioso. A cidade parece encantada. E de fato o é. Acordará algum dia? Os itabiranos afirmam peremptoriamente que sim. Enquanto isso, cruzam os braços e deixam a vida passar. A vida passa devagar em Itabira do Mato Dentro.
Se a vida passasse depressa, a estrada de ferro já teria posto os seus trilhos na orla da cidade; à sombra do Cauê, uma usina imensa reuniria 10 mil operários congregados em cinquenta sindicatos, e alguma coisa como Detroit, Chicago, substituiria o ingênuo traçado das ruas do Corte, do Bongue, dos Monjolos. Mas para que tanta pressa? Tudo virá a seu tempo, e se não for agora, como não foi em 1898, quando o padre Júlio Engrácia dizia ironicamente que “depois que pelos diversos estudos ficou a esperança que passará na cidade uma via férrea, tem havido animação em construir; ao menos houve essa vantagem” – algum dia há de ser, e tudo estará bem. Na consumação dos séculos se consumarão também os nossos desejos, e a alma alcançará a bem aventurança eterna, que é o sono no regaço de Deus. Até lá, vivamos com calma.
É curiosa a vila de Utopia, posta na vertente da montanha venerável e adormecida na fascinação do seu bilhão e 500 milhões de toneladas de minério com um teor superior a 65% de ferro, que darão para “abastecer quinhentos mundos durante quinhentos séculos”, conforme garantia o visconde do Serro Frio. “Os números que exprimem a quantidade de minério de Itabira”, confirma o professor Labouriau, “são astronômicos: de tão grandes tornam-se inexpressivos”.
Inexpressivo é bem o termo: e não encontro também outro para qualificar a minha, a nossa indiferença diante de tanta opulência inerte. Somos tão ricos, em Itabira, que não nos preocupamos com a nossa própria riqueza. Temos riqueza para dar ao mundo inteiro e ainda sobra para 499 mundos possíveis. Se oferecêssemos a cada habitante do planeta a insignificância de uma tonelada de ferro, quase todo o rebanho humano estaria servido, pois a cifra total do rebanho não vai além de 1 bilhão e 700 milhões de criaturas. Somos perdidamente, inefavelmente milionários. No entanto, a arrecadação da prefeitura, em 1932, não excedeu de 216 contos (inclusive 20 contos de saldo do exercício anterior), e uma honesta parcimônia pauta a vida dessa gente ensimesmada e grave, que nada tem nem pede ao governo, e passa honradamente pelos guichês do Banco Comércio e Indústria, para emitir ou reformar as suas promissórias. Tanta riqueza em potência vem sendo, talvez, um grande mal para a vila de Utopia.
– Itabira, onde estão tuas trinta fábricas de ferro do tempo do barão de Eschwege, com seus cadinhos dotados de trompas e martelos hidráulicos, os seus fornos e as suas oficinas de armeiro, que antecederam e suplantaram em eficiência a real fábrica do Morro do Pilar?
– Onde estão, Itabira, os escravos e os faiscadores de João Francisco de Andrade e do capitão Tomé Nunes, varejando os regatos e as encostas de Santana e da Conceição e produzindo mais de 7 mil oitavas de ouro, quando já a mineração declinava no Brasil?
– Que notícias me dás, Itabira, da Associação Brasileira de Mineração, último esforço da nossa gente para manter o caráter nacional dos nossos depósitos minerais, hoje entregues ao estrangeiro tão arrebentado quanto nós para explorá-los?
Tudo isso está longe. A minha infância já não foi frequentada pela memória desses homens e dessas preocupações. E se me debruçava sobre o passado, era para ouvir uma voz que cantava, toldada de álcool:
Capitão Tomé
é ouro só,
os herdeiros dele
é molambo só…
ou para ouvir o velho Elias do Cascalho resmungar uma reza meio africana meio mística, que tinha poderes para esconjurar mazelas; era mais velho que a cidade, viera do Congo e não se aproveitava nada do que dizia.
Como você foi diferente, sá Maria, com a sua existência prestimosa e sóbria, devotada à criação de duas gerações da família e pitando eternamente o seu cachimbo, única volúpia que a singeleza de seu feitio lhe permitia! E no entanto o Cutucum, de que você veio, num dia remoto do século XIX, está situado nesse distrito do Carmo, de que o padre Júlio assinalava o “descalabro social”, a “polícia fraquíssima e nula”, a “deficiência da educação e princípios religiosos”, a inclinação “a toda sorte de orgias”. Ainda vejo o corpo mirrado, sob o lenço colorido da cabeça, os dedos entrelaçados de frieiras, a boca murcha mascando mesmo quando vazia, a voz severa, mas traindo um secreto carinho, o coração aberto, numeroso… Cinquenta anos, pelo menos, da vida de Itabira desfilam diante dos seus olhos e você nem reparou neles, preocupada como estava em encher o seu pote d’água, preparar cedo o almoço e o jantar da família, deitar cedo os filhos de criação, viver cedo, fazer tudo cedo… menos morrer, porque isso era contra o seu regulamento interno, que exigia o máximo de fervor e de humildade na devoção.
Os velhos da cidade, no meu tempo, já não podiam dizer da velha Itabira, porque eles mesmo não a haviam alcançado. As gerações anteriores, sim, desbravaram as matas no lugar onde hoje meninas da Escola Normal e professores do grupo fazem footing à noite, antes do baile no Atlético; faiscaram os córregos, plantaram – perto d’água, para que pudessem rezar mais a jeito, sem perturbar a lavagem do ouro – a igrejinha do Rosário, e depois, mais alto, a nova Matriz; fizeram discursos falando na liberdade e, como esse altivo Paulo José de Sousa, “nos sentimentos americanos”; deram ao agrupamento social, ainda informe, contorno e coesão, estabelecendo em 1827 a freguesia, em 1833 a vila, em 1848 a cidade: e esses últimos foram, na história política e administrativa, os construtores da segunda e atual Itabira.
Porque a primeira Itabira, a Itabira do ouro, essa não tinha outra forma, senão a que lhe traçaram, com a ponta do pé, os desbravadores sequiosos na sua “exploração insensata e ruinosa das lavras”, de que fala Eschwege. As leis vinham da Vila Nova da Rainha, para onde ia o trabalho e o suor dos mineiros, convertidos em impostos; as bênçãos e as proibições morais vinham de Santa Bárbara, onde a igreja assentara a sua freguesia. Na encosta áspera, os pretos vibravam a picareta mergulhavam os pés na água escassa e barrenta. Um ou outro, com extrema dificuldade, ocultava na carapinha a pedra que daria para forrá-lo. Quando o amo não fosse como citado capitão Tomé, de quem os negros fugiam, espavoridos, para precipitar-se na mina, onde dizem que um morreu asfixiado.
Que resta dessa velha Itabira? Um mapa do sargento Bougadas, quando o povoado já sentia aproximar-se a sua elevação à vila. Procuramos, eu e Luiz Camilo de Oliveira Neto, esse mapa no Arquivo Público Mineiro, onde deveria estar, mas sumiu, como o sargento Bougadas, de que só o padre Júlio conserva o nome precário.
Haverá uma terceira e diversa Itabira? Meu Deus, como me doeria responder sim à pergunta, e confessar que em 1933 o antigo menino da rua Municipal foi encontrar a sua cidade habitada por um pelotão de velhos, que nada poderiam dizer, e por um exército de rapazes e meninas, aos quais não tinha nenhuma mensagem para dirigir. Entre aqueles velhos e estas crianças, ele passeou rapidamente a sua incorrigível inquietação de trinta anos, a sua falta de solidariedade com as coisas, a sua incompreensão do meio humano, a sua saudade, a sua disponibilidade. E o seu sofrimento foi como uma picada fina, penetrante, na carne do braço.
Tudo foi rápido. Não suportou o choque emotivo com a sua terra, e voltou na persuasão de lhe terem roubado alguma coisa. Era o problema da cidade diferente, ou do homem diferente, este recusando-se a admitir que houvesse mudado e supondo de boa-fé que a mudança devia ser humana e pessoal. Um espelho que não refletisse mais o dono; foi o cristal que se corrompeu ou foi o homem que se tornou invisível? De volta, na estrada de Santa Bárbara, essas dúvidas surgiam, cruzavam-se, desapareciam, e nenhuma resposta consolava o coração incerto.
Abro ao acaso as Meditações sul-americanas, de Keyserling, e fico pensando se o autor teria diante de si o cidadão de Itabira, quando apontou as características espirituais do homem da parte meridional do continente. Embora dificilmente aplicável à realidade psicológica brasileira o seu conceito de “gana”, vale a pena ouvi-lo quando diz, por exemplo:
O sul-americano (o itabirano) é passivo. Ele suporta a sua vida, e não conhece outra maneira de viver. Cede pouco às influências exteriores, mas capitula incessantemente diante da impulsão interior.
Todo ato sul-americano (itabirano) resulta do abandono a essa impulsão.
A vida aí, não segue uma direção, mas uma inclinação. Nada de espantoso, pois, em que, refletida pela consciência intelectual, evoque um abismo de melancolia e um abismo de cepticismo. Não se passa nada de novo. Nada serve para nada. Nenhum esforço vale ser tentado.
E finalmente:
a prodigiosa monotonia que paira, que está suspensa, por assim dizer, na fisionomia moral da América do Sul (de Itabira).
Dessa monotonia, o conde de Keyserling extrai um “sofrimento sul-americano”. Seria absurdo isolar, na sensibilidade mineira, um sofrimento itabirano? Julgo que não. Eu sou, Itabira, uma vítima desse sofrimento, que já me perseguia quando, do alto da Avenida, à tarde, eu olhava as tuas casas resignadas e confinadas entre morros, casas que nunca se evadiriam de escura paisagem da mineração, que nunca levantariam âncora, como na frase de Gide, para a descoberta do mundo.
Parecia-me que um destino mineral, de uma geometria dura e inelutável, te prendia, Itabira, ao dorso fatigado da montanha, enquanto outras alegres cidades, banhando-se em rios claros ou no próprio mar infinito, diziam que a vida não é uma pena, mas um prazer. A vida não é um prazer, mas uma pena. Foi esta segunda lição, tão exata como a primeira que eu aprendi contigo, Itabira, e em vão meus olhos perseguem a paisagem fluvial, a paisagem marítima: eu também sou filho da mineração, e tenho os olhos vacilantes quando saio da escura galeria para o dia claro.
Todos cantam sua terra, mas eu não quis cantar a minha. Preferi dizer palavras que não são de louvor mas que traem a silenciosa estima do indivíduo, no fundo, eternamente municipal e infenso à grande comunhão urbana. Ainda assim fui itabirano, gente que quase não fala bem de sua terra, embora proíba expressamente aos outros falarem mal dela. Maneira indireta e disfarçada de querer bem, legítima como todas as maneiras. E afinal, eu nunca poderia dizer ao certo se culpo ou se agradeço a Itabira pela tristeza que destilou em meu ser, tristeza minha, tristeza que não copiei, não furtei… que põe na rigidez da minha linha de Andrade o desvio flexível e amável do traço materno.
*A crônica Vila de Utopia foi escrita em 1933, para celebrar o centenário da elevação de Itabira a vila, 20 anos depois de o poeta/cronista se ausentar da cidade natal. Foi publicada originalmente só em 1943, em seu primeiro livro de crônicas, Confissões de Minas.
Esta crônica deveria ser lida, relida e interpretada por todas as pessoas viventes em Itabira. Segundo o grande, genial, fabuloso Luiz Camillo /Carlos o Vila precisa falar sobre o Luiz/ escreveu: Itabirano não fica doido, declara-se. E eu completo: se não declarar-se vai voando pra Barbacena. Eu declarei por isso não me embriado com Rivotril. Amém, assim como dizia Marinha mãe do Arp Procópio.
É aliviante que Itabira agora tenha o Vila de Utopia, um segmento de O Cometa Itabirano, que a cidade necessita, precisa pra alimentar o processo civilizatório na Cidadezinha. E aí eu galhardamente digo: Obrigado Carlos Cruz!
Cristina Silveira, do Rio fodido, destroçado, à míngua.