Unifei-Itabira já tem autorização acadêmica para pesquisar as diferentes propriedades da maconha. Só falta a Anvisa liberar
Pesquisadores em trabalho de campo na Associação de Apoio à Pesquisa e aos Pacientes de Cannabis Medicinal, no Rio (RJ)
Fotos: Divulgação
Carlos Cruz
Uma equipe de pesquisadores do campus de Itabira da Universidade Federal de Itajubá (Unifei) já conta com o aval de todas as instâncias acadêmicas da instituição para dar início, no laboratório de química, à análise circunstanciada de extratos oleosos à base de maconha (Cannabis sativa).
Só falta agora o sinal verde da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), para onde o pedido de autorização foi encaminhado no fim do ano passado.
A Anvisa solicitou a apresentação das liberações judiciais para a pesquisa, via habeas corpus, como comprovação da legalidade da procedência dos óleos.
Os pesquisadores da Unifei já estão fazendo esse levantamento por meio de contatos com pacientes que se enquadram nesses grupos, que ainda são poucos no Brasil.
“Já temos o laboratório de química bem equipado, com o equipamento necessário para fazer a caracterização, que é o cromatógrafo, além de contar com padrões científicos para as análises fornecidas pela Universidade da Carolina do Norte (EUA), nossa parceira no projeto”, diz o professor João Lucas da Silva, do Instituto de Ciências Tecnológicas (ICT), da Unifei.
Segundo ele explica, esses padrões científicos são necessários para identificar os 11 principais canabinoides, procurando entender como a genética da planta interfere na farmacologia do extrato vegetal. “É um projeto de pesquisa que já nasce com uma articulação internacional”, avalia positivamente o professor Silva.
“Isso é positivo pois, já dispondo desses padrões podemos avaliar a concentração dos principais canabinoides, como o CBD e o THC, que é o componente psicoativo da planta, o que garantirá uma maior exatidão em um processo de tratamento médico”, afirma o pesquisador da Unifei.
Parceria
Para desenvolver a segunda etapa do projeto, que vai além do conhecimento e da especificação das aplicações farmacológicas da Cannabis sativa, o projeto de pesquisa conta também com parceria da Universidade Federal de Viçosa (UFV), por intermédio da pesquisadora e doutoranda Laura Espósito.
A UFV já tem autorização da Anvisa para cultivar 5 mil pés de cannabis, com cerca de 400 variedades. Com o cultivo e pesquisa, o Brasil pode ganhar o primeiro banco genético da planta.
“O objetivo é caracterizar geneticamente as diversas variantes da maconha, o que permitirá a compreensão mais profunda de suas composições químicas”, explica o professor do Departamento de Agronomia da UFV, Derly José Henriques, coordenador do projeto na universidade parceira da Unifei.
A caracterização das espécies é de grande necessidade, uma vez que o conteúdo de canabinoides, a exemplo do CBD e do delta-9-tetrahidrocanabinol (THC), tem aplicações diferentes de acordo com a variante da planta.
No Brasil já são comercializados 25 tipos diferentes de canabinoides sem que se tenha essa caracterização, necessária para se conhecer melhor as suas propriedades terapêuticas.
Pesquisa ampla
A pesquisa da Unifei e parceiros universitários fará não só a caracterização farmacológica, mas também genética da planta. Isso possibilitará ao usuário identificar o melhor canabidiol para tratar de sua enfermidade.
“É que cada doença para ser tratada demanda por características farmacológicas específicas dos óleos, que são obtidos de diferentes plantas sem que se tenham atualmente as especificações pelos laboratórios e mesmo pelos produtores artesanais”, observa o professor Igor dos Santos City Rosa, do Instituto de Engenharias Integradas (IEI), também da Unifei.
“Cada doença, por sua vez, demanda características e quantidades específicas dessas substâncias para um tratamento mais eficaz”, ele explica.
O projeto de caracterização é previsto para ser realizado em dois anos, prazo que pode ser ampliado com o avanço das pesquisas.
“Sem essa caracterização, corre-se o risco de a pessoa ingerir um óleo com característica farmacológica que não atende à sua necessidade, pelas variedades das plantas e de suas propriedades”, afirma.
Segundo City Rosa, com a caracterização serão conhecidos os derivados e as propriedades específicas para fins terapêuticos.
“A caracterização é de interesse da sociedade em um momento em que cresce em todo o mundo o consumo terapêutico dos canabinoides, para a pessoa saber exatamente o que está consumindo”, salienta.
Conhecendo a propriedade das mais diferentes plantas da maconha e os seus derivados, vai se saber qual óleo é o mais adequado para tratar, ou mesmo servir como coadjuvante no tratamento de diferentes tipos de doenças (Alzheimer, anorexia, ansiedade, artrite, autismo, AVC, esclerose múltipla, câncer, Parkinson).
Os participantes da equipe de pesquisadores da Unifei envolvidos no projeto são os professores Igor City Rosa, João Lucas da Silva e Juliano Monte-Mor.
Participam também as pesquisadoras Débora Araújo (Universidade da Carolina do Norte) e Laura Espósito (Universidade Federal de Viçosa).
Emprego diverso
A caracterização das propriedades da Cannabis sativa não vai se restringir aos derivados dos canabinoides.
Conforme explica o professor João Lucas, a planta tem uma fibra poderosa, tendo sido utilizada historicamente pela humanidade, inclusive nas amarras e na confecção das velas das grandes navegações portuguesas.
“É uma planta complexa que, ao longo dos anos, deixou de ser pesquisada e empregada por interesses econômicos adversos e também pela demonização da maconha em quase todo o mundo”, lamenta o professor.
Com o conhecimento de suas propriedades terapêuticas – e também para a indústria, a ideia é no futuro, assim que avançar a legislação caindo a proibição, incentivar também o cultivo da planta em lavouras por meio de pequenas propriedades rurais e nas comunidades quilombolas.
A proposta, inclusive, coincide com o que está no Plano Regional de Fechamento Integrado das Minas de Itabira (PRFIMI), de 2013, elaborado pela Tüv Süd Bureau de Projetos e Consultoria, contratado pela mineradora Vale para diversificar a economia de Itabira.
Nesse plano consta o cultivo de plantas medicinais em áreas degradadas como forma de reabilitação e ganho econômico, além de contribuir para a descarbonização do complexo minerador local.
No PRFMI está a proposta do Ecoparque Cauê, cujo “driver indutor” deve ser a produção de insumos terapêuticos para hospitais e indústria farmacêutica, com cultivo de plantas medicinais nas pilhas de estéril dispostas nas cavas exauridas – e também no platô da pilha Convap.
O documento foi apresentado ao antigo Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM). Faz referência à política já em curso de tornar o município de Itabira polo macrorregional em saúde, com a diversificação e fortalecimento do setor de atendimento médico-hospitalar-farmacêutico.
“Procurou-se privilegiar, nesse ecoparque industrial, ênfase em áreas das ciências médicas que apresentem um alto potencial de retorno monetário, favorecendo, portanto, a reanimação da economia da cidade de Itabira após o encerramento das atividades de mineração”, frisa o documento, um calhamaço que Vila de Utopia compartilha para conhecimento geral aqui:
Diversificação e reabilitação
Portanto, assim que a legislação brasileira avançar no sentido de liberar o cultivo da planta da maconha, é bem possível ter o cultivo de Cannabis sativa para fins terapêuticos como também industriais no município de Itabira.
O cânhamo é uma planta da família da Cannabis sativa. Pode ser utilizado como matéria-prima para produzir uma infinidade de produtos para emprego em diferentes setores industriais.
Serve como matéria-prima para produção de papel, tecidos, cordas, compostos plásticos e materiais de construção (tijolos e estruturas), na indústria petroquímica (plásticos e biocombustíveis), como também na fabricação de cosméticos, alimentos e suplementos nutricionais.
Outra grande qualidade da planta é a sua resiliência, como se comprova há milhares de anos, mesmo sofrendo com a forte repressão nas ditas sociedades modernas pós-revolução industrial. É que a planta se adapta às condições adversas e extremas.
Para a sua produção, mesmo que em grande escala, não depende de defensivos agrícolas, sendo necessário apenas o emprego de fertilizantes e adubação natural.
“Com a legalização, que não deve demorar para acontecer no Brasil, o cultivo e a industrialização podem abrir oportunidades para a diversificação econômica de Itabira, atualmente fortemente dependente da mineração, que está chegando ao fim”, defende o professor Igor City Rosa.
É assim que, com o cultivo futuro da maconha, “abrem-se novas oportunidades de renda e trabalho”, acredita o professor da Unifei, que é itabirano.
Ele está preocupado com o futuro próximo de sua cidade natal sem a mineração, que tem data ainda não sabida para acabar, mas com a exaustão de suas minas sabidamente próxima, como tem anunciado a própria Vale.
Resiliência ancestral
O consumo de maconha entre os negros escravizados no Brasil teve início com a colonização portuguesa, chegando-se inclusive a Itabira do Matto Dentro, ainda nos primórdios de sua ocupação territorial com os bandeirantes.
Com a proibição geral, a administração da Vila de Itabira achou por bem editar, em 1834, documento público proibindo os negros ainda escravizados de plantar e pitar o pango, que era como a Cannabis sativa era conhecida.
Entre trechos indecifráveis desse documento histórico posto pela autoridade municipal da época, fica estabelecido que “todo plantador que cultivar o fumo chamado pango, pagará multa de 8$ e mais dias (indecifrável o que segue) e o dobro no caso de reincidência.”
Segundo o professor João Lucas, esse documento é a prova da ancestralidade da maconha no território itabirano.
“É um documento muito interessante, pois comprova a presença e o hábito em Itabira de pitar o pango, que é uma palavra originária do banto, assim como é também a maconha”, afirma. Banto é um tronco linguístico que deu origem a outras línguas africanas.
Com as caracterizações da planta, objeto imediato dos pesquisadores, outra linha de pesquisa da Unifei será também procurar essa ancestralidade nesta região do Rio Doce, para que possa ser recuperada e devolvida a quem de direito, as comunidades quilombolas.
“O pito do pango pela população negra foi proibido como meio de controle social. E se houve a proibição era por ter muita gente fumando maconha em Itabira, assim como havia esse hábito em várias partes do país, no Rio de Janeiro, Salvador e em muitas outras localidades”, enumera o pesquisador da Unifei.
Para o professor João Lucas, a busca dessa semente “crioula” é tarefa difícil, mas não impossível. “Sabemos que existe essa cultura entre remanescentes escravizados no vale do Jequitinhonha e possivelmente em quilombos do vale do Rio Doce, como existe também em comunidades indígenas do Maranhão”, acredita o pesquisador da Unifei.
A dificuldade em buscar essa ancestralidade. como parte de uma reparação histórica, é que o cultivo da erva ainda é proibido no país. Portanto, tratam-se de cultivos clandestinos.
“São heranças de nossos tataravós, que cultivaram as cannabis adaptadas ao nosso bioma, ao nosso microclima. São plantas únicas no mundo e que correm risco de deixarem de existir”, lamenta o professor.
Por isso, é preciso que sejam encontradas, preservadas, pesquisadas e devolvidas às populações dos quilombos e aos indígenas brasileiros como parte de uma reparação histórica.
Isso para que voltem a usar livremente como faziam no passado com fins terapêuticos – e também recreativo, além de constituir fonte de renda.
Fim da demonização
É o que reivindica a coordenadora das Comunidades Quilombolas do Médio e Alto Rio Doce, Marlene Mateus, mulher preta residente no quilombo Descobertos do Córrego Frio, município de Paulistas, Minas Gerais, em vídeo gravado dirigido às comunidades e também às autoridades do país.
Marlene faz parte do Observatório de Conflitos e Confluências da Bacia do Rio Doce (Ocdoce), grupo de pesquisa-ação vinculado à Unifei/Itabira.
“Para nós, essa planta é sagrada, assim como são muitas outras plantas que utilizamos para a prevenção e cura, a ganja, a marijuana”, ela conta no vídeo, acrescentando que o seu consumo foi demonizado como meio de controle social, mantendo-se a dominação do homem branco sobre o negro escravizado.
Marlene Mateus conta que, em sua comunidade, muitos sofrem com doenças que poderiam ser tratadas com o óleo de Cannabis, assim como faziam os seus ancestrais.
“Eu tenho tremores nas mãos e vivendo fora do país tive a oportunidade de usar e sentir um grande alívio desse tremor fazendo uso do óleo”, testemunha.
A líder quilombola reivindica a liberação para o cultivo da planta. “É o nosso sonho para que possamos devolver a ela (a Cannabis) o seu aspecto sagrado. E também como reparação dos danos causados ao nosso povo que sofre ainda hoje com a proibição”.
Assista abaixo vídeo com depoimento de Marlene Mateus, coordenadora das Comunidades Quilombolas do Médio e Alto Rio Doce, sobre o uso medicinal da maconha: ancestralidade.