UFRJ concede a Martinho da Vila título de doutor honoris causa

Lenin Novaes*

“Eu recebi muitas flores em vida e um buquê de medalhas, comendas, títulos. Mas a flor mais bela e importante é a que recebo hoje, pois o diploma de doutor honoris causa me estimula a prosseguir na missão de transmitir alegria, tocar os corações com a minha música, passar boas mensagens com minha fala em aulas, palestras e escrever livros para os amantes da literatura, assim como para quem não tem o hábito de ler”.

Com essa declaração e alternando seu discurso com músicas e poesias, o sambista Martinho José Ferreira, conhecido, respeitado e admirado no Brasil e no exterior como Martinho da Vila, deixou a plateia contagiada ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A solenidade realizada em 31 de outubro (Dia Nacional da Poesia), na Faculdade de Letras, no campus da Cidade Universitária, na Ilha do Fundão, reuniu professores, alunos, técnico-administrativos e autoridades políticas e convidados de várias áreas da cultura e da vida social do Rio de Janeiro.

Martinho da Vila, compositor, cantor e escritor, expressão da maior manifestação cultural popular: o samba (Fotos: Marco Antônio Rezende e Divulgação)

Considerando a solenidade “um ato político contra as discriminações raciais”, Martinho reconheceu que tem sido uma referência para pessoas de origem humilde como ele. “Entretanto, ninguém precisa me chamar de doutor. Serei sempre o negro Martinho, o cidadão Zé Ferreira, o artista Martinho da Vila, partideiro devagar”, afirmou.

Para o reitor da UFRJ, Roberto Leher, a solenidade representou “um belo dia para a UFRJ”. Ele comemorou o fato de a Universidade ganhar para o quadro de honoris causa um intelectual negro, inspiração para a juventude de classes mais expropriadas, que têm ingressado nas universidades públicas do país.

“É um ato acadêmico importante sob o ponto de vista teórico. Quando a Universidade reconhece a qualidade do trabalho de Martinho da Vila, está fazendo uma crítica a uma perspectiva arcaica e fossilizada de que a alta cultura corresponde a uma visão de mundo eurocêntrica. A cultura popular é alta cultura”, disse Leher.

O reitor da UFRJ mencionou a onda de intolerância religiosa contra religiões de matriz africana no país e classificou como políticos os atos de violência registrados ultimamente. Por sua vez, Martinho disse que deverá honrar a Universidade, que “prima pelo respeito por religiosos de diferentes crenças e, com ações afirmativas, visa a contribuir para a diminuição das desigualdades”. Ele lamentou não ter uma língua materna brasileira para fazer o seu discurso, como países africanos que preservaram seus idiomas, apesar das colonizações.

Carmem Tindó, professora da Faculdade de Letras, relatou que a obra de Martinho da Vila tem sido objeto de diversos trabalhos acadêmicos no mestrado e doutorado. Segundo ela, “a atuação do artista na luta contra o racismo, a opressão, a fome e a pobreza foram fatores considerados para a concessão do título”. Ao falar sobre a biografia do artista, ela citou a atuação do cantor como embaixador da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), sua participação no movimento Diretas Já e a atuação junto a Dom Evaristo Arns em defesa de Nelson Mandela contra o apartheid na África do Sul.

Martinho José Ferreira, da Vila

Por ocasião das comemorações dos 100 ANOS DE SAMBA, ano passado escrevi que a trajetória artística dele deve ser reportada, pelo menos, numa série de reportagens, considerando a qualificada e vasta obra musical e, também, literária, que há décadas nos encanta e que transpassa as fronteiras do país. O reconhecimento pode ser comprovado por inúmeros prêmios e troféus obtidos e que vem colecionando ao longo da carreira. Martinho da Vila é a própria marca registrada do samba.

Martinho José Ferreira nasceu em 12 de fevereiro de 1938, num sábado de Carnaval, no Município de Duas Barras, no Rio de Janeiro, filho de Josué Ferreira e Teresa de Jesus Ferreira, lavradores da Fazenda do Cedro Grande. Naquele ano, em 28 de julho, Virgulino Ferreira, o Lampião, e sua mulher, Maria Bonita, foram mortos a tiros numa emboscada em Angicos, no sertão de Sergipe, denunciados por comerciantes que se fizeram passar por amigos dos cangaceiros. Tiveram as cabeças cortadas para ser exibidas como troféus. Outros dez cangaceiros morreram e cerca de 40 fugiram.

PREMIAÇÕES

Martinho da Vila, doutor em samba

Troféus, prêmios, títulos e produtos de homenagens que Martinho da Vila coleciona estão na Casa de Cultura, em Duas Barras, onde tem uma escultura de bronze dele em tamanho natural na localidade de Mirante Vale Encantado. Lá estão os títulos de Cidadão Carioca, de Jaboatão, de São Borja, de São Paulo e de Santa Maria Madalena. Foi honrado com cidadania da Bahia, do Espírito Santo e de Minas Gerais; e é Cidadão Benemérito do Estado do Rio de Janeiro, condecorado com a Medalha Pedro Ernesto. Recebeu o título honorário de Embaixador Cultural de Angola e Embaixador da Boa Vontade da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa). É membro do Pen Club e da Divine Académie Française des Arts. Letres e Culture, condecorado com medalha de honra. No Brasil foi agraciado com a Ordem do Mérito Cultural do Ministério da Cultura e recebeu as comendas mineiras Tiradentes e JK. É Comendador da República da Ordem do Barão do Rio Branco, em grau de Oficial.

No disco Martinho da Vila e seus amigos, com subtítulo Nem todo criolo é doido, de 1967, ele canta “Pra que dinheiro”, “Deixa serenar”, “Se eu errei” e “Querer é poder”; antecedendo o primeiro disco solo, de 1969, tendo no título seu nome e no repertório “Boa noite”, “Carnaval de ilusões”, “Caramba”, “Quatro séculos de modas e costumes”, “O pequeno burguês”, “Iaiá do cais dourado”, “Casa de bamba”, “Amor pra que nasceu?”, “Quem é do mar não enjoa”, “Brasil mulato”, “Tom maior”, “Pra que dinheiro”, “Parei na sua”, “Nhem, nhem, nhem” e “Grande amor”. A maioria sucesso, “O pequeno burguês”, sinalizou que Martinho chegou para ajudar a consolidar a maior manifestação cultural popular do Brasil: o samba.

“Felicidade passei no vestibular/Mas a faculdade é particular/Particular/Ela é particular/Particular/Ela é particular/Livros tão caros tantas taxas pra pagar/Meu dinheiro muito raro/Alguém teve que emprestar/O meu dinheiro, alguém teve que emprestar/O meu dinheiro, alguém teve que emprestar/Morei no subúrbio, andei de trem atrasado/Do trabalho ia pra aula, sem jantar e bem cansado/Mas lá em casa à meia-noite tinha sempre a me esperar/Um punhado de problemas e criança pra criar/Para criar, só criança pra criar/Para criar, só criança pra criar/Mas felizmente eu consegui me formar/Mas da minha formatura, não cheguei participar/Faltou dinheiro pra beca e também pro meu anel/Nem o diretor careca entregou o meu papel/O meu papel, meu canudo de papel/O meu papel, meu canudo de papel/E depois de muitos anos/Só decepções, desenganos/Dizem que sou um burguês muito privilegiado/Mas burgueses são vocês/Eu não passo de um pobre-coitado/E quem quiser ser como eu/Vai ter é que penar um bocado/Um bom bocado, vai penar um bom bocado”.

A atividade de compositor começou na extinta Escola de Samba Aprendizes da Boca do Mato. Ingressou e passou a dedicar-se à escola do bairro de Noel, em 1965, e à história da Unidos de Vila Isabel se confunde com a de Martinho, que incorporou o da Vila ao nome. Os sambas de enredo mais consagrados da escola são de sua autoria. Também criou vários temas para desfiles, dentre os quais Kizomba, a Festa da Raça, que está entre os mais memoráveis da história dos carnavais e garantiu à Vila Isabel, em 1988, o título de Campeã do Centenário da Abolição da Escravatura. Também colaborou na criação de outros temas, entre os quais o Soy Loco Por Ti América, que deu o título máximo do carnaval de 2006 á escola e é co-autor do enredo e também do samba-enredo A Vila Canta o Brasil, Celeiro do Mundo, campeões de 2013.

No disco posterior ao de 1970, Martinho da Vila emplacou outros sucessos, tendo no repertório “Segure tudo”, “A flor e o samba”, “Camafeu”, “Pode encomendar o seu caixão”, “Dia final”, “Menina moça”, “Seleção de partido alto”, “Pra você felicidade”, “Quem pode, pode”, “O Nosso Olhar” e “Memórias de um sargento de milícias”, título do disco e autoria de Paulinho da Viola.

“Era o tempo do rei/Quando aqui chegou/Um modesto casal feliz pelo recente amor/Leonardo, tornando-se meirinho/Deu a Maria Hortaliça um novo lar/Um pouco de conforto e de carinho/Dessa união nasceu um lindo varão/Que recebeu o mesmo nome do seu pai/Personagem central da história que contamos neste carnaval/Mas um dia Maria/Fez a Leonardo uma ingratidão/Mostrando que não era uma boa companheira/Provocou a separação/Foi assim que o padrinho passou a ser do menino tutor/A quem lhe deu toda dedicação/Sofrendo uma grande desilusão/Outra figura importante em sua vida/Foi a comadre parteira popular/Diziam que benziam de quebranto/A beata mais famosa do lugar/Havia nesse tempo aqui no Rio/Tipos que devemos mencionar/Chico Juca, era mestre em valentia/E por todos se fazia respeitar/O reverendo amante da cigana/Preso pelo Vidigal/O justiceiro/Homem de grande autoridade/Que à frente dos seus granadeiros/Era temido pelo povo da cidade/Luisinha primeiro amor que Leonardo conheceu/E que Dona Maria a outro como esposa concedeu/Somente foi feliz/Quando José Manuel/Morreu/Nosso herói/Novamente se apaixonou/Quando com sua viola/A mulata Vidinha esta singela modinha cantou/Se os meus suspiros pudessem/Aos seus ouvidos chegar/Verias que uma paixão tem o poder de assassinar”.

Martinho da Vila ingressou no Exército em 20 de junho de 1956, onde foi promovido à patente de sargento, exercendo o cargo de datilógrafo e contador no Ministério da Guerra. Serviu ainda no Laboratório Químico e Farmacêutico e na Diretoria Geral de Engenharia e Comunicação. Deu baixa em 1969 e dedicou-se à carreira de cantor e compositor. Casou-se com a também cantora Anália Mendonça, com quem teve três filhos. No final da década de 1960 conheceu Lícia Maria Caniné, a Ruça, sua segunda mulher, com quem teve três filhos. Com a porta-bandeira Rita Freitas teve uma filha. E, no início dos anos 90, casou-se com Clediomar Corrêa Liscano Ferreira, a Cléo, com quem tem dois filhos.

Em 1972 lançou o disco Batuque na cozinha e, ano seguinte, Origens, contendo o samba “Pelo telefone”, de autoria de Ernesto dos Santos e Mauro de Almeida, gravado pela primeira vez em 27/11/1916. Canta, canta, minha gente é de 1974 e Maravilha de cenário do ano seguinte. Rosa do povo em 1976 e, Presente, de 1977, seguido de Tendinha, 1978; Terreiro, sala e salão, 1979; Samba enredo, 1980; Sentimentos, 1981; Verso e reverso, 1982; Novas palavras, 1983; Martinho da Vila Isabel, 1984; Criações e recriações, 1985; Batuqueiro, 1986; Coração de malandro, 1987; Festa da raça, 1988; O canto das lavadeiras, 1989; Martinho da Vila, 1990; Vai meu samba, vai, 1991; No templo da criação, 1992; Escolas de samba enredo, 1993; Ao Rio de Janeiro, 1994; Tá delícia, tá gostoso, 1995; Coisas de Deus, 1997; 3.0 turbinado, 1998; Pai da alegria, 1999; Lusofonia, 2000; Martinho da Vila, da roça e da cidade, 2001; Voz e coração, 2002; Conexões, 2003; Brasilatinidade, 2005; Do Brasil e do mundo, 2007; Poeta da cidade, 2010; Enredo, 2014; além de CDs gravados ao vivo e DVDs.

No disco Rosa do Povo, um clássico, a música “João e José”, nas vozes de Martinho da Vila e João Nogueira:

“Ô João, ô João/Seu chará batizou Cristo/Cristo batizou João/Lá no Rio de Jordão… lá no Rio Jordão/Se João também soubesse/Quando em junho é seu dia/Viria do céu pra Terra/Todo cheio de alegria/Soltando foguetes João/Fazendo festejos/E tanta fogueira/Que queimava o mundo/Diz a lenda/Que queimava o mundo/Por falar em mundo João/Como vai o mundo João/Esse nosso mundo João/Que é de todo mundo João/Anda João, vamos João, diga João/Fala/Não tá mole não, José/Esse mundo louco/A televisão mostra sempre um pouco/Bala de canhão e bomba de troco/Bem pertinho irmão lá do Rio Jordão/Bem pertinho irmão lá do Rio Jordão/Mas a salvação José, é nossa Rosa do Povo/Que dá ao povão/Horizonte novo/Jogo de Barão é Rosa do Povo/O nosso sambão é Rosa do Povo/Esse seu sorriso, José, é Rosa do Povo/O Vasco, o Mengão, é Rosa do Povo/Rosa do violão, é Rosa do Povo/Então que seria João, do povo sem rosa?/É, nem haveria José/Essa nossa prosa/É José, é João, é Drummond, é paixão/É o irmão, é o amor, linda flor/Em botão”.

LITERATURA

Martinho da Vila, no universo de sua militância cultural, se inseriu na literatura. Em 1986 lançou o livro Vamos brincar de política?, pela Editora Globo, com ilustrações da amiga Jacyra Silva, dedicado ao público infanto-juvenil. Depois, em 1992, pela Editora Léo Cristiano, publicou Kizombas, andanças e festanças, no qual conta experiências profissionais e pessoais. Já em 1998, a editora Records, relançou Kizombas, andanças e festanças. E no ano seguinte, pela ZFM Editora, publicou Joana e Joanes – Um romance fluminense, também publicado em Portugal pela Editora Eurobrape.

Em 2001 publicou Ópera Negra, seu quarto livro, pela Editora Global. No ano seguinte lançou pela editora portuguesa Eurobrape o livro de ficção Memórias Póstumas de Tereza de Jesus. O livro foi publicado também no Brasil pela Editora Ciência Moderna. No ano de 2006 lançou Os Lusófonos pela Editora Ciência Moderna. No ano seguinte lançou o livro infantil Vermelho 17 pela ZFM Editora. Em 2008 publicou pela Lazuli Editora o livro A Rosa Vermelha e o Cravo Branco. No ano de 2009 lançou o livro de ficção A Serra do Rola Moça (ZFM Editora) – nome de uma localidade em Minas Gerais e também, nome de um poema de Mário de Andrade, musicado pelo compositor.

Martinho da Vila se candidatou a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, não sendo eleito, em 2010. No ano de 2014 foi eleito para a Academia Carioca de Letras na vaga de Fernando Segismundo, ex-presidente da Associação Brasileira de Imprensa – ABI, obtendo 28 votos dos 38 acadêmicos integrantes.

Ele ganhou biografia no livro Martinho da Vila – Tradição e Renovação, dos escritores João Batista de M. Vargens e André Conforte, com prefácio de Sérgio Cabral, pela Editora Almádena.

Preciso contar que, na minha participação na 42ª edição do Festival de Inverno de Itabira, em Minas Gerais, ministrando palestra sobre a Influência da poesia drummondiana, fiz referência ao trabalho de Martinho da Vila a partir de um poema do poeta e jornalista itabirano, do qual desenvolveu tema enredo para a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, em 1980: Sonho de um sonho. Em 1976, ele lançou o disco Rosa do povo, título de um dos livros de Carlos Drummond de Andrade. Vamos recordar o samba “Sonho de um sonho”.

“Sonhei/Que estava sonhando um sonho sonhado/O sonho de um sonho /Magnetizado/As mentes abertas/Sem bicos calados/Juventude alerta/Os seres alados/Sonho meu/Eu sonhava que sonhava/Sonhei/Que eu era o rei que reinava como um ser comum/Era um por milhares, milhares por um/Como livres raios riscando os espaços/Transando o universo/Limpando os mormaços/Ai de mim/Ai de mim que mal sonhava/Na limpidez do espelho só vi coisas limpas/Como uma lua redonda brilhando nas grimpas/Um sorriso sem fúria, entre réu e juiz/A clemência e a ternura por amor da clausura/A prisão sem tortura, inocência feliz/Ai meu Deus/Falso sonho que eu sonhava/Ai de mim/Eu sonhei que não sonhava/Mas sonhei”.

*Lenin Novaes, jornalista e produtor cultural. É co-autor do livro Cantando para não enlouquecer, biografia da cantora Elza Soares, com José Louzeiro. Criou e promoveu o concurso nacional de Poesia para jornalistas, em homenagem ao poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade. É um dos coordenadores do Festival de Choro do Rio, realizado pelo Museu da Imagem e do Som – MIS. É Assessor de Imprensa do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

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