Sônia Braga, Manoel Lobato, O advogado, e a tinta preta (Cuidado contém spoiler do ótimo filme Aquarius, mas não tira a força e beleza do filme)
Marcelo Procopio*
(Atenção, o spoiler – aquilo ou aquele que conta a história de um filme, por exemplo, para quem não viu, no caso o premiadíssimo Aquarius – está logo no parágrafo abaixo, se não quiser saber, não leia)
Por mais que sejam coisas distintas: cinema e literatura (mas tudo é arte e cultura), no final de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, a personagem de Sonia Braga joga ninhos de cupins sobre a mesa da empreiteira que quer levantar torres onde fica o pequeno e singelo prédio e mora há décadas. Foram colocados propositalmente pelos especuladores selvagens, e os bichinhos danados já devoram os apartamentos vazios e logo invadirão o dela,o de Clara, uma jornalista e crítica de música já aposentada, único ainda habitado, por ela não abrir mão de seus direitos de morar onde tem afeto. Foi aí que me lembrei de Manoel Lobato.
— Manoel Lobato é um escritor mineiro, da velha, boêmia e acabada Lagoinha, bairro abandonado pela Prefeitura, apesar das promessas de revitalização tipo Lapa/Rio. Projetos e até inauguração de maquete com festa no Salão principal da sede da PBH aconteceram.
Ele era também farmacêutico e tinha uma pequena drogaria e farmácia de manipulação na Lagoinha.
Conheci ele, fiz algumas entrevistas para o Estado de Minas, onde cobria cultura, educação, saúde, comportamento e, pasmem, publicidade, no caderno Fim de Semana. Tenho dele, era de meu pai, Garrucha 44, que levei para autógrafo (li outros). Gosto.
E a ligação de Aquarius com Manoel Lobato? Durante os primeiros anos do jornal O Tempo, ele escrevia crônica semanal no Magazine. Uma delas conta a história de um advogado negro que morava na Sagrada Família, bairro onde, acho, depois de aposentado da farmácia, o escritor também foi morar.
O advogado teve o apartamento onde morava pedido na Justiça – sem justa causa (chamava-se “denúncia vazia”, mas era racismo mesmo) – pelo proprietário, que exigiu o que estava no contrato. Que ele entregasse o imóvel perfeito como quando entrou na primeira vez, poucos meses antes.
Como ele achava que estava tudo em ordem: nenhum arranhão nas paredes, nem descascados: tudo perfeito como quando ele entrou na primeira vez, tomou uma decisão radical.
Chamou um grupo de pintores e mandou pintar tudo, absolutamente tudo, de preto, paredes, tetos, chão, janelas, portas e o que mais tivesse.
Ficou perfeito. Entregou as chaves na portaria, já tinha se mudado algumas semanas antes. O dono ligou, gritou, protestou, entrou com ação em juízo. Mas de nada adiantou. O apartamento estava todo pintado de novo, justamente como o dono havia exigido. Sem especificar cores.
E quem falou que não pode ficar bonito? Né.
— Ah, olha, se você não assistir Aquarius, ou assistir de novo, de novo, de novo, vai acabar morrendo com a boca cheia de formiga (ou de cupim), como dizia Simonal para quem não tinha swing.
Ia assistir o Aquarius, passou na RBC, mas naquela noite a chicungunha bateu forte e fui dormir.
Perdi, eu sei, fica para outra…
Assista, não é um filme excepcional, é muito bom.
Uma boa história, atual, que ocorre em toda cidade grande ou não.
E como fazem muito bem os cineastas pernambucanos, o filme, além da história central, contextualiza com a realidade políica-social-econômica brasileira.