Sindemia global: Covid atinge os mais pobres e frágeis

Pela primeira vez na história da humanidade, a pandemia se tornou uma sindemia global

IHU

Por Giulia Belardelli*

As imagens devastadoras vindas da Índia – maior produtora mundial de vacinas, obrigada a queimar na rua as vítimas de Covid – são o último lembrete de como a ausência de uma visão global na luta contra a pandemia pode nos fazer cair cada vez mais para baixo.

O sucesso das vacinas – desenvolvidas em tempo recorde graças a uma enorme aplicação de fundos públicos – não está se traduzindo em uma expansão da produção e distribuição de frascos em todo o mundo.

Há meses, especialistas, ganhadores do Nobel, ex-chefes de Estado e de governo, e agora também líderes religiosos, vêm clamando por uma suspensão temporária das patentes das vacinas acompanhada pelo compartilhamento de know-how e tecnologias aptas a suprir a falta de vacinação entre o Norte e Sul do mundo.

Mas seus pedidos foram sempre ignorados ou rejeitados com a tese de que uma quebra,mesmo que temporária dos monopólios das grandes empresas farmacêuticas, impediria futuras descobertas.

Para Aldo Morrone, diretor científico do Instituto San Gallicano de Roma, o caso indiano torna ainda mais urgente “uma moratória temporária nas patentes das vacinas por um motivo muito simples: agora precisamos salvar o planeta. É necessário produzir o maior número de vacinas em nível mundial para vacinar o maior número de pessoas possível”.

O Professor Morrone acaba de dedicar uma conferência virtual ao tema “Covid-19 entre o Norte e o Sul do mundo”, com a participação de dezenas de especialistas internacionais. Para muitos deles, é hora de enfrentar o desafio da Covid não mais como uma pandemia, mas como uma sindemia, um conceito introduzido na década de 1990 pelo antropólogo médico estadunidense Merrill Singer.

É Morrone quem nos orienta no significado deste termo aplicado ao Covid. “Singer falou em sindemia referindo-se principalmente à relação entre patologias correlacionadas a uma infecção. Em um sentido mais amplo, sindemia é a relação que existe entre uma pandemia e as condições ambientais, socioeconômicas, políticas, o nível de educação, o nível de empobrecimento, o aquecimento global, o problema econômico da perda de empregos. Todos os elementos relacionados a uma epidemia de natureza global são levados em consideração. Uma abordagem sindêmica leva em consideração as repercussões da pandemia em todas as outras áreas: se a pandemia requer uma solução de natureza clínico-científica, a sindemia precisa de uma solução econômica e política muito mais ampla”.

Pela primeira vez na história da humanidade – afirma Morrone e seus colegas – a pandemia se tornou uma sindemia global. Mas a multiplicação de problemas não correspondeu a uma ampliação da visão global. Ou o que é definido como “abordagem sindêmica”, de onde a necessidade de uma moratória temporária das patentes é parte integrante.

“A esta altura já deveríamos ter percebido que ninguém consegue encontrar uma solução para a pandemia como se fosse uma ilha”, continua o infectologista que há quarenta anos trabalha com as camadas mais frágeis da população na Itália e no exterior.

“Agora ficou evidente que este vírus não é democrático: é exatamente o oposto da poesia La livella de Totò porque atingiu as camadas mais indefesas e frágeis de nossas sociedades. A ideia de que a Índia não poderia ser atacada pelo vírus era infantil, e o mesmo vale para a África”.

As palavras de Modi em Davos – o orgulho de uma Índia que havia se salvado do “tsunami” da pandemia – foram uma resposta política que não levou em conta a realidade do país, que é de fato o maior produtor mundial de medicamentos e vacinas, mas tem um sistema de saúde frágil e pouca capacidade de organização e distribuição de medicamentos.

“Passei muito tempo na Índia, inclusive em áreas rurais muito remotas, e tenho lembranças muito dolorosas”, disse Morrone. “Quando morriam os pacientes mais pobres, havia o problema de cremar os cadáveres, já que ninguém comprava lenha para eles. Era o próprio hospital que tinha de comprar um pouco, mas faziam as piras com o mínimo indispensável. O resultado é que ficavam pedaços de cadáveres na rua porque os corpos não chegavam a queimar o suficiente…. Vamos tentar imaginar a gravidade da situação hoje, com piras improvisadas nas ruas como a única solução para evitar uma catástrofe higiênico-sanitária ainda pior”.

Da Índia ao Brasil, das valas comuns no Bronx aos caixões retirados de Bérgamo, ao colapso das cremações em Roma, estamos vindo de um ano em que a experiência coletiva da morte não foi suficiente para nos fazer considerar a sindemia de Covid-19 como um evento tão extraordinário que requer uma abordagem igualmente extraordinária.

Segundo o diretor do San Gallicano, não há outra maneira que “impor uma suspensão temporária das patentes em nível internacional, como já aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando ocorreu a iniciativa da penicilina.

A penicilina se revelou naquele período como a única terapia realmente eficaz contra muitas doenças, então houve algum tipo de acordo nos Estados Unidos entre as várias indústrias para suspender as patentes e garantir o aumento da produção o máximo possível.

“Os descobridores – Alexander Fleming, Ernst Boris Chain – foram para os Estados Unidos porque precisavam de financiadores para produzir. Foi um acordo fundamental: toda a história do pós-guerra é uma história de doenças dramáticas, como a sífilis, vencidas graças à penicilina. Precisamos de um esforço desse tipo”.

A iniciativa Covax, criada para distribuir cerca de 2 bilhões de doses até o final deste ano para os países empobrecidos, está encontrando dificuldades e rigidez que denotam a fragilidade da Organização Mundial da Saúde.

“A OMS – continua Morrone – não é mais aquela dos anos 1980, sustentada por uma visão da saúde como bem comum; seus financiamentos são determinados por grandes corporações e lobbies influentes. A OMS deveria ter sido capaz de financiar pelo menos as infraestruturas nos países mais pobres, mas não o fez e o resultado é que perdemos tempo em uma corrida onde o tempo é tudo. Temos que ganhar tempo: quanto menos o vírus se replicar, menos pode criar novas variantes mais perigosas, as chamadas ‘vaccine escape’, capazes de contornar ou reduzir a proteção das vacinas”.

As vacinas hoje são nossa arma de primeiro socorro, como a penicilina para os soldados que morriam de infecções. “É claro – continua o infectólogo – que precisamos produzir vacinas suficientes para cobrir as necessidades da população mundial, mas sobretudo daqueles que correm maior risco de morrer”.

Morrone, portanto, desmonta as teses daqueles que se opõem à moratória de patentes, citando argumentos como a complexidade das vacinas (em particular aquelas com base em mRna) e o risco de abrir um precedente prejudicial para futuras descobertas.

Argumentam que as empresas farmacêuticas poderiam se tornar mais relutantes em fazer grandes investimentos no desenvolvimento de novas vacinas ou medicamentos, pois as incertezas ligadas às fases de desenvolvimento e testes se somariam às do risco de suspensão da patente.

“No caso das vacinas anti-Covid – replica o especialista – houve a disponibilização de recursos públicos para pesquisas científicas das empresas farmacêuticas, e é claro que até o risco da empresa, nesse caso, acabou sendo menor”.

Quanto ao primeiro ponto, argumentar que as vacinas de mRna são complexas demais para serem compartilhadas significaria negar o aspecto mais positivo da pesquisa científica, ou seja, seu caráter democrático, comenta Morrone.

Ele dá o exemplo da poliomielite. Albert Bruce Sabin (virologista polonês naturalizado estadunidense, famoso por desenvolver a vacina contra a poliomielite mais popular) foi duramente atacado porque sua recusa em patentear a vacina permitiu que os países além da Cortina de Ferro produzissem e administrassem vacinas em massa.

“Precisamos que esse tipo de lógica se repita, em um mundo cada vez mais interconectado: temos que salvar o que pode ser salvo. Devemos ganhar tempo porque nunca vacinaremos 7 bilhões de habitantes. Porém, se vacinarmos o maior número possível de pessoas e conseguirmos ganhar tempo, é possível que esse vírus se torne endêmico. O ideal seria chegar a uma forma de vírus endêmico contra o qual vacinar periodicamente, especialmente os grupos de maior risco e mais vulneráveis”.

E é aqui que o conceito de sindemia retorna, uma visão em torno da qual convergem líderes religiosos e especialistas em políticas sanitárias. “A solução para uma doença infecciosa é a terapia; a solução de uma sindemia deve vir da medicina, da ciência, mas também da política e da economia”, argumenta Morrone, que na semana passada participou da vacinação das pessoas mais pobres no Vaticano, na Sala Paulo VI.

Alguns ainda acreditam que o apartheid possa ser uma estratégia para se salvar do vírus (Reino Unido, Israel); outros usaram vacinas como instrumento de hegemonia geopolítica (China, Rússia); outros ainda levaram meses para ‘liberar’ doses da AstraZeneca que eram inúteis internamente, mas muito preciosas em outros países (Estados Unidos).

Ninguém – muito menos a União Europeia – pediu uma reunião nas Nações Unidas, uma assembleia especial e permanente da OMS. A palavra foi dada a uma série de especialistas, “mas nós especialistas muitas vezes tendemos a olhar mais para o nosso umbigo do que para o mundo”.

As imagens daqueles cadáveres que queimam – ou que não conseguem queimar – nos dizem que nunca será tarde demais para exigir uma resposta corajosa a um drama global.

*Reportagem publicada originalmente por Huffington Post, 27-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

(EcoDebate, 29/04/2021) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.

[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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