Semana Drummondiana e Flitabira reafirmam em Itabira a força atual da obra de Carlos Drummond de Andrade

Dolores e Drummond, no Rio, 19 de fevereiro de 1981

Foto: Altamir Barros/
Acervo: O Cometa

A Semana Drummondiana e o 5º Flitabira colocam em diálogo o poeta atento ao tempo presente e a literatura como instrumento de memória, crítica e resistência

A partir desta segunda-feira (20), estendendo-se até 31 de outubro, data de nascimento de Carlos Drummond de Andrade em 1902, Itabira realiza a 24ª Semana Drummondiana, com o tema De tudo fica um pouco.

A escolha do verso, retirado do poema Resíduo, não é apenas uma homenagem poética: é também uma leitura crítica do presente. O título do poema ecoa, e faz lembrar, o nome da Operação Rejeito, da  Corregedoria Pública da União em conjunto com a Polícia Federal, que investiga irregularidades e falcatruas cometidas por mineradoras na Serra do Curral.

A conexão entre poesia e realidade é muito presente na obra de Drummond. Ainda na década de 1980, o poeta já denunciava a destruição da Serra do Curral no poema Triste Horizonte. Em versos escritos em 1976, o poeta expressava preocupação com os rumos de Belo Horizonte, que, assim como Itabira, assistiu passivamente ao avanço da mineração, em plena ditadura militar, com a instalação da MBR, depois vendida à Vale, na encosta da serra.

Drummond, sempre atento ao tempo presente, anteviu o que viria: a descaracterização de um dos cartões-postais da capital mineira, hoje dividido entre o avanço imobiliário e a exploração mineral.

“Cassetetes e revólveres me barram a subida que era alegria dominical de minha gente. Proibido escalar. Proibido sentir o ar de liberdade destes cimos, proibido viver a selvagem intimidade destas pedras que se vão desfazendo em forma de dinheiro.”

O trecho do poema Triste Horizonte é mais do que denúncia: é testemunho. E é nesse espírito que a Semana Drummondiana se realiza, reafirmando a atualidade de uma obra que nunca se ausentou do debate público – e que teve continuidade em muitos outros poemas, como em O Maior Trem do Mundo e Lira Itabirana (“O rio, é Doce. A Vale? Amarga. Ai antes fosse mais leve a carga”).

Semana Drummondiana: origem e programação
Arte: Divulgação/FCCDA

Diferentemente do que informa a Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade, a Semana Drummondiana não teve início em 1998. Sua origem remonta ao início dos anos 1980, por iniciativa das professoras Ana e Graça Lima, juntamente com Ângela “Danja” Sampaio Rosa, do curso de Letras da extinta Faculdade de Ciências Humanas de Itabira (Fachi), que funcionava na Fide.

Foi ali, com apoio da comunidade acadêmica, que o evento teve início, ganhando forma e conteúdo, trazendo escritores como Orígenes Lessa. Oswaldo França Júnior, para encontros com o público-leitor. Só anos mais tarde, a iniciativa foi incorporada à programação oficial da Prefeitura, hoje sob responsabilidade da FCCDA.

A programação da presente edição da Semana Drummondiana inclui oficinas literárias e artísticas em escolas municipais, na Biblioteca Pública, na Casa de Drummond, no Lar de Ozanam, na APAE e na APAC, além de lançamentos de livros, palestras, exibição de filmes, teatro, mesas de debate, intervenções urbanas, rodas de conversa e shows.

A proposta é promover o encontro entre tradição e novas expressões da palavra, fortalecendo a formação de leitores e criadores.

“Mais do que uma homenagem, a Semana Drummondiana é um convite para revisitar Drummond, deixar-se atravessar por sua poesia e perceber que, entre versos e gestos, de tudo realmente fica um pouco”, afirma a FCCDA.

Flitabira 2025: Drummond e Verissimo homenageados
Divulgação/Flitabira

Entre os dias 30 de outubro e 3 de novembro, Itabira sedia o 5.º Festival Literário Internacional de Itabira, o Flitabira. O tema desta edição, Literatura, Encruzilhada e a Rosa do Povo, parte da obra mais politizada de Drummond, publicada em 1945, para discutir os dilemas contemporâneos e reafirmar a literatura como espaço de memória, resistência e imaginação crítica.

Ao completar 80 anos, A Rosa do Povo é o eixo temático do festival. Escrita no contexto da Segunda Guerra Mundial, a obra marca o deslocamento de Drummond do intimismo para o coletivo, assumindo a voz do povo diante das ruínas do tempo. O livro inspira o Flitabira a pensar a literatura como ferramenta de enfrentamento das crises ambientais, das ameaças democráticas e das desigualdades sociais.

O festival também celebra os 120 anos de nascimento de Érico Verissimo, autor de O tempo e o vento e Olhai os lírios do campo. Patrono da edição, Verissimo será homenageado com o ciclo de debates virtuais Érico Verissimo: 120 anos, que será realizado em parceria com o Sesc SP. Participam do ciclo escritores, artistas e estudiosos como Jeferson Tenório, Luiz Ruffato, Paulo Scott, Itamar Vieira Junior, Letícia Wierzchowski, Thiago Lacerda e Fernanda Verissimo.

Homenagens e programação

Além de Drummond e Verissimo, o Flitabira homenageia quatro nomes centrais da literatura brasileira contemporânea: Conceição Evaristo, Ignácio de Loyola Brandão, Milton Hatoum e Ana Maria Machado. A programação inclui mesas de debate, rodas de conversa, sessões de autógrafos, oficinas, atrações infantis e juvenis, exposição, música e uma grande livraria.

O festival também realiza o Flitabira da Gente, com estandes de artesanato, gastronomia e produtos culturais de empreendedores locais, e o Prêmio de Redação e Desenho, voltado para estudantes de 4 a 18 anos. Os vencedores serão anunciados em 1.º de novembro.

Dona Rosinha

Divulgação/Flitabira

Um dos destaques da programação é o lançamento do livro Memórias do Meu Quilombo (Editora Pallas), de Dona Rosinha, liderança quilombola do Morro Santo Antônio, em Itabira.

O evento acontece no dia 30 de outubro, às 19h, com participação de Fabiano Piúba, secretário do Ministério da Cultura, e Conceição Evaristo, autora do prefácio, com mediação de Marcelino Freire.

A obra reúne 16 capítulos de lembranças atravessadas por afetos, racismo, beleza e resistência, transformando a experiência individual em testemunho coletivo.

Fica um pouco

É assim que tudo se conecta na memória do tempo. E permanece, mesmo diante das realidades líquidas que se dispersam nas nuvens digitais. Ficam os resíduos da mineração, da história, da palavra.

“E de tudo fica um pouco. Oh abre os vidros de loção e abafa o insuportável mau cheiro da memória”, escreveu Drummond.

Em tempos de urgência ambiental, apagamentos históricos e disputas por narrativas, Itabira responde com poesia, escuta, presença e resistência. Ficam os gestos, os versos, os vestígios em busca dos tempos perdidos. Fica Drummond, sempre eterno.

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