Saudades do boteco

Fotos: Eduardo Cruz
Rafael Jasovich*

Dentre as saudades e faltas que estou sentindo nesta quarentena, destaca-se, entre outras importâncias, um boteco.  Boteco raiz, copo sujo, e não estou me referindo a esses pubs, lugares metidos a bestas em que se paga quinze reais um copo de chope e tem que se ir com vestido casual, isso é, com roupas que pagamos mais caro para transmitir simplicidade.

O pessoal frequenta os pubs na esperança de, mesmo veladamente, conseguir algum flerte. Hábito legítimo, porém caro.

“Frequentar botecos populares é uma experiência social. Vou além, muito mais uma atitude antropológica do que necessariamente etílica”, escreve Jasovich. No destaque, antigo bar Palô, no bairro Pará (Fotos: Eduardo Cruz)

Mas dizia, eu sinto falta é dos botecos mesmo, desses que servem cachaça a cinco reais. A roupa que se vai aos botecos é a roupa que se tá, seja a de missa ou o uniforme engraxado da firma, bermuda e chinelos.

Nos botecos se come com preço justo e descrição honesta no inexistente cardápio. Pastel acompanha ketchup e mostarda de sachê. Ou, como é mais do meu agrado, torresmo, moela de frango e pão francês de ontem à tarde. De lamber os beiços já molhados de aguardente. Manda mais uma.

Frequentar botecos populares é uma experiência social. Vou além, muito mais uma atitude antropológica do que necessariamente etílica.

Autêntico copo sujo onde se toma uma “branquinha” a preço justo e leva de brinde o torresminho

Vai-se antes pela aglomeração, pra usar termo em voga, do que pela cerveja  sempre gelada. O homem gosta de conviver, ao contrário do que esta pandemia está nos obrigando a não fazer.

É uma experiência porque nos bares simples de bairro o pessoal não se veste de máscaras (outra palavra em muito uso) sociais como nos shoppings ou mesmo nos pubs. Claro, ninguém quer se mostrar como realmente é com seus supostos defeitos e ditos fracassos, num flerte.

Nos bares, por sua vez, em que não há paquera, o sujeito já chega contando derrota, dos cornos levados há pouco ou do salário insuficiente.

Nos pubs, tenta se aparentar ser de uma classe social pelo menos imediatamente superior a que se realmente é. E os caras aumentam em dois terços a quantidade de mulheres com que já saíram.

Definitivamente, os pubs são uma representação estética da nossa patética classe média, que tenta ser o que não é. Que se enxerga como um pub, mas tá mais perto do Bar do Zé, que faz uma caipirinha no capricho. Coloque mais limão, Zé, que afasta a gripe.

O Ministério da Educação (temos ministro, ou já trocou de novo?) devia colocar como disciplina obrigatória nas ciências sociais e humanas um semestre de frequência a bares.

Autêntica venda, boteco, mercearia onde se tem de tudo um pouco

É bem verdade que informalmente e na prática essa frequência se estende do calourismo ao doutorado, mas os acadêmicos vão lá pra reclamar da dificuldade da disciplina e pra planejar uma revolução armada. Reprovam na citada cadeira e não fazem revolução coisa nenhuma.

Defendo que, ao invés da balbúrdia dos campi, pelo menos no tempo de uma cadeira optativa, os acadêmicos de Sociologia, Psicologia, Direito, entre outros, frequentem os bares.

Ouçam histórias de vida. De reais dificuldades. Façam anotações. Ao final, emitiriam volumoso relatório da experiência. Dos chifres à condição social desfavorecida. Seria agregador pra ciência, apesar de ela estar tão desmerecida por alguns.

Disciplinado no meu isolamento social, sigo em casa. Saio pro mercado e para pagar contas. Trabalhando (parece que mais do que antes) em home office (por que usamos tanto estrangeirismos? Síndrome colonialista?).

Pretendo assim ficar até segunda ordem. Não vou furar a quarentena. Mas, se irresponsavelmente fosse, seria pra tomar uma pura com limão. Tem moela?

*Rafael Jasovich é jornalista e advogado, membro da Anistia Internacional

 

 

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4 Comentários

  1. Rafaelquerido, muito bom o seu artigo. Certa circunstância me retirou dos botecos, hoje frequento a periferia dos botecos, o meio fio do outro lado da rua. O boteco Virgem Maria, do falecido seu Américo, aqui na Benjamin Constant ganhou nome novo e um cartaz em três idiomas: selviservi + a lá carte + verbos em brasileiro. A ausência do butequim pra os pubis connseguiu ficar essa coisa cafona, sem ética-estética de nao falar a própria língua, embora não lêem Shakespeare em inglês. O Brasil perdeu a espinha dorsal…

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