Por quê um Dia da Consciência Negra?
Maura Silveira Gonçalves de Britto*
Nesta quarta-feira (20), comemora-se no Brasil o “Dia da Consciência Negra”. Mas muita gente ainda questiona o porquê dessa data. A vivência dos negros na história do Brasil começou pela violência. Violência do sequestro de seu corpo; da separação de família; do abandono de sua terra natal; de uma travessia oceânica em navios negreiros que mais pareciam as masmorras medievais; violência da sua nova condição de “coisa”. No processo do comércio transatlântico de escravos, que alimentou a colônia portuguesa na América por mais 300 anos, dos negros foi retirada – à força – a humanidade.
Muitos argumentam que a cobrança de reparação feita hoje pelos descendentes de africanos escravizados no Brasil colonial não se justifica, uma vez que entre as tribos africanas a escravidão também existia. A escravidão existia na África como existiu em Grécia e Roma: escravizava-se os prisioneiros de guerra.
Em nenhuma dessas sociedades, as características fenotípicas ou genéticas de um povo foram usadas como argumento para a sua escravização. Essa grande novidade foi inserida pelos comerciantes europeus que compravam os prisioneiros de guerra dos chefes africanos e os levavam à América. É por isso que o escravismo colonial é definido como “escravidão moderna”, diferenciando-se do tipo de prática que era comum nas civilizações da Antiguidade e entre as tribos africanas.
No século XIX, as teorias antropológicas e científicas corroboravam essa suposta superioridade do branco sobre o negro com argumentos “biológicos”. À medida que as críticas à manutenção do escravismo no Brasil aumentavam, o governo brasileiro buscava “amenizar” os efeitos da miscigenação a partir de uma política eugenista de branqueamento, estimulando cada vez mais a entrada massiva de imigrantes europeus no país.
Isso se fez no mesmo período em que a manutenção da escravidão se tornava cada vez mais insustentável. Assim, o imigrante veio ao Brasil para substituir o negro na lavoura e na composição genética da população. Para isso, teve sua viagem paga pelo governo (ainda que assumisse uma dívida por isso) e recebeu terras do Estado para iniciar a vida em terras brasileiras. Ao mesmo tempo, a Lei de Terras, de 1850,definia que o acesso a terras seria somente por meio de compra.
O 13 de maio de 1888 marca a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, abolindo a escravidão no Brasil. A proposta de um “Dia da Consciência Negra” em separado da data da abolição visa reforçar o passado de resistência e luta da população negra por sua libertação. A liberdade não foi uma dádiva da Princesa, mas resultado de muita luta por todos esses séculos de subjugação de um povo. Por isso, a escolha da data da morte de Zumbi dos Palmares, um dos símbolos da resistência negra.
A Lei Áurea, porém, não veio acompanhada da inserção do negro na sociedade brasileira da época. Não foi dada a essa população possibilidades de ingresso em escola, de profissionalização, de construção de seu lugar social. E o lugar do negro passou a ser a rua, vendendo produtos, fazendo apresentações artísticas, jogando capoeira. E veio então a “Lei da Vadiagem”, que enquadrava como crime todas as atividades praticadas pelos negros nas ruas.
Assim, o “lugar social” do negro passou a ser a cadeia. Do homem negro, porque a mulher negra continuou servindo a sinhazinha branca. O fato é que trezentos anos de escravidão impostos à população negra no Brasil determinam a condição social dessa população ainda hoje. Em sua maioria, sem acesso a bens, a cultura, a lazer, o que dificulta suas possibilidades de ascensão, abarrotados nas periferias das grandes e pequenas cidades.
A escravidão foi institucional, foi uma política de Estado. E a criação de políticas públicas que tentem reverter esse quadro é mais que uma questão de justiça. É ético. É uma obrigação da qual o Estado brasileiro não pode mais fugir. E cada vez que alguém ainda questiona sobre o porquê de um dia para a consciência negra, temos a certeza, não só da importância desse dia, como da necessidade de que essa discussão seja feita em todos os dias do ano.
* Maura Britto é itabirana, professora na educação pública e é Doutoranda em História pela Universidade Federal de Ouro Preto.
Foto: Flavio Damm. Praça de São Francisco 1954, Largo do Coimbra, lado de cima da Igreja, Ouro Preto MG.
(Aviso sobre a escolha da foto: contém ironia. Vamos ver de o pessoal da “consciência humana” entende!)