Poesia, exílio e escrevivência: Milton Hatoum e Conceição Evaristo dialogam sobre ancestralidade e a força da palavra no festival literário de Itabira

Fotos: Carlos Cruz

Com mediação de Jeferson Tenório, a mesa “Entre a margem e o centro” reuniu dois dos maiores nomes da literatura brasileira em uma conversa marcada por memória, deslocamento e lirismo

Na noite de sexta-feira (1), o teatro da Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade recebeu mais uma mesa marcante do 5º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira), tanto pela densidade dos temas quanto pela presença de autores expoentes da literatura brasileira contemporânea.

Com o tema Entre a margem e o centro: escritas de identidade e deslocamento, o encontro reuniu os autores homenageados Milton Hatoum e Conceição Evaristo, com mediação do escritor Jeferson Tenório, em uma conversa marcada por afeto, poesia e reflexão sobre os caminhos da literatura brasileira.

“Estou ao lado de dois amigos, de duas pessoas que eu gosto muito, que são uma espécie de farol”, disse Tenório ao abrir a mesa.

O mediador iniciou o diálogo lendo o poema Da calma e do silêncio, de Conceição Evaristo, que inspirou o tema da 36ª Bienal de São Paulo: Nem todo viandante anda estradas. A mostra ocorre de 6 de setembro de 2025 a 11 de janeiro de 2026, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, com entrada gratuita.

A partir daí, a conversa se desenrolou sobre como a poesia atravessa a obra dos dois autores — seja como matéria da linguagem, seja como memória ancestral.

Escrevivência e o espelho de Oxum

Conceição Evaristo, autora de Olhos d’água, Insubmissas lágrimas de mulheres e criadora do conceito de “escrevivência”, falou sobre a presença das águas em sua obra.

“As águas sempre nos atravessaram. Se para o europeu o mar foi conquista, para os povos africanos foi sujeição”, afirmou. Ela explicou que a escrevivência nasceu da prática, antes de se tornar conceito, e que pensar essa escrita é também pensar as águas reprimidas do passado.

Inspirada pela professora Aparecida Salgueiro (UERJ), Conceição relacionou a escrevivência ao Espelho de Oxum, em contraponto ao espelho narcísico. “O nosso rosto negro não cabe no espelho de Narciso. O espelho de Oxum vira arma de guerra. Ela contempla sua imagem, mas também vê o inimigo que vem atrás.”

A autora compartilhou que, aos 70 anos, realizou uma cerimônia às margens do Rio Oxum, na Nigéria, como forma de firmar sua ancestralidade. “Se não fosse a ficção, se não fosse essa possibilidade de pensar novas águas, a gente não sobreviveria.”

Público acompanha com atenção e interesse a mesa com Milton Hatoum, Conceição Evaristo e mediação de Jeferson Tenório, na noite de sexta-feira (1), no teatro da Fundação Cultural Carlos, no 5º Flitabira

A poesia como frustração e força

Milton Hatoum, autor de Dois Irmãos, Relato de um certo Oriente e da trilogia encerrada com Dança de Enganos, revelou sua trajetória como “poeta frustrado”.

“Ganhei um prêmio aos 16 anos, publiquei um livrinho, mas descobri que não adianta querer ser poeta. Ou você é, ou não é.” Ainda assim, ele reconhece que a poesia permeia sua prosa. “Há momentos de alta voltagem da ficção em que a prosa é inseparável da poesia.”

Hatoum compartilhou o processo de criação da trilogia, inspirada por memórias pessoais e relatos de amigos que viveram o exílio e a repressão durante a ditadura militar. “O lugar sombrio é também o coração e a alma. Cada personagem tem seu destino, e às vezes são destinos muito divergentes.”

Ele citou autores como Luandino Vieira, Mahmoud Darwish e Elias Khoury como referências literárias que o ajudaram a refletir sobre deslocamento, apagamento e resistência.

Literatura como denúncia e sobrevivência

A mesa também abordou temas como genocídio, violência obstétrica e a interdição da dignidade de corpos negros e periféricos. Conceição Evaristo denunciou a persistência da violência histórica. “Cada corpo caído já foi morto pela falta de perspectiva de vida.”

Ela citou pesquisas da Fundação Oswaldo Cruz que mostram que mulheres negras recebem menos anestesia no parto, por uma crença racista de que não sentem dor. “São sujeitos com a dignidade machucada desde a nascença”, ressaltou.

Jeferson Tenório destacou que o exílio não é apenas geográfico, mas também social e simbólico. “Algumas coletividades vivem um exílio diferenciado dentro do próprio país.”

A mesa encerrou com indicações de leitura que ajudam a compreender os conflitos contemporâneos, como Memória para o Esquecimento, de Mahmoud Darwish, Meu Nome é Adão, de Elias Khoury, O Genocídio do Negro Brasileiro, de Abdias Nascimento, e A Dívida é Impagável, de Denise Ferreira da Silva.

Encerramento
O 5º Flitabira encerrou sua programação no domingo (2), após cinco dias de intensa atividade literária

A agenda de domingo (2) contou com mesas dedicadas à literatura infantojuvenil, oficinas de escrita e ilustração, apresentações musicais, sessões de autógrafos e uma celebração coletiva da palavra como ferramenta de transformação.

O festival reafirmou seu papel como espaço de escuta, formação e resistência, especialmente em tempos marcados pelo avanço de forças obscurantistas e negacionistas — como o massacre no Rio de Janeiro, citado em quase todas mesas.

Mais do que um evento literário, o Flitabira movimentou a cidade com temas que pautam o futuro da humanidade: justiça social, memória, identidade, meio ambiente e diversidade.

Ao reunir vozes como Conceição Evaristo, Milton Hatoum e Jeferson Tenório, o festival reafirma sua relevância no calendário cultural brasileiro e sua aposta na literatura como farol em tempos de escuridão.

Para assistir a transmissão da programação do 5º Festival Literário Internacional de Itabira (Flitabira), clique aqui.

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