Passado de centros de tortura da ditadura militar cai no esquecimento
Foto: Gsé Silva/ Agência Pública
Após 60 anos do golpe militar, poucos espaços de memória foram institucionalizados e história de violações passa batida
Por Ludmilla Pizarro
Edição: Ed Wanderley
Agência Pública – Quem passa pela avenida Tiradentes, 441, na região da Luz, no centro de São Paulo, atravessa um arco de pedra para chegar a uma agência do Banco do Brasil.
Nada sinaliza que a estrutura é o que resta do presídio Tiradentes, que, até 1972, encarcerava homens e mulheres opositores à ditadura militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. Nada menos que uma dessas pessoas é a ex-presidente da República Dilma Rousseff.
Da mesma forma, os belo-horizontinos que passeiam nas proximidades da praça da Liberdade raramente identificam um belo casarão de 1912, na rua Santa Rita Durão, como a “Casa Amarela”, local temido por militantes que lutavam pela volta da democracia.
Nesta casa, presos políticos eram espancados no auge da repressão. Atualmente, nela funciona a Associação Feminina de Assistência Social e Cultura (Afas), uma organização beneficente que presta assistência às famílias de policiais militares e do Corpo de Bombeiros.
Esses são apenas dois exemplos de 233 locais que serviram ao regime militar para torturar e violar gravemente os direitos humanos, levantados pela professora de história da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Heloísa Starling.
Ela participou da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada em 2012 pelo governo federal para apurar os crimes cometidos pelo Estado brasileiro no período ditatorial. Os relatórios da CNV foram apresentados à sociedade no fim de 2014.
No período em que o país foi regido pelos militares, sem eleições diretas e sem garantias políticas, ocorreram oficialmente 434 mortes e desaparecimentos de opositores do regime, segundo a CNV. Há indícios de que o número real seja muito superior – apenas no campo, o quantitativo deve passar dos 1.600.
Já o número de pessoas torturadas durante a ditadura militar, segundo estudo divulgado pela Human Rights Watch em 2019, teria sido superior a 20 mil.
Muitas dessas pessoas passaram por pelo menos um dos endereços apresentados no levantamento. Eles estão distribuídos em 21 Estados brasileiros e no Distrito Federal e incluem sete navios-prisão e 17 casas clandestinas organizadas sem aparato do Estado, mas serviam aos mesmos propósitos.
A maior parte desses lugares de violação dos direitos humanos, no entanto, não apresenta qualquer sinalização sobre o uso abusivo feito pelo regime militar, e alguns estão abandonados, em avançada fase de degradação.
As honrosas exceções são o Memorial da Resistência na cidade de São Paulo, o Lugar de Memória (Lume) em Curitiba, o Memorial dos Direitos Humanos em Belo Horizonte e o Memorial da Resistência de Fortaleza.
Para Starling, há uma tentativa de apagamento histórico ao abandonar os locais de repressão ou ocupá-los sem o devido cuidado de preservação.
“Se você apaga o passado, vai ter problema para pensar o futuro. Esses lugares estão nos contando uma história, que é bom não esquecermos se quisermos defender a democracia. Essa é a utilidade do passado nesse caso”, avalia.
Prisão “discreta” no coração de São Paulo
No caso do presídio Tiradentes, existe farta documentação sobre o espaço e os opositores do regime que passaram por ele.
Além da ex-presidente Dilma Rousseff, o ex-deputado federal José Genoino e a ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República Eleonora Menicucci também passaram pelo centro de detenção.
No local em que funcionou, hoje uma agência do Banco do Brasil, a população passa diariamente ao largo do peso dessa memória.
“Nunca soube que aqui tinha sido um presídio, é uma pena que não tenha a sinalização. Eu sabia que nessa região a Dilma tinha ficado presa porque estive no Memorial da Resistência, que é aqui perto, mas não imaginava onde”, afirma a geógrafa e funcionária terceirizada da agência Débora Lima, 42.
O comerciante Robson Gomes, 47, conta que vai à agência há mais de 15 anos e nunca soube nada sobre aquele arco. “Acho ruim a história da cidade não estar sendo cuidada”, diz.
Segundo a pesquisadora do Memorial da Resistência de São Paulo Júlia Gumieri, o arco de entrada do Tiradentes já teve uma placa informativa, porém ela foi roubada e não houve reposição.
A Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, por sua vez, informa, por nota, que “o Portal de Pedra do Antigo Presídio Tiradentes foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) em 1985, e, até o momento, não há registros de pedidos de intervenção nos bens”.
“A gente cria esse estereótipo que as coisas aconteciam nos porões, escondido, e não era assim, pelo contrário. A repressão estava na cidade inteira, na vida cotidiana de todo mundo”, relata Gumieri.
Para o publicitário e ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Emílio Ivo Ulrich, 76, que esteve preso no Tiradentes, em 1970, a descaracterização do lugar aponta descaso com as vítimas das arbitrariedades ocorridas durante a ditadura militar.
“Demoliram o presídio e construíram uma agência bancária, é um absurdo. Nenhum governo até hoje fez um esforço consistente para resgatar a memória da ditadura e o mal que ela fez ao Brasil. Somos o país da não memória e um país subjugado ao militarismo. Por isso, não há interesse em lembrar o passado”, opina. Emílio Ulrich é autor do livro Tortura não tem fim, da editora Insular, em que relata sua passagem pelos órgãos de repressão.
Não se sabe ao certo quantos opositores ao regime passaram pelo Tiradentes. Em 1972, no entanto, ao menos 200 internos decretaram greve de fome por melhores condições e pelo fim das torturas contra presos comuns.
Relatos de presos políticos, registrados no site do Memorial da Resistência de São Paulo, afirmam que as agressões eram praticadas na madrugada e muitos presos comuns eram executados pelo conhecido, à época, esquadrão da morte.
O presídio sempre esteve relacionado com o abuso e o autoritarismo em sua história. Quando foi construído, em 1852, era chamado de Cadeia da Luz e servia como prisão e depósito de pessoas escravizadas.
Ele também funcionou como cárcere político durante o Estado Novo, de 1937 a 1945, quando recebeu, por exemplo, o escritor Monteiro Lobato, notório opositor de Getúlio Vargas.
Glamour, atual função social de antiga prisão desativada
Ele fica na rua de mesmo nome, número 600, no Brás, bairro da zona leste da capital paulista. Atualmente, é um casarão abandonado em meio a prédios residenciais e pouco comércio.
Os moradores sabem que o local já foi um presídio e que depois foi utilizado pela Fundação Casa como espaço de detenção para crianças e adolescentes contraventores, mas o assunto não agrada muito aos vizinhos. “Ele não está abandonado, de tempos em tempos eles usam para filmagens”, disse uma moradora, que pediu para não ter o nome divulgado.
“Direto tem filmagem [no presídio], vive aparecendo ator famoso. Já vi o Seu Jorge e a Cléo Pires. Aquela série Irmandade [Netflix, 2019], uma parte foi gravada aí”, afirma Gilmar Silva Souza, 56, zelador e morador do prédio em frente à construção.
Gilmar conta que não sabia que o presídio havia recebido presos políticos na época da ditadura militar. Para ele, o espaço deveria ser revitalizado. “Poderia reformar e utilizar como um hospital, um local para idosos, não deixar fechado a maioria do tempo, como está”, comenta.
Procurada, a Fundação Casa respondeu, via assessoria de imprensa, que continua sendo a administradora do Hipódromo, mas sem intenção de reativá-lo. Em 2019, a entidade chegou a negociar com o Estado a devolução do edifício, mas não houve acordo.
No momento, o Hipódromo aguarda, com outros 43 imóveis desativados da fundação, uma decisão sobre qual finalidade a entidade dará a ele. Segundo o órgão, antes da pandemia de covid-19, cerca de 9 mil adolescentes eram abrigados no sistema; atualmente são 4.500.
As filmagens também foram confirmadas pela instituição, que informou se tratar de uma parceria em que o espaço é cedido e a produtora oferece uma contrapartida que pode ser financeira ou, por exemplo, uma oficina aos menores sob custódia da fundação.
A partir de 1972, com o fechamento e demolição do presídio Tiradentes, diversos presos políticos começaram a ser dirigidos para lá.
Em 1976, a cantora Rita Lee esteve cerca de 15 dias detida na ala feminina do Hipódromo, mesmo estando grávida de três meses. O argumento da repressão para prendê-la foi que depois de uma “batida” das forças militares na casa da cantora, foram encontrados “vestígios de maconha”.
As condições do local, naquela época, seguiam degradantes. Em uma carta dirigida a juízes auditores da II Circunscrição Judiciária Militar, datada de 1° de maio de 1976, presos políticos detidos no Hipódromo, relatam:
“A preocupação com as condições sanitárias, em nossa Ala de presos políticos, ressalta em primeiro lugar. As deficiências de higiene são gritantes. As canalizações de esgoto exalam um forte odor fétido, que verdadeiramente empesteia o lugar. Delas saem igualmente uma quantidade invencível de baratas, resistentes a qualquer esforço físico ou tratamento químico objetivando eliminá-las”.
A carta é assinada por 23 presos políticos, que dividiam uma ala do presídio.
Minas: passado de tortura, uma constante “surpresa
Já o Serviço de Informação da Polícia Militar de Minas Gerais – G2 passou a ocupar o sobrado da rua Santa Rita Durão, na esquina com a rua Sergipe, na capital mineira, em 1944.
A partir do golpe de 1964, começa a ser utilizado como centro de repressão e de triagem de presos políticos, “bem próximo do Palácio da Liberdade e do Palácio Episcopal”, descreve o relatório da Comissão da Verdade de Minas Gerais.
A partir de 1976, o local abriga a Afas, organização social beneficente formada por mulheres de militares que funciona até hoje. Segundo a assessora militar da associação, capitã da PMMG Fabiana Garcia, a Afas tem conhecimento superficial sobre o passado de repressão de sua sede.
“Quando soubemos, ficamos inclusive surpresos, porque não tem nada na casa que demonstre que ela foi usada como prisão”, afirma. Segundo a capitã, a equipe da Afas foi informada sobre a história do casarão, tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG) quando foi necessário realizar uma reforma.
Rio: mais histórias mal contadas
Foi por meio de uma provocação do Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação, que o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro (MPF-RJ) instaurou um inquérito civil, no início de março, para analisar a viabilidade de criar na antiga sede do Departamento de Ordem Pública e Social do Rio de Janeiro (Dops-RJ) um Centro de Memória e Direitos Humanos.
O imóvel, localizado na rua da Relação, 40, na esquina com a rua dos Inválidos, no bairro da Lapa, está fechado pelo menos desde 2009 e em fase avançada de deterioração. A administração do local é de responsabilidade da Polícia Civil do Rio de Janeiro (PCRJ).
Sobre o tema, a Polícia Civil informa, em nota, que “o imóvel, atualmente, está em obras, com previsão de conclusão para este ano. No espaço, será implantado o Centro Cultural da Polícia Civil, em cumprimento à previsão contida na Lei Orgânica da instituição”.
Na mesma nota, a PCRJ declara que o “prédio contará com espaços dedicados a atividades culturais, interlocução com a sociedade civil e uso compartilhado com outros órgãos do estado, além do Museu da Polícia Civil”.
Sobre um possível trabalho de arqueologia no prédio do antigo Dops-RJ inserido no projeto do Centro de Memória, o procurador da República Julio José Araújo Júnior, autor do inquérito civil, acredita que seria importante.
“Pode ajudar a elucidar casos e comparar narrativas. Ao criar condições para que esse debate seja feito, também temos que viabilizar a reflexão, a apuração e o entendimento sobre os fatos que se passaram naquele espaço”, avalia.
Entre os modelos que podem servir de exemplo para o antigo Dops-RJ, Araújo Júnior cita o Museu do Trabalho e dos Direitos Humanos, que será inaugurado em 5 de abril, em Barra Mansa (RJ).
O museu funcionará onde antes estava o 1° Batalhão de Infantaria Blindada (BIB). Ele foi resultado de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a prefeitura da cidade, dona do imóvel, e o MPF-RJ, em função dos resultados das investigações da Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda (CMV-VR).
O 1° BIB foi transformado, a partir do golpe militar de 1964, em um centro de interrogatórios e tortura de trabalhadores e sindicalistas, principalmente da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), mas que também perseguia religiosos contrários ao regime autoritário.
Um exemplo das arbitrariedades ocorridas no batalhão ocorreu em 1971, quando 15 militares foram presos e torturados e quatro deles não resistiram à violência e morreram. Eles tiveram seus corpos ocultados, e o episódio só veio a público em 2014, por meio de investigações da Comissão da Verdade. Até então, os militares eram considerados desaparecidos.
Resistência: sociedade civil é motor de poucas iniciativas de preservação da memória
Os espaços de repressão e resistência que se transformaram em centros de memória, memoriais ou museus no Brasil têm em comum a participação ativa da sociedade civil em sua elaboração.
É o caso do Memorial da Resistência de São Paulo, inaugurado em 2009 e instalado no largo General Osório, 66, Bom Retiro, na capital paulista, onde funcionou o Departamento Estadual de Ordem Pública e Social de São Paulo (Deops/SP).
O Deops/SP compete com o DOI-Codi como um dos espaços de repressão mais violentos da história da ditadura militar. Foi onde atuou, entre 1968 e 1977, o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, um dos mais notórios torturadores do Brasil.
“A sociedade civil recorda esses lugares na ausência do Estado. O que nos motiva é tornar visível uma história que a história oficial não quer reconhecer”, acrescenta Maurice Politi.
Além de diretor-executivo do Núcleo Memória, Politi é ex-preso político e ex-militante da Ação Libertadora Nacional (ALN), movimento atuante no enfrentamento civil à ditadura militar.
Foi preso em 1970, aos 21 anos, e durante mais quatro esteve em diversos aparelhos de tortura e detenção do Estado, como DOI-Codi-SP, Deops-SP, presídio Tiradentes, presídio do Carandiru, penitenciária regional de Presidente Venceslau e presídio Hipódromo. Depois de libertado, foi expulso do Brasil e só pode retornar em 1980, após a anistia.
Outro memorial aguardado na cidade de São Paulo é o que ocupará o local onde se iniciou a Operação Bandeirantes (Oban), em 1969, com o intuito de obter informações, reprimir e perseguir membros de movimentos que se organizavam contra o regime. Em 1970, o aparato clandestino torna-se oficial e passa a se chamar Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi).
Apelidado pelos próprios militares de “sucursal do inferno” e “casa da vovó” (onde se pode tudo), entre outros nomes, O DOI-Codi de São Paulo recebeu e torturou cerca de 6.700 presos e pelo menos 50 deles morreram em suas instalações, segundo documentos do próprio Exército resgatados pela CNV.
Segundo o Núcleo Memória, o DOI-Codi funciona até 1982, quando o processo de fechamento é iniciado. Durante todo o tempo esteve situado no mesmo local, rua Tutoia, 921, Vila Mariana, região centro-sul da capital paulista. Neste endereço hoje funciona o 36° Distrito Policial da Vila Mariana, da Polícia Civil.
Em 2010, Ivan Seixas, ex-preso político que passou pelo DOI-Codi aos 16 anos, com sua mãe, seu pai, morto na mão dos torturadores, e sua irmã, solicitou o tombamento do prédio, concedido pelo Condephaat em 2014.
Desde então, o Núcleo Memória, que já foi presidido por Seixas, cobra do governo do estado de São Paulo a passagem da gestão do prédio da Secretaria da Segurança Pública para a Secretaria de Cultura.
Enquanto o projeto do memorial não se concretiza, o Núcleo Memória realiza mensalmente visitas guiadas aos prédios do DOI-Codi.
“Nós que fomos presos e combatemos a ditadura – e alguns pagaram com a própria vida – acreditamos que também é nossa missão tornar esses fatos, as prisões, os locais de tortura, conhecidos. [É necessário que] essa história seja entendida pelos mais jovens e não aconteça mais”, afirma Politi.
“Nós éramos jovens, eu tinha 22 anos [ao ser presa], tínhamos crescido em uma democracia. Eles chegaram com um aparato institucionalizado, métodos de tortura… deveriam reconhecer o que fizeram”, diz a professora de história da Universidade de São Paulo (USP) Yara Prado, 77.
Ela foi militante da VAR-Palmares, presa em Porto Alegre, em 1970, e enviada para São Paulo, onde foi torturada no DOI-Codi pelo Estado. No último dia 20, Yara voltou pela primeira vez à rua Tutoia, após ter passado pelo local como prisioneira, para participar da visita guiada e dar seu depoimento.
“O que mais me dói é a população brasileira não saber o que realmente aconteceu porque eles [do Exército] não assumem [as torturas]”, lamentou Prado.
Na rua, no comércio, no estádio: tortura nem sempre era escondida
Os espaços de resistência não são apenas aqueles onde ocorria a institucionalização da violência, da tortura e da morte durante o regime militar. A repressão, por meio de atentados e execuções à queima-roupa, ocorria na cidade, em espaços públicos, aos olhos dos cidadãos.
A publicação Memórias resistentes, memórias residentes mapeia 36 desses lugares apenas no município de São Paulo, espalhados por seis regiões da cidade.
A alameda Casa Branca, incrustada no bairro Jardim Paulista, foi palco, em 4 de novembro de 1969, da execução do dirigente da ALN e ex-deputado federal pelo PCB Carlos Marighella.
Para marcar os 30 anos de seu assassinato, em 1999, uma inscrição de memória foi colocada pela Prefeitura de São Paulo, após a reivindicação de grupos de memória e direitos humanos, na altura do número 815 da travessa. Em uma pedra, uma placa explicava que naquele lugar Marighella havia sido assassinado.
Na data, todos os anos, o monumento recebe a visita de um grupo de companheiros e familiares de Marighella, além de militantes de direitos humanos. Parte da vizinhança, de classe média alta, não vê a homenagem com entusiasmo.
A placa não está mais lá, foi furtada há pelo menos oito anos, e a pedra já foi vandalizada mais de uma vez. A insatisfação de alguns vizinhos é evidenciada pelo silêncio. “É apenas uma pedra”, disse uma moradora indagada sobre o monumento. Ela se negou a dar o nome e continuar a conversa.
Já a publicitária Miryan Valejo, 55, moradora da alameda, conta que a maioria dos vizinhos “não conhece o monumento ou não dá muita importância. “Normalmente, quando tem alguém aqui, são pessoas que vieram de outro lugar”, conta.
“São pessoas que vieram fazer algum estudo, falar sobre a época [da ditadura militar]. Já vi professores dando aulas aqui com alunos. […] Muita gente, do próprio bairro, sabe o que é o monumento, mas considera o Marighella um bandido, um comunista, acha que ele mereceu”, complementa a educadora física Caren Brustelo, 35.
Periferia também abriga memórias importantes
Atualmente, o antigo estádio Maria Zélia abriga o Ambulatório Médico de Especialidade (AME) Maria Zélia, na rua Jequitinhonha, 368, no bairro Catumbi, zona leste da cidade.
O local, porém, viveu momentos de repressão e violência durante o regime de exceção na Vila Maria Zélia, construída na década de 1910 para moradia de funcionários de uma fábrica de tecidos.
Em 1970, foi realizada no estádio uma comemoração do 1° de maio, Dia do Trabalhador, autorizado pelas autoridades policiais.
Mesmo assim, cerca de 20 pessoas foram presas por carregar um panfleto que dizia “1° de maio é dia de luta, e não de festas”, segundo o livro Memórias resistentes, memórias residentes.
Não há nenhuma menção ao histórico de resistência no AME Maria Zélia, aberto em 1985, gerido pela Organização Social (OS) Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) desde novembro de 2005.
Indagada, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo respondeu que “não identificou registros que relacionem o prédio citado ao período da ditadura militar”.
Diz ainda que o terreno foi cedido pela administração pública federal para o governo do estado em 1988. “Por se tratar de um patrimônio público, todos devem zelar, preservar e defender o espaço”.
Para a farmacêutica Daniela Duarte, 45, existe um desinteresse do Estado em preservar histórias de repressão e resistência. Ela está entre os proprietários atuais do imóvel onde funcionou o restaurante Varella, na rua da Mooca, esquina com rua Antunes Maciel. O restaurante ficou conhecido após uma emboscada a opositores do regime.
Segundo Duarte, a família nunca foi procurada por nenhum órgão público para discutir o registro ou sinalização do local como espaço de memória.
“Soubemos que o restaurante foi local de um atentado na época da ditadura depois da compra do imóvel pelo meu pai. Ele ficou fechado por muito tempo, algumas pessoas acham que por causa disso”, conta a farmacêutica.
Segundo o livro Memórias resistentes, memórias residentes, o restaurante Varella foi palco de uma delação em 14 de junho de 1972. O dono do estabelecimento identificou quatro militantes da ALN e ligou para o DOI-Codi.
Em pouco tempo os agentes da repressão chegaram ao local e prenderam três deles, Iuri Xavier Pereira, Ana Maria Nacinovic Corrêa e Marcos Nonato da Fonseca.
Não se sabe ao certo onde foram mortos, mas há comprovação de que o trio passou pelo DOI-Codi antes de os corpos serem apresentados no Instituto Médico Legal de São Paulo.
O quarto denunciado, Antônio Carlos Bicalho Lana, conseguiu fugir, mas foi morto pelos mesmos agentes que prenderam seus companheiros cerca de um ano depois.
O risco de não “remoer o passado”
O governo do presidente Lula optou por manter a mesma política do silêncio em relação às manifestações que marcam os 60 anos da ditadura militar em 2024.
A Presidência da República ainda lida com os resultados das investigações da Polícia Federal sobre o envolvimento de Jair Bolsonaro e seus apoiadores mais próximos das Forças Armadas na tentativa de golpe no dia 8 de janeiro.
Para Maurice Politi, não é a melhor estratégia.
“A impunidade [de militares e torturadores] foi um erro. E é lamentável que um governo eleito com o apoio de forças progressistas não tenha a coragem de se posicionar. […] Se tivéssemos cuidado melhor do passado, se a anistia não tivesse atingido os torturadores, se a impunidade não tivesse existido, claro que teríamos menos riscos de voltar a um regime autoritário, ainda mais a tentativa golpista de 8 de janeiro”, afirma.
A pesquisadora Julia Gumieri, do Museu da Resistência de São Paulo, acrescenta que a passagem dos governos militares para os civis, no período da democratização, foi feita sem alterar as instituições, com “a máquina funcionando da mesma forma”.
Para ela, foi adotada uma estratégia política que prega ser necessário “buscar a conciliação e o silêncio para se reorganizar o país democraticamente”.
“O caminho que se escolheu, de abraçar o silêncio institucional, gera consequências. Permite que espaços autoritários das Forças Armadas se neguem a fornecer documentos. Também criam um sentimento de dicotomia, como se fosse uma questão de escolher um lado. E ainda mantém atuantes instituições que não foram reformadas e conseguem influenciar parte da população”, avalia.
Professora de história da UFMG, Heloísa Starling percebe que, ao “blindar” os acontecimentos do período ditatorial, um determinado segmento da sociedade tenta se proteger, porque “o historiador é um perigo para as tiranias”.
“O esquecimento é uma tentativa de eliminar as histórias que precisam ser contadas, para que o passado nos ofereça um repertório para avaliar nossas decisões no presente. Por isso, a memória é importante. Os gregos diziam que o esquecimento é pior que a morte. Porque, com a morte, as pessoas ainda podem se lembrar, a pessoa ainda existe. No esquecimento, não; o que é esquecido não existe mais”.
Reportagem originalmente publicada na Agência Pública