Padre João Borges Quintão – um coração dividido
Segundo bispo eleito de Florianópolis
Por Pe. José Artulino Besen

João Borges Quintão[1] nasceu no dia 27 de junho de 1871, na Fazenda Boa Vista, que uns situam no Distrito de Sant’Ana do Alfié e outros, no Distrito de Babilônia, ambos incorporados, até 1890, ao Município de Itabira, MG. Hoje é o município de Marliéria, pequena cidade onde logo se vê a homenagem ao filho ilustre e santo: “Escola Estadual Padre João Borges Quintão”. Seus pais João Borges Quintão e Maria Teixeira Ferreira o levaram à Pia batismal em 23 de julho de 1871.
Os primeiros estudos foram feitos na sede do município, no Colégio das Palmeiras. E, ali, foi colega de Trajano Procópio de Alvarenga Monteiro, seu amigo de todas as horas. Depois do Curso de Humanidades no Colégio do Caraça, em 1890, dirigiu-se a Petrópolis onde entrou para o Noviciado da Congregação da Missão (lazaristas), e fez os cursos de Filosofia, de Teologia e de Direito Canônico, dando-se a boas leituras e adquirindo saber e reflexão. Era um intelectual no sentido pleno da palavra.
Em 1896, voltou ao Caraça, como Diácono, a fim de lecionar nesse tradicional estabelecimento de ensino que, dirigido pelos Padres lazaristas, educou gerações de cristãos, políticos e intelectuais brasileiros. Foi nele que Raul Pompéia ambientou seu conhecido romance “O Caraça”.
Não consegui encontrar o local e data da ordenação presbiteral: não foi nem no Caraça nem em Mariana. Sugiro ter sido em Petrópolis, em 1896.
Em 1897, no Rio de Janeiro, foi professor no Seminário do Rio Comprido, tradicional e história casa de formação presbiteral, onde ficou até o fim do ano de 1901, tendo exercido paralelamente o cargo de Capelão da Santa Casa de Misericórdia, dirigida pelas Irmãs Vicentinas.
Em 1898, Pe. João Borges Quintão foi nomeado por Dom Joaquim Arcoverde, arcebispo do Rio de Janeiro e primeiro Cardeal brasileiro, para fazer parte da Comissão de Música Sacra, para estudar a restauração da Música Sacra no Rio de Janeiro. A nomeação testemunha a qualidade intelectual e teológica do jovem Pe. João.
Entre 1902 e 1906, foi nomeado Padre-Mestre de Missões nos Estados do Paraná e de Santa Catarina, onde foi grande no Ministério da Palavra. Seus sermões eram brilhantes tanto pela forma quanto pelo conteúdo bíblico e insistência na justiça social. “Nunca se omitiu quando tinha que protestar contra os abusos daqueles que maltratavam os pequenos e os humildes e contra aqueles que oprimiam, deprimiam e comprimiam os pobres e os fracos e exploravam o suor dos operários.
Sabia que haveria de dar contas de ociosos silêncios como das ociosas palavras”, escreveu Pedro Maciel Vidigal.[2]
Os jornais do Paraná e Santa Catarina com antecedência anunciavam suas pregações. Continua o mesmo autor: “Inundado pela caridade, vivia cuidando de conduzir para a Casa do Pai os pecadores que traziam o pecado na medula. Nele havia esquecimento de si mesmo por amor ao próximo. Queria que todos recebessem a graça da salvação eterna, por trazerem a imagem do Rei. Do Rei dos reis. E porque todos estão carimbados com a etiqueta do preço da Redenção, marcando “valor infinito””.
Modesto, nunca buscou elogios pelos seus justos e notáveis merecimentos. Aprimorando a vida espiritual de muita gente, ele foi, até 1918, um dos maiores artífices da construção do Reino de Deus nas almas de centenas de milhares de brasileiros, tanto no Sul como no Rio de Janeiro.
Pe. João Quintão era dotado de muita sensibilidade e forte consciência da transitoriedade da vida, como se vê nessa carta ao primo Raphael, escrita em 12 de Fevereiro de 1902, em Curitiba:
“Apesar das tristezas e saudades e dos muitos trabalhos de pregar, confessar, baptizar etc. etc. estou contente, porque em Jesus e em Maria e em José! Animo! Já estás no meio do caminho doloroso do Calvário. Alguns passos ainda atraz de Jesus e consumarás esse teu holocausto no alto da montanha! Vamos com Elle! Vamos! Senhor Jesus, meu Deos e meu Pae, meu Mestre e meu Amigo, convosco quero estar na vida e na morte, hoje e sempre! Ajudae-me a seguir-vos, a morrer convosco crucificado. Espero que um dia irei gozar convosco no céo. Assim seja. Amen. Amen”[3].
Eleito bispo de Florianópolis – a busca da fidelidade
Entre 1906 e 1914, reitor do Seminário de Curitiba. E, em 1913, ficou surpreendido com a comunicação oficial de quem havia sido eleito por Pio X segundo bispo da Diocese de Florianópolis, vacante desde 1912 pela transferência de Dom João Becker para Porto Alegre. Mas, para surpresa geral, antes da sagração episcopal, por bem e por certo desistiu da plenitude do sacerdócio, por sérias razões de foro íntimo.
Em 1980, assim se referiu ao acontecimento Mons. José Locks, testemunha da época, numa entrevista que me concedeu: “Seu sucessor nomeado foi o Pe. Quintão, lazarista, reitor do Seminário de Curitiba, em quem pareciam reunidas as qualidades de um Bispo: qualidades intelectuais e qualidades morais. Depois de nomeado ele renunciou, dizendo ser indigno para o cargo. O Pe. Topp ficou encantado com a humildade dele e foi a Curitiba demovê-lo de sua abstinência: “Tal Bispo nós precisamos, sem ambição de honras e dignidades”. Mas o Pe. Quintão ficou inabalável na sua renúncia e no fim disse: “Mons. Topp, se o senhor conhecesse quem eu sou, não insistiria na sua teima“. Mons. Topp saiu pensando: “Ou é um grande santo ou é um grande pecador!””[4]. Era um homem fiel.
Em Padre João Borges, o celibato não era vivido santamente como deveria ser. Viveu seu sacerdócio e fé cristã com extrema seriedade, mas com o coração dividido. Se foi eleito bispo num período em que somente grandes vultos eram chamados ao episcopado, na República incipiente, era porque tinha dignidade moral para esse ministério.
Poderia ter-se deixado seduzir pela honra do Episcopado: preferiu a lealdade à Igreja. Não desistiu logo. Mesmo sabendo de sua condição de pecador, lutou para superar o drama da paixão humana. São Leopoldo Mandic que, por décadas, viveu atendendo no Confessionário, afirmou: “As dores do coração são curadas somente por milagre divino”.
Em 1919, saiu da Congregação da Missão para o lar, que fundou com Sílvia Bittencourt Cotrim, filha de Gastão Bittencourt Cotrim e Francisca de Souza Bittencourt Cotrim, tradicional família de militares. Pe. João tinha conhecido Sílvia na Casa da Providência do Rio, onde era interna[5].
O casal foi morar no humilde arraial de Babilônia, hoje Marliéria, no Vale do Rio Doce e, para sustento da família, abriu um Colégio que funcionou durante três anos (1920-1922), com a denominação de “Nossa Senhora das Dores”, sua grande devoção. Lugar pobre, não oferecia condições de vida.
Em 1923, acompanhado da mulher e de três filhos, ele mudou-se para Itabira, MG, a convite de seu antigo colega e sincero amigo Trajano Procópio de Alvarenga Monteiro, a fim de, no Ginásio Municipal Sul-Americano, lecionar o francês, o inglês e o latim. Ali teve como companheiro de magistério, lecionando português e geografia, Carlos Drummond de Andrade.
Enfermo, em 1927 foi internado do Hospital de Itabira, cujo povo o havia recebido com manifestações de apreço e de caridade. Agravando-se o mal que o prostrava no leito, foi visitado por antigos colegas padres lazaristas. Entre eles, Pe. Jerônimo de Castro, que lhe deu a absolvição geral e as bênçãos da Igreja a que ele havia prestado grandes e bons serviços, deixando atrás de si uma montanha de boas obras, que marcaram sua passagem por este mundo. Foi a maior graça da vida desse homem que nunca deixou de ser sacerdote.
No dia 23 de julho de 1927, tendo recebido os últimos sacramentos, com apenas 54 anos, entregou sua alma ao Pai. Seu coração nunca se distanciara de Jesus Cristo nem de Nossa Senhora, de quem era devotíssimo, pois nunca havia abandonado a recitação do terço do seu Rosário. A esposa Sílvia e os filhos seguiram para o Rio de Janeiro. Tentei contatar os dois filhos ainda vivos, mas já sofrem dos esquecimentos da velhice.
A vida e a morte do Padre João, como ele era chamado em Marliéria, do Padre João Borges, como era conhecido em Itabira, do Padre Quintão, como era tratado por seus colegas e irmãos da Congregação fundada por São Vicente, despertam a lembrança para uma das mais belas páginas de Péguy, em sua Obra “Clio”:
Quando a graça não chega por estradas retas, percorre estradas tortas. Quando não chega pela direita, chega pela esquerda. Quando não chega seguindo numa linha reta, chega seguindo uma linha curva e quebrada. Quando não chega do alto, chega de baixo. Quando não chega do centro, chega da periferia. Quando não esguicha como fonte, corre como água pura.
Pe. José Artulino Besen
[1] O texto é fruto de longa pesquisa, iniciada em 1980. Dei-me o trabalho de visitar Marliéria, Itabira, onde inutilmente busquei localizar o túmulo de Pe. João. O Colégio Municipal Sul Americano foi fechado há muitos anos. Visitei o fantástico Caraça e pesquisei em seu Arquivo. Pouca coisa se encontra pelo fato de que, naquele tempo, a desistência de um padre o tornava “apóstata”, quase um maldito. O Arquivo da Arquidiocese de Florianópolis nada possui, a não ser as cartas que Roma enviava a “Monsieur Borges Quintão, l’Evêque de Florianópolis”, quando já era bispo Dom Joaquim Domingues de Oliveira. Emocionou-me sentir o amor do povo de Marliéria pelo seu Padre João. Não sabem que ele abandonou o ministério.[2] Pedro Maciel Vidigal, in: OS ANTEPASSADOS, II Volume, A SUA GENTE, Tomo 2º OS MARTINS COSTA 2ª parte.
[3] Carta escrita no Seminário de Curitiba, 12 de Fevereiro de 1902. O autor possui cópia com grafia original que lhe foi enviada pelo Pe. José Marcelino de Magalhães Filho, então pároco de Marliéria. Devo-lhe um muito obrigado pela atenção e notícias.
[4] Entrevista dada ao autor por Mons. José Locks em 1980. À época era seminarista em São Leopoldo, RS.
[5] De 1860 até 1916 a CASA DA PROVIDÊNCIA, atual COLÉGIO DA PROVIDÊNCIA, foi sede da PROVÍNCIA DAS FILHAS DA CARIDADE NO BRASIL, que em 1916 foi transferida para a colina do Matoso, à Rua Santa Amélia, 102, hoje Rua Dr Satamini, 333 – Tijuca.
Muito boa nova matéria. Enfim uma biografia pra conhecermos melhor esse home tão sofrido e mal tratado.Ele é parente do Genin? Viva você, Carlos!
Sou bisneto da CONSTANÇA BORGES QUINTĀO, PRIMEIRA ESPOSA. DO MESTRE CHRISTIANO DE ASSIS MORAES, QUE ERA IRMÃ DO PADRE JOÃO BORGES. GOSTARRIA DE TER NOTICIAS DE SEUS DESCENDENTES.
Descendência do Padre João Borges Quintão – sei que se casou e teve, se não me engano, 3 filhos e que foram viver em São Paulo. Sou bisneto de sua irmão Constança Borges Quintão que foi casada com o Professor Christiano de Assis Moraes. Tenho uma boa parte de minha genealogia, mas falta esse complemento. Um contato também com esses parentes seria muito agradável.