Olhe bem as montanhas…

Carlos Drummond de Andrade

Manfredo: nome germânico, interpretado por uns como “paz dos homens” ou “homem da paz”, e por outro como “a paz da força”, isto é, “a força que assegura a paz”. Assim diz o meu dicionário etimológico. E esse jovem mineiro que me oferece uma faixa plástica dá realmente a impressão de uma força pacifica, a serviço da natureza e do homem. A faixa diz, em letras brancas, atravessadas por um perfil de serranias: “Olhe bem as montanhas…”.

Porque as montanhas, principalmente em Minas Gerais, estão acabando. A de minha terra faz tempo! Diluiu-se no ar, e uma geração nova apenas sabe que ela existiu… por fotografia e pela saudade dos mais velhos. Outras se foram depois, ou vão-se indo. Em Belo Horizonte, “cadê a paisagem histórica? é a pergunta que a cada manhã se fazem moradores consternados. Chegou a hora de executar o réquiem das montanhas? Manfredo Souzanetto, desenhista mineiro, resolveu guardar-lhes a lembrança em representações plásticas de uma grande beleza. Memória das coisas que ainda existem é o título que dá à exposição de seus trabalhos. Podem ser vistos, neste frio julho, na Real Galeria de Arte (avenida Copacabana, 129-B). E vale a pena vê-los.

Estágio de uma paisagem I – ecoline, lápis de cera, aquarela, nanquim sobre papel, 45,7 x 74,2 cm, 1974, Coleção Gilberto Chateaubriand, MAM-RJ.

Manfredo “olhou bem” as montanhas, por isso as fixou tão bem, não em realidade fotográfica, mas nessa outra em que o artista consegue envolver as coisas, penetrá-las, sublimá-las. As montanhas que ele, por sua vez, nos convida a olhar bem, guardam o sentido telúrico imemorial que as prende ao contexto da vida humana. Suas formas estão ligadas à nossa experiência plurissecular. Montanhas e seres vivos participam de um processo vital que se diversifica sem perder a unidade. O homem é a terra; é ferro, planta, água e ar, e da identificação de todos esses elementos, dinamizados pela cultura, nasce a civilização.

Como, desgraçadamente, estamos nos distanciando cada vez mais desse conceito elementar, a natureza vai sendo sacrificada, e não assimilada, no interesse de necessidades imediatas, e com ela as montanhas desaparecem da face da terra. Aparentemente, isso produz riqueza. Na realidade, provoca transformações profundas no meio ambiente, com reflexos negativos na qualidade da vida. Transformações que invalidam os benefícios da riqueza criada, e tornam mais precária a vida de nossos seres, desde a espécie mais humilde até a orgulhosa espécie humana.

O venerável Cauê ainda intacto, na década de 1930 (Foto: Miguel Bréscia. No destaque, foto do pico Conceição ainda inteiro, clicado por Eduardo Cruz, na década de 1980)

A arte desse rapaz mineiro, numa atitude talvez romântica, mas imbuída de autêntico humanismo, convida a reparar tanto no contorno majestoso das serras como na importância que elas assumem no quadro geral da vida. O pico não é só uma referência sentimental para quem nasceu à sua sombra e pela manhã, ao acordar, o vê postado como atalaia protetora. É um dado essencial do meio físico, disposto de maneira a integrar determinada composição natural que rege as condições de vida. Eliminada a sua presença, altera-se o equilíbrio, e como coisa alguma a substitui, senão o vazio, a terra e os homens ficam mais pobres, numa antecipação do fim que há de ocorrer pelo esgotamento dos recursos naturais.

Olhe bem as montanhas de Itabira enquanto elas não virem automóveis, geladeiras e tanques de guerra

Olhe bem as montanhas… O conselho de Manfredo soa em tom melancólico. Olhe bem para as coisas que ainda existem e que amanhã serão pura lembrança. Lembrança esgarçada, traços de visões que escapam no arquivo da memória individual e coletiva, simples e descarnadas palavras num dicionário de antiguidades: Montanha, s.f. do passado; série de elevações notáveis de terreno, encontradas em cartões postais do século XX e, transfiguradas, na obra do artista Manfredo Souzanetto”.

Isto, apenas? Prefiro crer que a voz e o trabalho artístico de Manfredo não sejam apenas isto. Que o seu pedido de olhar representa aviso, advertência, alerta em defesa do que ainda resta. E ainda pode ser preservado. E ainda é razão de viver e amar a vida em suas formas de criação. Olhe bem, olhe sempre, continue a olhar as montanhas.

(1975)

[In: Manfredo de Souzanetto, paisagem da obra. Rio de Janeiro, Ed. Contra Capa, 2006. p.92-95.

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4 Comentários

  1. Olhe bem as montanhas… Importantes áreas de recarga dos aquíferos. As de Itabira que ainda existem, resistem as tantas degradações. Olhe bem, olhe sempre, continue a olhar as montanhas.

  2. Tenho 72 anos ,também tive um Fuscão azul arara 1973 que tinha no para brisa este adesivo “Olhe bem as montanhas”. Gostaria de colocar agora enquanto a tempo ,um adesivo com a seguinte frase:Olhe bem o que restou das montanhas,,,infelismente.

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