O pranto geral de Júlio Rodrigues e as diferentes formas de discriminação racial
Por Cristina Silveira, da Glória – o jardim plantado a beira-mar do Pedro Nava
Maldição sobre vós, doutores da lei! Maldição sobre voz, hipócritas! Assemelhais-vos aos sepulcros brancos por fora; o exterior parece formoso, mas o interior está cheio de ossos e podridão. (Evangelho de S. Mateus, cap. XXII)
Já estava pronta a edição do poema “Pranto geral dos índios”, de Carlos Drummond de Andrade, em homenagem a Cândido Mariano da Silva Rondon (1889-1958), aqui na Vila de Utopia, publicado em repúdio a PL 490, uma expropriação das terras dos povos originários.
Stop! Veio a reportagem publicada neste site sobre um crime denunciado no dia 29/6 na Câmara Municipal. Dada a circunstância, a semelhança entre os fatos, oferecemos ao Júlio Rodrigues os versos do poeta Drummond.
Júlio/Julinho!
O Júlio Rodrigues, conheci como Julinho. O Julinho foi a ousadia preta a integrar-se no fazer cultural de Itabira, é ator formado nos Festivais de Inverno. Já não é Julinho, é Júlio Rodrigues, com os mesmos traços expressivos do Julinho: coragem, altivez e o sorriso gracioso.
Júlio Rodrigues é vereador de Itabira. A cor preta de sua pele brilha na Câmara dos brancos. Seu corpo e o coração pulsando, escreve na formalidade do legislativo, a afirmativa: Eu estou aqui! E está reconhecido, legitimado pelo voto do povo da cidade.
Borges Rodrigues Silvas e todos os Santos, pouco importa o nome. Valente é o corpo que rebela ao crime. Importa o fato e o crime (inafiançável e imprescritível), legislado pelo Estatuto da Igualdade Racial, Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010.
Carlos Borges, nome do criminoso, perdeu e perdeu. Talvez para sempre vá lastimar os tostões a pagar a um homem preto. E é só isso, por que não tem consciência a expandir. Borges é o “white saviour” derrotado.
Aí meu, perdeu! Tu foste marcado – sem ferro em brasas – por um homem preto, antes mesmo de dada a sentença. Tu estás marcado. Preso, o Borges? Inimaginável! O imaginável é a possível inversão de valor imposta por um juiz qualquer.
Já o Júlio Rodrigues, a despeito de decisão judicial, estará sempre presente, sua denúncia antirracista é notória, é histórica, “o que não pode o tempo esfarinhar”. O Júlio Rodrigues ganhou o significante de poder tirar da desdita o dito na luta antirracista.
E o homem feito vereador, Júlio Rodrigues, valentemente, por princípio, se negou a aplaudir a Vale S/A. Grande feito de quem conhece a desgraçaria da mineração, que sabe da vida amarga de um Homem de Ferro na cidade de alma vendida.
Viva Júlio Rodrigues! Do Julinho, fez-se um grande homem!
Saravá, meu amor!
Pranto geral dos índios
Carlos Drummond de Andrade
Chamar-te Maíra
Dyuna
Criador
seria mentir
pois os seres e as coisas respiravam antes de ti
mas tão desfolhados em seu abandono
que melhor fora não existissem
As nações erravam em fuga e terror
Vieste e nos encontrastes
Eras calmo pequeno determinado
teu gesto paralisou o medo
tua voz nos consolou, era irmã
Protegidos de teu braço nos sentimos
O akangatar mais púrpura e sol te cingiria
mas quiseste apenas nossa felicidade
Eras um dos nossos voltando à origem
e trazias na mão o fio que fala
e o foste estendendo até o maior segredo da mata
A piranha a cobra a queixada a maleita
não te travam o passo
militar e suave
Nossas brigas eram separadas
e nossos campos de mandioca marcados
pelo sinal da paz
E dos que se assustavam pendia o punho
fascinado pela força de teu bem-querer
Ó Rondon, trazias contigo o sentimento da terra
Uma terra sempre furtada
pelos que vêm de longe e não sabem
possuí-la
terra cada vez menor
onde o céu se esvazia da caça e o rio é memória
de peixes espavoridos pela dinamite
terra molhada de sangue
e de cinza estercada de lágrimas
e lues
em que o seringueiro o castanheiro o garimpeiro o
[bugreiro colonial e moderno
Celebram festins de extermínio
Não nos deixaste sós quando te foste
Ficou a lembrança, rã pulando n’água
do rio da Dúvida: voltarias?
Amigos que nos despachaste contavam de ti sem luz
antigo, entre pressas e erros, guardando
em ti, no teu amor tornado velho
o que não pode o tempo esfarinhar
e quanto nossa pena te doía
Afinal já regressas. É janeiro,
tempo de milho verde. Uma andorinha
um broto de buriti nos anuncia
tua volta completa e sem palavra
A coisa amarga
girirebboy circula nosso peito
e karori a libélula pousando
no silêncio de velhos e de novos
é como o fim de todo movimento
A manada dos rios emudece
Um apagar de rastos um sossego
de errantes falas saudosas, uma paz
coroada de folhas nos roça
e te beijamos
como se beija a nuvem na tardinha
que vai dormir no rio ensanguentado
Agora dormes
um dormir tão sereno que dormimos
nas pregas de teu sono
Os que restam da glória velha feiticeiro
oleiros cantores bailarinos
estáticos debruçam-se em teu ombro
ron don ron don
repouso de felinos toque lento
de sinos na cidade murmurando
Rondon
Amigo e pai sorrindo na amplidão
[Diário de Pernambuco, 5 de maio de 1975. BN/Rio]
Muito estranho e quando achamos que a civilização está melhorando, damos com uma notícia dessa de racismo explícito.
E só porque o Júlio Rodrigues não quis bater palmas a esta empresa mineradora famigerada que só usurpa de Itabira e região, sofreu todo esse achincalhe por conta de um filho de um antigo mero operário dessa mineradora.
Em democracia, a livre expressão também passa por não bater palmas a quem merece só cobranças.
Exatamente, caro Mauro. Em nome da mineradora o Carlos Borges se ferrou. E quem ferrou ele, é um homem que tem o sabor da dignidade humana no sorriso.
De todo modo a caixinha de pandora foi aberta….